Artigos Científicos

Atualização sobre comorbidade entre transtorno do déficit de atenção e hiperatividade (TDAH) e transtornos invasivos do desenvolvimento (TID)

Daniel Segenreich; Paulo Mattos

7 de janeiro de 2008

Rev. psiquiatr. clín. v.34 n.4 São Paulo  2007

Atualização sobre comorbidade entre transtorno do déficit de atenção e hiperatividade (TDAH) e transtornos invasivos do desenvolvimento (TID)

 

Update on the comorbidity of attention-deficit/hyperactivity disorder (ADHD) and pervasive developmental disorder (PDD)

 

Daniel SegenreichI; Paulo MattosII

IPsiquiatra e mestrando em Psiquiatria pela Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ)
IIPsiquiatra e professor adjunto da UFRJ e coordenador do Grupo de Estudos do Déficit de Atenção (GEDA)

Endereço para correspondência


RESUMO

CONTEXTO: Atualmente, a comorbidade transtorno do déficit de atenção e hiperatividade (TDAH) e transtornos invasivos do desenvolvimento (TID) não pode ser estabelecida por meio dos critérios da DSM-IV. Entretanto, diversos pesquisadores questionam esta impossibilidade descrevendo quadros clínicos de pacientes que apresentam características de ambos os transtornos. Esta revisão busca estes achados e propõe uma reflexão sobre o assunto.
OBJETIVO: Revisar, de modo seletivo, estudos mais significativos da literatura para compilar uma atualização sobre a comorbidade transtorno do déficit de atenção e hiperatividade (TDAH) e transtornos invasivos do desenvolvimento (TID).
MÉTODO: Por meio de busca no sistema Medline, selecionaram-se todos os artigos em inglês, publicados entre 2000 e 2005, sobre sintomas de TDAH em pacientes com TID, sintomas autistas em pacientes com TDAH e duplo diagnóstico TDAH/TID, utilizando-se os termos "ADHD", "pervasive", "autism", "ADD", "Asperger" e "PDD".
RESULTADOS: Encontraram-se 10 artigos que atendiam aos critérios. Embora haja poucos estudos com amostras pequenas, diferentes autores identificaram um subgrupo distinto de pacientes com TID e maior freqüência e gravidade de sintomas de desatenção e hiperatividade, que aparentemente apresentam menor resposta ao tratamento com estimulantes.
CONCLUSÃO: Embora o diagnóstico duplo TDAH e TID não seja corroborado pelo DSM-IV, alguns resultados sugerem que essa comorbidade não deva ser desconsiderada.

Palavras-chaves: Transtorno do déficit de atenção e hiperatividade, transtornos invasivos do desenvolvimento, TDAH, TID, atualização.


ABSTRACT

BACKGROUND: Nowadays, the attention-deficit hyperactivity disorder/pervasive developmental disorder (ADHD/PDD) comorbidity is not accepted by DSM-IV criteria. However, researchers from both areas put in check this impossibility and describe patients who have both clinical aspects from attention-deficit hyperactivity disorder (ADHD) and pervasive developmental disorder (PDD). In this article we search for this findings proposing new insights on this assumption.
OBJECTIVE: To perform a selective review of the most significant studies in order to compile an update on comorbidity ADHD and PDD.
METHOD: All papers from 2000 to 2005 in English obtained through Medline search, covering ADHD symptoms in patients with PDD, autistic symptoms in patients with ADHD and the double diagnosis of ADHD and PDD using the terms "ADHD", "pervasive", "autism", "ADD", "Asperger" e "PDD".
RESULTS: Ten papers attending the criteria were found. Although there are only few studies with small samples, different authors have identified a subgroup of patients with PDD portraying more severe symptoms of ADHD, who apparently respond less well to stimulants.
CONCLUSION: Although DSM-IV criteria do not allow the diagnosis of this comorbidity, some results suggest that this possibility should not be discarded.

Key-words: Attention deficit and hyperactivity disorder, pervasive developmental disorder, ADHD, PDD, update.


 

Introdução e objetivo

Os critérios da DSM-IV para diagnóstico de transtorno do déficit de atenção e hiperatividade (TDAH) envolvem a exclusão de um diagnóstico hierarquicamente mais importante e que justifique os sintomas (critério E). Desta forma, pacientes com transtornos invasivos do desenvolvimento (TID) não podem ser considerados portadores de TDAH: os sintomas de desatenção e hiperatividade seriam atribuídos apenas aos TID. Alguns autores, entretanto, defendem a possibilidade de uma comorbidade TID/TDAH, argumentando que existe um subgrupo de pacientes portadores de TID com sintomas de hiperatividade e desatenção de maior gravidade. Os primeiros relatos de casos endereçando esse tema datam de 1981, quando já havia questionamento sobre a existência desse duplo diagnóstico (Geller et al., 1981).

Considerando as implicações clínicas relevantes de um duplo diagnóstico, que se estendem até mesmo à definição do melhor esquema terapêutico a ser utilizado, o tema reveste-se de importância significativa. A atualização a seguir tem como objetivo revisar os artigos publicados sobre o tema entre 2000 e 2005.

 

Método

Procedeu-se a uma revisão seletiva, realizada por meio da base de dados Medline de todos os artigos publicados entre 2000 e 2005 em inglês, compreendendo relatos de casos, séries de casos, estudos transversais de prevalência e ensaios clínicos terapêuticos. Também se pesquisaram referências bibliográficas, mas não livros, e não se contatou os autores. Os termos empregados para a pesquisa foram: "ADHD", "pervasive", "autism", "ADD", "Asperger" e "PDD".

 

Resultados e discussão

Encontraram-se 10 artigos que atendiam às exigências da revisão, apresentados a seguir. Os resultados estão sumarizados na tabela 1.

 

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Estudos que investigaram a presença de sintomas de TDAH em pacientes com TID e o co-diagnóstico TDAH/TID

Luteijn et al. (2000) compararam 152 crianças com TDAH, 190 crianças com diagnóstico de TID SOE, 98 crianças com sintomas suficientes para o diagnóstico de TID e TDAH e 65 crianças com outros transtornos psiquiátricos (ansiedade, depressão, tiques ou somatização), quanto à presença de sintomas de desatenção, sintomas autistas e também quanto ao comprometimento social. O último grupo serviu como controle clínico.

Os grupos submeteram-se aos questionários respondidos pelos pais: CBCL (Child Behaviour Checklist), ABC (Autism Behaviour Checklist) e CSBQ (Childrens Social Behaviour Questionnaire). Os resultados indicaram que os sintomas de desatenção, utilizando-se a subescala de desatenção do CBCL, apresentavam pontuações semelhantes nos grupos de crianças com TID SOE e TDAH. Entretanto, no grupo de crianças com sintomas suficientes para um diagnóstico comórbido, a pontuação referente a sintomas de desatenção foi significativamente superior.

Os três grupos apresentaram maior desatenção quando comparados ao grupo controle. Os autores sugeriram que sintomas de desatenção são encontrados tanto em crianças com TID quanto em crianças com TDAH (em intensidades semelhantes), mas crianças com TID e TDAH possuem desatenção mais acentuada.

Ogino et al. (2005) estudaram uma amostra de 16 crianças com TID. Onze delas apresentavam síndrome de Asperger e 5 delas, autismo, sendo divididas em dois grupos conforme a idade: maiores de 6 anos (grupo I - n = 8) e menores de 6 anos (grupo II - n = 8). Todas as crianças eram avaliadas por meio de relatos dos pais e por observação direta dos pesquisadores, quanto a sintomas de hiperatividade e desatenção. Utilizaram-se os critérios da DSM-IV para o diagnóstico de TDAH, com exceção do critério E. Também se usou CBCL. Da amostra total, 6 crianças apresentaram sintomas suficientes para o diagnóstico de TDAH. Em uma segunda análise, correlacionaram-se sintomas de TDAH aos escores do CBCL. No grupo I, houve forte associação positiva entre o número de sintomas de desatenção e a pontuação de sintomas internalizantes. Verificou-se associação moderada entre a soma dos sintomas de desatenção e hiperatividade e os sintomas internalizantes. Já no grupo II, constatou-se correlação negativa entre o número de sintomas de hiperatividade/impulsividade e os sintomas internalizantes, sendo possível que aqueles sintomas possam mascarar um pouco a presença destes.

Os autores questionaram se sintomas de desatenção e hiperatividade, quando associados a sintomas autistas (medidos no CBCL), poderiam modificar o quadro clínico e o comprometimento social dessas crianças com TID.

Goldstein e Schwebach (2004) propuseram, de modo mais incisivo, a possibilidade do duplo diagnóstico TDAH/TID. De 27 crianças com TID avaliadas, 26% apresentavam critérios para TDAH do subtipo combinado e 33% para TDAH do subtipo com predomínio de desatenção (o subtipo com predomínio de hiperatividade não foi incluído). Apenas 41% apresentavam TID isoladamente; entretanto, mesmo essas crianças apresentavam alguns sintomas de TDAH (embora não o suficiente para o duplo diagnóstico). Entre as crianças com TDAH isoladamente, 20 foram estudadas (10 com diagnóstico de subtipo com predomínio de desatenção e 10 com diagnóstico de subtipo combinado).

Em uma segunda análise, esses grupos foram comparados, e os resultados demonstraram que crianças com TDAH/TID apresentavam maior comprometimento em atividades de casa e colégio em relação a crianças com TID isoladamente. A partir desses achados, os autores sugeriram a presença de dois transtornos distintos que, ao ocorrerem simultaneamente, agravariam o comprometimento funcional apresentado pelo paciente. Aqueles autores defendem o co-diagnóstico e questionam o critério de exclusão do diagnóstico de TDAH em pacientes com TID proposto pela DSM-IV.

Outro estudo, também publicado em 2004, demonstrou taxas elevadas de prevalência da comorbidade TID/TDAH. Yoshida e Uchiyama (2004) conduziram um estudo com 53 crianças que apresentavam TID de alto funcionamento (QI acima de 70). Entre estas, 33 apresentavam autismo, 3, síndrome de Asperger e 17, TID não especificado (SOE). Todas as crianças foram avaliadas quanto à presença de TDAH por meio dos critérios diagnósticos da DSM-IV. Os resultados encontrados indicaram que 67,9% da amostra atendia aos critérios diagnósticos para TDAH (como comorbidade). Entre estes, 22,6% possuíam subtipo combinado, 37,7%, subtipo com predomínio de desatenção e apenas 7,5%, subtipo com predomínio de hiperatividade/impulsividade. Quando dividida por subtipos de TID, 85% da amostra de TID SOE apresentava o duplo diagnóstico, enquanto apenas 57,6% da amostra de autistas apresentava TDAH.

A análise de sintomas isolados, tanto de desatenção quanto de hiperatividade/impulsividade, demonstrou que os primeiros eram mais prevalentes (60,4% versus 30,2% de prevalência). O seguimento (follow-up) de dois pacientes que receberam o duplo diagnóstico revelou importante melhora clínica quando ambos os diagnósticos foram considerados para tratamento. O tratamento farmacológico para TDAH com metilfenidato no primeiro caso representou melhora importante dos sintomas de desatenção e hiperatividade. No segundo caso, estratégias psicoeducacionais para TDAH representaram melhora clínica, embora não se tenha utilizado metilfenidato.

Holtmann et al. (2005) agregaram novos resultados positivos em favor do duplo diagnóstico. Os autores descreveram estudo feito em 104 crianças com diagnóstico de síndrome de Asperger e autismo de alto funcionamento, avaliadas com CBCL. Da amostra total, 65% apresentavam pontuação acima do cutoff clínico em subescala de desatenção. Quando a amostra era dividida entre pacientes com pontuação de desatenção acima e abaixo do cutoff sugerido, observou-se que os pacientes do primeiro grupo apresentavam maior quantidade de sintomas psíquicos globais, medidos por meio de outras subescalas do CBCL (à exceção de queixas somáticas e isolamento).

Os autores sugeriram que não só existe uma diferença importante entre o perfil sintomatológico dos dois grupos (que poderia ser explicada por um duplo diagnóstico), mas também salientaram que o grupo com desatenção possuía maior comprometimento funcional nas atividades diárias, quando comparado ao grupo com TID sem desatenção clinicamente significativa.

Estudos que investigaram sintomas autistas em pacientes com TDAH

Embora a maior parte dos estudos sobre a comorbidade de TDAH e TID se concentre na pesquisa de sintomas de TDAH em pacientes com diagnóstico de TID, alguns poucos pretenderam avaliar sintomas autistas em pacientes com TDAH. Clark et al. (1999) já haviam indicado a presença de sintomas autistas em pacientes com TDAH.

No estudo citado anteriormente, Luteijn et al. (2000) também relataram sintomas autistas na amostra de TDAH estudada. Quando comparados aos controles, os portadores de TDAH apresentavam maior comprometimento do funcionamento social na subescala do CBCL e em escalas para avaliação de comportamento autista, como o ABC e o CSBQ. Os autores também observaram que quando se comparavam os grupos TID SOE e TDAH, as pontuações nos questionários se revelavam próximas, embora menores no segundo grupo. Entretanto, quando as pontuações do grupo de TDAH e do grupo de TID SOE eram comparadas às do grupo controle, os valores eram significativamente mais altos. Os autores concluíram que na amostra estudada o comprometimento social avaliado era próximo entre as populações de TID SOE e TDAH, embora substancialmente maior quando comparado a uma amostra controle.

Estudos que sugeriram uma evolução clínica entre esses dois diagnósticos

O terceiro tipo de estudos envolve a possibilidade de um transtorno de maior gravidade (TID) evoluir para um quadro sintomático de outro transtorno de menor gravidade (no caso, o TDAH). Assim, ambos os transtornos estariam inseridos em um mesmo espectro.

Fein et al. (2005) descreveram uma série de três casos de pacientes com TID que foram submetidos a tratamento e, em subseqüente avaliação, revelaram atender aos critérios diagnósticos para TDAH, embora não mais o fizessem para o diagnóstico de transtorno invasivo.

No primeiro caso, o paciente recebeu o diagnóstico de TID SOE aos 2 anos de idade e iniciou tratamento que envolvia terapia comportamental e acompanhamento fonoterápico. Após 5 anos de tratamento, houve melhora importante dos sintomas autistas, não sendo mais atendidos os critérios para esse diagnóstico. Entretanto, o paciente apresentava quadro sintomático sugestivo de TDAH do subtipo combinado (oito sintomas de desatenção e seis sintomas de hiperatividade/impulsividade).

No segundo caso, o diagnóstico inicial fora de autismo, aos 3 anos de idade. O paciente submeteu-se ao mesmo tratamento descrito anteriormente. Em reavaliação feita aos 5 anos de idade, observaram-se melhoras importantes nos sintomas autistas, tendo, então, passado a apresentar quadro sintomático compatível com TID SOE. Em avaliações posteriores, os sintomas de TID diminuíram ainda mais, sendo percebidos, entretanto, sintomas importantes de desatenção. Em certo ponto do seguimento, o paciente apresentava sintomas suficientes para o diagnóstico de TDAH do subtipo com predomínio de desatenção.

No terceiro caso, também se atribuiu, aos 3 anos de idade, o diagnóstico de autismo. Com o emprego de técnicas comportamentais e tratamento fonoterápico, o paciente passou a apresentar sintomas mais brandos de TID, sendo posteriormente diagnosticado como TID SOE. Quando pesquisados sintomas de TDAH nessa ocasião, o paciente apresentava nove sintomas de desatenção e três de hiperatividade/impulsividade, atendendo aos critérios para TDAH subtipo com predomínio de desatenção.

Além da possibilidade de evolução entre os diagnósticos de TID e TDAH, os autores discutiram a hipótese da presença de comorbidade com TDAH desde precocemente. Levando-se em consideração que os pacientes receberam tratamento para TID, mas não para TDAH, é provável que os sintomas autistas tenham melhorado, enquanto os sintomas de desatenção e hiperatividade tenham permanecido inalterados, tornando-se mais evidentes no seguimento por não mais estarem eclipsados pelos sintomas graves de TID.

Ensaios clínicos terapêuticos em pacientes com TID e TDAH

Em 2004, Di Martino et al. avaliaram a segurança e a eficácia de uma dose única de metilfenidato como teste de tolerabilidade inicial para pacientes com TID apresentando sintomas de TDAH. Avaliaram também a eficácia do metilfenidato em tratamento de 3 meses de duração objetivando o controle de sintomas de hiperatividade e impulsividade. O ensaio clínico aberto incluiu 13 crianças com TID, com sintomas moderados ou graves de hiperatividade, sendo empregadas as Escalas Clinical Global Impression (CGI), Childhood Autism, Child Psychiatry e Conners Parent and Teacher Rating Scales (CPRS).

Entre as crianças acompanhadas, cinco foram retiradas do estudo após dose inicial de metilfenidato por apresentarem piora dos sintomas de hiperatividade, estereotipias, disforia ou tiques. Das oito crianças restantes, quatro não apresentaram melhora clínica inicial e quatro, alguma melhora após a primeira dose de metilfenidato. Todas foram seguidas por 12 semanas. Ao final do estudo, duas mantinham os sintomas de TDAH inalterados, mas seis apresentavam melhora significativa dos sintomas de hiperatividade e impulsividade. Embora se tratasse de estudo aberto com amostra pequena, os autores sugeriram que um teste inicial com metilfenidato poderia ser útil clinicamente.

Stigler et al. (2004) conduziram uma análise retrospectiva dos prontuários médicos de crianças e adolescentes com diagnóstico de TID tratados em algum momento com psicoestimulantes. Para a avaliação clínica de melhora, utilizou-se o CGI. Considerou-se resposta clínica positiva quando o CGI era pontuado como "melhor" ou "muito melhor". Entre os resultados obtidos, apenas 24,6% dos pacientes tiveram resposta positiva em uma primeira tentativa de tratamento com metilfenidato.

Entre os pacientes que não obtiveram resposta inicial, apenas 14% apresentaram resposta em uma segunda tentativa. Entre os que não melhoraram com uma segunda tentativa, novamente 14% responderam positivamente após a terceira tentativa. O grupo de pacientes com diagnóstico de Asperger obteve melhor resposta ao tratamento com psicoestimulantes que os grupos de TID SOE e autismo. A partir desses achados, os autores questionaram o uso de psicoestimulantes em pacientes com TID, levando em consideração a menor tolerabilidade e a pouca eficácia.

Outro estudo investigou a ação da guanfacina no tratamento de hiperatividade e desatenção em pacientes com TID. Posey et al. (2004) conduziram um estudo retrospectivo no qual analisaram 80 pacientes que participaram previamente de um ensaio aberto com guanfacina. Avaliaram-se eficácia e perfil de efeitos colaterais. Em 23,8% dos pacientes, o tratamento com guanfacina foi considerado efetivo. Separando os pacientes em três grupos diagnósticos, os pacientes com Asperger e TID SOE apresentaram melhor resposta à guanfacina que os pacientes com autismo. Quando comparados os pacientes com e sem retardo mental, aqueles apresentaram melhor resposta ao tratamento. Os autores sugeriram a possibilidade do uso de guanfacina em pacientes com TID e sintomas de desatenção e hiperatividade.

Em 2005, publicou-se um ensaio clínico multicêntrico, randomizado e controlado sobre o uso de metilfenidato em pacientes com TID e sintomas de hiperatividade. Nesse estudo, conduzido por Research Units on Pediatric Psychopharmacology (RUPP) Autism Network, 72 crianças com diagnóstico de TID e sintomas de hiperatividade (moderados a graves) foram acompanhadas.

O desenho do estudo compreendia três fases diferentes. Na primeira, todas as crianças recebiam três doses diferentes de metilfenidato (doses baixa, média e alta), calculadas em função de seu peso, variando entre 7,5 mg/dia e 50 mg/dia, em dias consecutivos. Na segunda fase, aquelas que revelaram boa tolerância aos efeitos colaterais do psicoestimulante recebiam placebo ou uma das três doses preestabelecidas de metilfenidato. Ao final de cada semana, em um total de quatro, as doses da medicação ou o placebo eram trocados (por meio de sorteio duplo-cego) de forma que todas as crianças usassem as quatro doses sugeridas, à exceção daquelas que não toleraram as doses mais altas. A terceira fase do estudo consistia em seguimento por mais 8 semanas dos pacientes que apresentaram boa resposta clínica ao metilfenidato, para melhor titulação de dose, sendo utilizados a subescala de hiperatividade do Aberrant Behavior Checklist (ABC) e o CGI-I.

Do total de crianças, 6 foram excluídas em virtude de efeitos colaterais importantes com o metilfenidato e 16 apresentaram efeitos colaterais com a dose mais alta. Para esses últimos, evitou-se a semana do estudo em que deveriam usar a dose mais alta, sendo repetida a dose intermediária. Observou-se superioridade do metilfenidato sobre os sintomas de hiperatividade, quando comparado ao placebo, com um tamanho de efeito entre 0,20 e 0,54, indicando uma magnitude de resposta pequena a mediana. Entre todos os pacientes, 49% obtiveram alguma resposta com o metilfenidato. Observou-se ineficácia com relação aos sintomas de irritabilidade, tiques, restrição social e linguagem inapropriada. A presença de efeitos colaterais levou à interrupção do tratamento em 18% do total inicial de 72 pacientes. Ao final, o metilfenidato apresentou eficácia no tratamento dos sintomas de hiperatividade, embora a magnitude de resposta tenha sido inferior à observada em pacientes com TDAH sem TID.

 

Conclusão

Os dados disponíveis na literatura indicam a necessidade de mais estudos sobre o diagnóstico duplo de TDAH e TID. Sabe-se que pacientes com TID possuem mais sintomas de inquietude e desatenção que uma população sem transtornos psiquiátricos. Entretanto, quando pacientes com TID são avaliados, observa-se que compõem um grupo bastante heterogêneo. Alguns indivíduos apresentam mais sintomas de desatenção e hiperatividade, com comprometimento funcional mais acentuado. Se essa diferença é importante, indica prognósticos potencialmente diferentes e também condutas terapêuticas diversas.

Levando-se em consideração a excelente resposta de sintomas de desatenção e hiperatividade/impulsividade aos psicoestimulantes, é razoável supor algum benefício do emprego destes, malgrado os poucos dados disponíveis sugerirem efeito nitidamente inferior ao esperado nos casos de TDAH sem comorbidade com TID.

Mesmo se tratando de transtornos distintos, alguns estudos indicam uma fisiopatologia comum.

Achados neuropsicológicos sugerem que ambos os transtornos são caracterizados por comprometimento de funções executivas (Pennington e Ozonoff, 1996), apesar de grande variabilidade fenotípica. Geurts et al. (2004) estudaram crianças com TDAH e crianças com autismo de alto funcionamento. Os autistas apresentavam dificuldade em quase todas as funções executivas, à exceção da memória operacional (de trabalho) e do controle de interferências externas. Pacientes com TDAH apresentaram déficit na inibição de respostas impulsivas e disfluência verbal. A comparação dos dois grupos revelou a ausência de perfis neuropsicológicos característicos, sendo a principal diferença a maior dificuldade de planejamento e de flexibilidade cognitiva nos autistas.

Os achados neuroanatômicos indicam algumas características comuns a ambos os transtornos. Em oposição ao que se observa no TDAH, pacientes autistas apresentam aumento do volume total do cérebro e também específico de regiões como o cerebelo, o caudado e o globo pálido (Piven et al., 1996). Ambos, entretanto, apresentam diminuição do corpo caloso (Saitoh et al., 1995). Em estudos de neuroimagem funcional, o achado que sobressai é a reduzida ativação das regiões frontotemporais em autistas (Baron-Cohen et al., 1999), o que também ocorre em pacientes com TDAH.

Vários estudos indicam que ambos os transtornos têm forte influência genética. Diversas regiões cromossomiais eleitas como possíveis contribuintes causais para o autismo - 2q24, 15q,16p13 e 17p11 - também são consideradas como potencialmente importantes em pacientes com TDAH (Smalley et al., 2002).

Todos esses achados sugerem uma correlação mais sólida entre TDAH e transtornos invasivos.

Os estudos revisados possuem limitações importantes que devem ser consideradas. Amostras pequenas indicam cautela na generalização dos dados apresentados. A inclusão de pacientes com diferentes tipos de TID, muitas vezes sem a avaliação de inteligência, também pode gerar um viés de seleção. O emprego de diferentes instrumentos de avaliação de sintomas e sua gravidade dificulta a comparação dos resultados.

Ainda assim, os dados existentes na literatura, obtidos com diferentes tipos de estudos, sugerem que a coexistência de sintomas de TDAH e de TID merece ser mais bem investigada, por potencialmente representar um subgrupo de pacientes com quadro clínico e comprometimento funcional distintos.

 

Referências

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Endereço para correspondência:
Daniel Segenreich
Rua Paulo Barreto, 91
22280-010 - Rio de Janeiro, RJ
E-mail: danielsegen@gmail.com


Artigo original:

http://www.scielo.br/scielo.php?script=sci_arttext&pid=S0101-60832007000400004&lng=pt&nrm=iso

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