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Transtorno de conduta em adolescente portador de retardo mental devido à síndrome da deleção do braço longo do cromossomo 18

Evelyn Kuczynski, Marta Cristina Ikeda Gondo, Celia Regina Cezar Rojo, Francisco B. Assumpção Jr.

7 de janeiro de 2010

Revista de Psiquiatria Clínica - VOLUME 26 - NÚMERO 4 - JULHO/AGOSTO  DE 1999

 

Transtorno de conduta em adolescente portador de retardo mental devido à síndrome da deleção do braço longo do cromossomo 18

 

Evelyn Kuczynski1, Marta Cristina Ikeda Gondo2, Celia Regina Cezar Rojo3, Francisco B. Assumpção Jr.4


RESUMO

Os autores descrevem adolescente do sexo masculino portador de retardo mental moderado e aberração cromossômica (síndrome do 18 q-), internado no SEPIA (Serviço de Psiquiatria da Infância e Adolescência do Instituto de Psiquiatria do Hospital das Clínicas da Faculdade de Medicina da Universidade de São Paulo) devido a problemas graves de conduta, recebendo alta em boas condições com a instituição de clorpromazina em baixas doses, além de ambiente continente e orientação familiar. Discutem-se transtornos mentais prevalentes em portadores de alterações genéticas associadas a retardo mental.

Unitermos: Transtorno de conduta; Retardo mental; Adolescência; Alterações cromossômicas; Cromossomo 18.

 

ABSTRACT

Conduct disorder in a mentally retarded adolescent with chromosome 18 long arm deletion syndrome

The authors describe a male adolescent with moderate mental retardation due to chromosomal aberration (18 q- syndrome), admitted to SEPIA with severe behavioral problems and discharged in good conditions with low doses of chlorpromazine, after institution of a continent "milieu" and familiar orientation. They also discuss mental disorders prevailing in patients with mental retardation due to genetic aberrations.

Keywords: Behavioral disorder; Mental retardation; Adolescence; Chromosomal aberrations; Pair 18.

 


INTRODUÇÃO

A síndrome da deleção do braço longo do cromossomo 18 (síndrome do 18q-) é uma afecção rara, identificada em 1964 (De Grouchy et al., 1964), com retardo mental, síndrome autística, comportamento disruptivo, dismorfismos (hipoplasia médio-facial, boca "em forma de carpa", canais auditivos externos atrésicos, fissuras palpebrais oblíquas), distúrbios de crescimento, imunodeficiência, sintomas neurológicos leves, como incoordenação motora, ataxia, tremores (Miller et al., 1990) e alterações de substância branca (Gay et al., 1997), fato que aventa a hipótese de ocorrer prejuízo na síntese da proteína básica da mielina. No entanto, devido a pouco mais de 100 casos terem sido identificados (Dowton et al., 1997), tais alterações não podem ser consideradas como características específicas da síndrome. Vêm sendo descritas novas características associadas, como alterações vertebrais (Dowton et al., 1997) e deficiência de carnosinase (Willi et al., 1997). Ainda não se conseguiu definir em que extensão os transtornos comportamentais estão associados ao tamanho da deleção ou se estabelecer relação entre essa e o tipo e/ou grau de alterações neurológicas (Mahr et al., 1996). Em função da freqüente associação de transtornos psiquiátricos a anormalidades cromossômicas (Kuczynski, 1996), descreveremos portador dessa síndrome seguido no SEPIA (Serviço de Psiquiatria da Infância e Adolescência do Instituto de Psiquiatria do Hospital das Clínicas da Faculdade de Medicina da Universidade de São Paulo) devido a graves problemas de conduta, visando chamar a atenção para a presença dessas alterações comportamentais em pacientes portadores de retardo mental devido a alterações genéticas. Cabe, entretanto, ressaltar que as alterações comportamentais descritas também não são características, uma vez que todas as descrições se preocupam muito mais com as características fenotípicas que com os transtornos de comportamento que, dessa maneira, não são específicos.

 

RELATO DE CASO

W.A.M., sexo masculino, 16 anos, procedente da Capital. Primogênito, com irmã de 14 anos, saudável. Pais não consangüíneos. Tia paterna com deficiência física congênita e primo materno com síndrome de Down. Hipoatividade relativa intra-útero, sem outras intercorrências. Parto vaginal a termo, após trabalho de parto prolongado, nascendo "muito roxo e machucado", evoluindo com conjuntivite. Internação aos 40 dias de vida por infecção urinária; convulsão febril (episódio isolado) nesse período. Seguimento neuropediátrico desde os 4 anos devido a retardo psicomotor (sentou aos 12 meses; andou aos 23 meses; primeiras palavras aos 4 anos), com diagnóstico de síndrome do 18 q-. Dificuldades com a alimentação sólida, devido à hipotonia que apresentava. Atualmente independente nas atividades de vida diária sob supervisão. Seguimento escolar irregular, com expulsões freqüentes.

Internado em 27/05/98, referindo a família que, nos últimos 4 ou 6 anos, W. vem sendo mais agressivo, com crises incontroláveis pela família, sem alterações de sono ou apetite. Afastado da escola devido às constantes crises de agressividade e seus prejuízos (danos aos veículos das escolas, eletrodomésticos e mobílias de sua casa; agrediu professores e colegas, pais e irmã; destruiu a porta de vidro da portaria de seu prédio). Recusado por crianças com quem tenta iniciar algum vínculo de amizade, mas se mostrando motivado para tal. A restrição do círculo de relações estendeu-se à família, que as evita, com receio das crises do paciente. Ao exame físico, apresenta estatura de 1,62 m (no percentil 10 para sua faixa etária), perímetro cefálico de 56 cm (normal), hipoplasia médio-facial, boca "em forma de carpa", canais auditivos externos atrésicos, fissuras palpebrais oblíquas (figura 1).

 

 

Figura 1 _ Fácies típica da Síndrome do 18 q-, apresentando hipoplasia médio-facial, boca "em forma de carpa" e fissuras palpebrais oblíquas.

Ao exame psíquico, inteligência diminuída, prejuízo fono-articulatório, fala rouca e baixa, pensamento pobre, discurso monossilábico e lentificação psicomotora. Demais aparelhos, sistemas e funções psíquicas não apresentam alterações significativas. Tanto pelo 
CID-10 (OMS, 1993) quanto pelo DSM-IV (APA, 1994), diagnosticamos: transtorno de conduta associado a retardo mental moderado e anormalidade cromossômica. Apresentava: ressonância magnética recente normal; potencial evocado de tronco com disacusia mista; cariótipo 46 XY, 18q- (deleção do braço longo do cromossomo 18), e demais exames sem alterações. Avaliação psicológica demonstrou retardo mental moderado (Escala de Maturidade de Columbia de 38 para 92; Inteligência Não-verbal no percentil 10 para 11 anos; Escala Especial Total de Raven com percentil 10 para 11 anos) e déficits instrumentais difusos. Avaliação social familiar detectou núcleo familiar negando os déficits do paciente, até o problema fugir a seu controle. Haveria pressão da parte do pai para que a mãe abandonasse seu vínculo empregatício e se dedicasse aos cuidados com o paciente, e a mãe sente-se indignada por abandonar a carreira para tornar-se "como as mães de outros pacientes _ sempre atrás do filho e sem vida própria". Alta após 18 dias de internação, com melhora significativa da conduta desde os primeiros dias na Enfermaria, fato atribuído ao ambiente continente do hospital e à orientação gradativa da família no contato com a Equipe, visto terem ingressado no hospital extremamente desestruturados e inseguros quanto à conduta a ser tomada, respondendo o menor favoravelmente à firme imposição de limites. Medicado com clorpromazina até a dose de 300 mg/dia e biperideno 2 mg/dia, sem efeitos colaterais significativos, evolui satisfatoriamente em seguimento ambulatorial, com busca de nova inserção escolar.

 

DISCUSSÃO

O paciente em questão apresenta várias das características descritas na síndrome do 18 q-: vigilância para baixa estatura, hipoplasia médio facial, boca em forma de "carpa", atresia de conduto auditivo externo e fissuras palpebrais oblíquas (De Grouchy et al., 1964). No entanto, devido à inexistência de sinais patognomômicos, a suspeita clínica deve seguir o mesmo procedimento observado na investigação das demais patologias genéticas. De acordo com Newell (1988), a associação de retardo mental com pelo menos três estigmas disgenéticos já justificaria, per se, essa suspeita, que deveria então ser, ou não, confirmada laboratorialmente. O retardo mental que apresenta contribuiu para o comportamento disruptivo que motivou a internação (Assumpção Jr., 1994; Mahr et al., 1996). Chama a atenção a negação dos pais quanto aos déficits do filho, o que contribuiu muito para a inadequada instituição de limites, crucial no desenvolvimento de transtorno de conduta na infância (Assumpção Jr., 1994). Esses padrões de comportamento familiar, embora também não possam ser considerados característicos da síndrome, são observados em famílias de pacientes crônicos com distúrbios de desenvolvimento, que, em função desses, se organizam com dificuldades na expressão afetiva, comunicacional, de delimitação de papéis e de regras educacionais (Sprovieri, 1998). As expectativas quanto ao comportamento do paciente também estão além do potencial real, sendo fator de grande contribuição para exigências excessivas do meio em que o paciente se insere, levando a maior freqüência de crises disruptivas. A utilização de neuroléptico contribuiu para a melhora da conduta do paciente e um maior asseguramento da família quanto à condução desse, e o ambiente mais continente da Enfermaria foi o grande diferencial para a evolução favorável do caso. A eficácia do uso de neurolépticos não pode ser avaliada em relação a outros casos semelhantes, uma vez que poucos são os casos descritos e, desses, nenhum enfatizou o problema comportamental. É importante que o psiquiatra e o pediatra estejam cientes da contribuição de aspectos dinâmicos e familiares para transtornos psiquiátricos 
em portadores de retardo mental, mesmo quando decorrentes de fatores genéticos, visando uma otimização da terapêutica e seguimento.

 


REFERÊNCIAS

American Psychiatric Association (APA) _ Diagnostic and Statistical Manual of Mental Disorders. 4th Ed. Washington, D.C.: American Psychiatric Association, 1994.

Assumpção JR., F.B. _ Deficiência mental. In: Assumpção JR., F.B. (ed.) Psiquiatria da infância e da adolescência. São Paulo: Santos _ Maltese, pp. 139-156, 1994.

De Grouchy, J. et al. _ Délétion partielle du bras long du chromosome 18. Path Biol. 12: 579, (Paris), 1964. In: Jones, K.L. (ed.) Smith's recognizable patterns of human malformation. 5th ed. Philadelphia: W. B. Saunders Company, pp. 66-67, 1997.

Dowton, S.B.; Hing, A.V.; Sheen-kaniecki, V. & Watson, M.S. _ Chromosome 18q22.2—>qter deletion and a congenital anomaly syndrome with multiple vertebral segmentation defects. J Med Genet, 34(5): 414-417, 1997

Gay, C.T.; Hardies, L.J.; Rauch, R.A.; Lancaster, J.L.; Plaetke, R.; Dupont, B.R.; Cody, J.D.; Cornell, J.E.; Herndon, R.C.; Ghidoni, P.D.; Schiff, J.M.; Kaye, C.I.; Leach, R.J. & Fox, P.T. _ Magnetic ressonance imaging demonstrates incomplete myelination in 18q- syndrome: evidence for myelin basic protein haploinsufficiency. Am J Med Genet, 74(4): 422-431, 1997.

Kuczynski, E. _ Anormalidades cromossômicas esporádicas associadas à síndrome autística. Infanto _ Rev Neuropsiq da Inf e Adol, 4(2): 26-36, 1996.

Mahr, R.N.; Moberg, P.J.; Overhauser, J.; Strathdee, G.; Kamholz, J.; Loevner, L.A.; Campbell, H.; Zackai, E.H.; Reber, M.E.; Mozley, D.P.; Brown, L.; Turetsky, B.I. & Shapiro, R.M. _ Neuropsychiatry of 18q- syndrome. Am J Med Genet, 67(20): 172-178, 1996.

Miller, G.; Mowrey, P.N.; Hopper, K.D.; Frankel, C.A. & Ladda, R.L. _ Neurologic manifestations in 18 q- syndrome. Am J Med Genet, 37: 128-132, 1990

Newell, S.J. & Green, S.H. _ Diagnostic classification of the aetiology of mental retardation in children. Brit Med J, 294: 163-166, 1987.

Organização Mundial De Saúde (OMS) _ Classificação de transtornos mentais e de comportamento da CID-10: descrições clínicas e diretrizes diagnósticas. (Trad. de Dorgival Caetano). Porto Alegre: Artes Médicas, 1993.

Sprovieri, M.H. _ Stress, alexitimia e dinâmica familiar em famílias de portadores de autismo. Tese de Doutorado em Serviço Social apresentada à PUC-SP, 1998.

Willi, S.M.; Zhang, Y.; Hill, J.B.; Phelan, M.C.; Michaelis, R.C. & Holden, K.R. _ A deletion in the long arm of chromosome 18 in a child with serum carnosinase deficiency.Pediatr Res, 41(2): 210-213, 1997.

 

 



1 Pediatra. Psiquiatra da Infância e Adolescência. Mestranda pela Faculdade de Medicina da Universidade de São Paulo (FMUSP).

2 Psicóloga do Instituto de Psiquiatria do Hospital das Clínicas da Faculdade de Medicina da Universidade de São Paulo (IPq-HC-FMUSP), sediada no Serviço de Psiquiatria da Infância e Adolescência do Instituto de Psiquiatria do Hospital das Clínicas da Faculdade de Medicina da Universidade de São Paulo (SEPIA-IPq-HC-FMUSP).

3 Assistente Social comissionada no SEPIA-IPq-HC-FMUSP.

4 Professor Livre-docente em Psiquiatria pela Faculdade de Medicina da Universidade de São Paulo. Diretor Técnico do SEPIA-IPq-HC-FMUSP.

Endereço para correspondência: Evelyn Kuczynski. SEPIA-IPq-HC-FMUSP _ R. Dr. Ovídio Pires de Campos, s/ nº CEP 05403-900 Cerqueira César _ São Paulo, SP _ Tel.: (0XX11) 3069-6508; Fax: (0XX11) 853-0228.


Artigo original:

http://www.hcnet.usp.br/ipq/revista/vol26/n4/artigo(207).htm

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