Artigos Científicos

Autismo e Síndrome de Dandy Walker

A.Pereira. E.Kuczynski; FB. Assumpção Jr.

22 de fevereiro de 2006

   Este artigo foi publicado na revista ARQUIVOS BRASILEIROS DE PSIQUIATRIA, NEUROLOGIA E MEDICINA LEGAL 99(4):21-23; Out/Nov/Dez. 2005

AUTISMO ASSOCIADO À SÍNDROME DE DANDY-WALKER: RELATO DE CASO (AUTISM ASSOCIATED TO DANDY-WALKER SYNDROME: CASE REPORT)

   Adriana Pereira1; Evelyn Kuczynski2; Francisco B. Assumpção Jr.3

   1 Psiquiatra da Infância e da Adolescência.
   2 Pediatra. Psiquiatra da Infância e da Adolescência. Doutora em Psiquiatria pela FMUSP. Médica Assistente do Serviço de Oncologia Pediátrica do Instituo da Criança do HC-FMUSP.
   3 Psiquiatra da Infância e da Adolescência. Doutor em Psicologia Clínica pela Pontifícia Universidade Católica de São Paulo (PUC-SP). Livre Docente em Psiquiatria pela FMUSP. Professor associado do departamento de Psicologia Clínica do Instituto de Psicologia da USP.

   Endereço para correspondência: Evelyn Kuczynski
R José Maria Lisboa, 20 apto. 705 – Jardim Paulista – CEP 01423-000 – SP (Capital) - Brasil
e-mail: ekuczynski@uol.com.br

AUTISMO ASSOCIADO À SÍNDROME DE DANDY-WALKER: RELATO DE CASO (AUTISM ASSOCIATED TO DANDY-WALKER SYNDROME: CASE REPORT)

   Adriana Pereira; Evelyn Kuczynski; Francisco B. Assumpção Jr.

   RESUMO: Descreve-se um paciente do sexo feminino, de 7 anos de idade, portador de autismo infantil, em associação à Síndrome de Dandy-Walker. Discute-se o possível papel do cerebelo na fisiopatologia de ambas as síndromes.
   Palavras-chave: Autismo Infantil, Síndrome de Dandy-Walker, Cerebelo.
   ABSTRACT: A 7-year-old female patient with autism and Dandy-Walker Syndrome is described. The cerebellum’s role on both syndromes’ physiopathology is discussed.
   Key-words: Autism, Dandy-Walker Syndrome, Cerebellum.

   INTRODUÇÃO

   O autismo se caracteriza por um desenvolvimento comprometido ou acentuadamente anormal da interação social e da comunicação, e um repertório muito estreito de atividades e interesses, observados antes dos três anos de idade. Estas manifestações variam intensamente, dependendo do nível de desenvolvimento e da idade cronológica do indivíduo1. Sua associação a inúmeras síndromes genéticas tem sido relatada2,3,4, como por exemplo, à Síndrome de Down, Síndrome de Aarskog, Fenilcetonúria, entre outras.
   A Síndrome de Dandy-Walker é uma malformação do Sistema Nervoso Central caracterizada por hidrocefalia, ausência parcial ou completa do vermis cerebelar e cisto da fossa posterior, contígua ao quarto ventrículo. De etiologia heterogênea, acompanha-se de uma variedade de achados anatômicos, clínicos e genéticos5. O prognóstico pode ser bom, caso a hidrocefalia seja tratada precocemente. No entanto, o retardo mental parece estar mais relacionado às anomalias cerebrais do que à hidrocefalia6.
   A Síndrome de Dandy-Walker tem sido relatada em associação a outros transtornos neurológicos e psiquiátricos, tais como a Síndrome de Ellis-Van-Creveld7, a Síndrome de Down8, crises pseudo-convulsivas6 e quadros psicóticos9. Apresentar-se-á, a seguir, a descrição de uma paciente autista, portadora da Síndrome de Dandy-Walker, sendo, a princípio, a primeira a ser descrita na literatura.

   RELATO DE CASO

   A.R.S., 7 anos, sexo feminino, negra, natural da Bahia e procedente de São Paulo (Capital), é a quinta filha de uma prole de seis. A genitora refere que, durante o pré-natal, foi detectado, pela ultrassonografia obstétrica, ser a criança portadora de “problemas no cérebro”. Segundo relata, sofreu ameaça de abortamento espontâneo no primeiro trimestre, requerendo uso de medicações (não sabe informar quais) e repouso, sem outras intercorrências obstétricas a partir de então. Nascida de parto normal a termo, A. chorou ao nascer, recebendo o diagnóstico de hidrocefalia congênita e Síndrome de Dandy-Walker quando da alta hospitalar precoce, acompanhada da mãe.
   Foi mantida com aleitamento misto até os oito meses de idade. Com um mês de vida, sofreu uma internação de curta duração, por pneumonia. Foi realizada derivação ventrículo-peritoneal quando contava cinco meses de vida, e herniorrafia inguinal bilateral, com um ano de idade. Apresentou antecedente de episódio único de convulsão (não febril) aos 12 meses de vida. Falou aos dois anos, engatinhou aos quatro anos, andou aos cinco anos e adquiriu controle esfincteriano aos cinco anos de idade.
   Segundo informa a genitora, sempre foi uma criança agitada, “estranha”, isolada, com pouco contato visual e ausência de sorriso social. Só repetia o que ouvia, mas nunca apresentou fala com intuito comunicacional. Apresentou dificuldade na introdução de dieta sólida, com aceitação muito restrita em alguns períodos de seu desenvolvimento. Começou a freqüentar escola especial apenas recentemente (devido às dificuldades financeiras do núcleo familiar e escassez de recursos gratuitos), apresentando melhora gradativa do comportamento e da socialização desde então. Faz acompanhamento no Serviço de Endocrinologia Pediátrica do Hospital das Clínicas devido a puberdade precoce. Já fez uso de levomepromazina, sem melhora do quadro de agitação, e apresentou náuseas (seguida de vômitos) à sua ingestão.
   Ao exame psíquico de admissão, apresentava-se cuidada, inquieta, com ecopraxia, ecolalia, contato visual fugaz e inconsistente e pobre ressonância afetiva, não colaborando com a entrevista. Durante o seguimento, vem apresentando melhora do contato e da linguagem, mantendo a ecopraxia. Atualmente, responde de forma adequada quando interpelada. Apresenta movimentos estereotipados (flapping), na verdade ecopraxias, visto que a mãe os associa à imitação da conduta de colegas da escola.
   À tomografia computadorizada de crânio inicial, apresentava acentuada dilatação, de tipo hipertensivo, dos ventrículos supra tentoriais. O quarto ventrículo apresentava amplo cisto de Dandy Walker, com cisternas e sulcos corticais patentes no compartimento supra-tentorial, e apagados, na fossa posterior. A ressonância nuclear magnética de encéfalo evidenciou acentuada dilatação do sistema ventricular supratentorial e a presença de formação cística na fossa posterior, que se comunica com o quarto ventrículo, estando associada a hipoplasia do vermis, elevação da tórcula e afilamento do parênquima encefálico, que apresenta sinal normal.. À aplicação da Vineland Adaptive Behavior Scale10, apresenta desempenho adaptativo compatível com retardo mental grave.
   Diante do quadro apresentado, caracterizado por prejuízo na socialização (ausência de sorriso social e contato visual, isolamento social), linguagem (ecolalia), além de comportamentos estereotipados e ecopraxia, foi firmado o diagnóstico de autismo infantil e deficiência mental grave11 associado à Síndrome de Dandy-Walker, além de puberdade precoce.

   DISCUSSÃO

   O cerebelo, já há muito, tem bem detalhado seu papel relacionado, exclusivamente, ao controle da função motora e oculomotora12. No entanto, mais recentemente, alguns estudos têm evidenciado seu papel na coordenação e integração de uma gama de processos, como a função autonômica, límbica e cortical superior, que envolve a percepção, emoção e processos cognitivos. Estas funções psíquicas são mediadas por inúmeras conexões entre o cerebelo e o sistema reticular ascendente, núcleo motor, sistema límbico, tálamo e todas as regiões do córtex cerebral13.
   Vários transtornos psiquiátricos têm sido descritos em associação a alterações cerebelares, sendo um exemplo a associação de esquizofrenia e atrofia difusa ou localizada do cerebelo, principalmente do vermis cerebelar14,15,12. Características autísticas foram descritas na Síndrome de Joubert, um transtorno autossômico recessivo caracterizado por agenesia total ou parcial do vermis cerebelar16. Alterações no cerebelo têm sido relatadas no autismo, como a diminuição do parênquima do hemisfério e parte neocerebelar do vermis, perda de células de Purkinje e granulomatosas do neocórtex cerebelar17,18.
   Alguns estudos de neuroimagem têm relatado anormalidades cerebelares, porém tais achados são controversos19,20,17. Hardam et al.21 não encontraram alteração do vermis e observaram aumento do volume total do cerebelo em portadores de autismo sem associação a retardo mental, fato já comprovado por outros autores. Seu achado foi consistente com os achados neuropatológicos, que têm apontado para o envolvimento do cerebelo na fisiopatologia do autismo. Esta evidência surgiu a partir dos estudos do cerebelo nos processos cognitivos, através do circuito córtico-cerebelo-tálamo-cortical22.
   A atrofia do vermis cerebelar, encontrada na Síndrome de Dandy –Walker, pode estar relacionada aos sintomas autísticos do presente caso, embora estudos realizados até o momento tenham sido controversos em seus achados, ao tentar relacionar a atrofia cerebelar e o autismo. Assim, apesar de tratar-se do primeiro caso descrito na literatura correlacionando tais características, a coexistência de autismo e Síndrome de Dandy-Walker pode ser fruto de mera coincidência, uma vez que a hipoplasia do vermis cerebelar não é um marcador neuroanatômico do autismo23. No entanto, a possibilidade de uma relação entre as duas entidades, embora rara, não pode ser descartada, sendo necessários estudos mais extensos e detalhados a este respeito.


   REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS:

1. American Psychiatric Association (APA). Diagnostic and statistical manual of mental disorders. 4th Edition. (Text Revision). Washington, D.C.: APA, 2000.
2. Assumpção Jr. FB. Diagnóstico Diferencial. In: Schwartzman JS, Assumpção Jr. FB. Autismo infantil. São Paulo: Memnon Editora, 1995, p. 125-146.
3. Kuczynski E. Anormalidades cromossômicas esporádicas associadas à síndrome autística. Infanto – Rev Neuropsiq Inf Adol 1996;4(2):26-36.
4. Assumpção Jr. FB. Brief report: a case of chromosome 22 alteration associated with autistic syndrome. J Autism Dev Disord 1998;28(3):253-256.
5. Stoll C, Huber C, Alembik Y, Terrade E, Mairot D. Dandy-Walker variant malformation, spastic paraplegia and mental retardation in two sibs. Am J Med Genetics 1990;37:124-127.
6. Iancu I, Kotler M, Lauffer N, Dannon P, Lepkifker E. Seizures and the Dandy-Walker syndrome: a case of suspected pseudoseizures. Psychother Psychosom 1996;65:109-111.
7. Christian JC, Dexter RN, Palmer CG, Muller JA family with three recessive traits and homozigosity for a long 9qh+ chromossome segment. Am J Med Genet 1980;6:301-308.
8. Constantini S, Pomeranz S, Hoffman B, Martin O, Rappaport ZH. Coexistence of Dandy-Walker syndrome and Down’s syndrome. Neurochirurgia 1989;32:56-57.
9. Turner SJ, Poole R, Ghadiali EJ. Schizophrenia-like psychosis and Dandy-Walker variant. Schizophrenia Research 2001;48:361-370.
10. Sparrow SS, Balla DA, Cicchetti DV. Vineland Adaptive Behavior Scales. Circle Press, MN: American Guidance Service, 1984.
11. World Health Organization (WHO). The ICD-10 Classification of Mental and Behavioural Disorders: Clinical Descriptions and Diagnostic Guidelines. Geneve: WHO, 1992.
12. Hamilton NG, Frick RB, Takahashi T, Hopping MW. Psychiatric symptoms and cerebellar pathology. Am J Psychiatry 1983;140(10):1322-1326.
13. Martin P, Albers M. Cerebellum and Schizophrenia: a selective review. Schizophr Bulletin 1995;21(2):241-250.
14. Nasrallah HA, McCalley-Whitters M, Jacoby CG. Cortical atrophy in schizophrenia and mania: a comparative CT study. J Clin Psychiatry 1982;43(11):439-441.
15. Lippmann S, Manshadi M, Baldwing H, Drasin G, Rice J, Alrajeh S. Cerebellar vermis dimension on computadorized tomographic scans of schizophrenic and bipolar patients. Am J Psychiatry 1982;139(2):667-668.
16. Holroyd S, Reiss AL, Bryan RN. Autistic features in Joubert syndrome: Genetic disorder with agenesis of the cerebellar vermis. Biol Psychiatry 1991;29:287-294.
17. Piven J, Arndt S, Bailey JBS, Havercamp SBS, Andreasen NC, Palmer P. An MRI study of brain size in autism. Am J Psychiatry 1995;152(8):1145-1149.
18. Pierce K, Courchesne E. Evidence for a cerebelar role in reduced exploration and stereotiped behavior in autism. Biol Psychiatry 2001;49:655-664
19. Holtum JH, Minshew NJ, Sanders RS, Phillips NE. Magnetic resonance imaging of the posterior fossa in autism. Biol Psychiatry 1992;32:1091-1101.
20. Piven J, Nehme E, Simon J, Barta P, Pearlson G, Folstein SE. Magnetic resonance imaging in autism: measurements of the cerebellum, pons and fourth ventricle. Biol Psychiatry 1992;31:491-504.
21. Hardan AY, Minshew NJ, Harenski K, Keshaven MS. Posterior fossa magnetic resonance imaging in autism. J Am Acad Child Adolesc Psychiatry 2001;40(6):666-672.
22. Nopoulos PC, Ceiley JW, Gailis EA, Andreasen NC. An MRI study of cerebellar vermis morphology in patients with schizophrenia: evidence in support of the cognitive dysmetria concept. Biol Psychiatry 1999;46:703-711.
23. Haas RH, Townsend J, Courchesne E, Lenioln AJ, Schreibman L, Yeug-Courcesne R. Neurologic abnormalities in infantile autism. J Child Neurol 1996;11(2):84-92.

O portal Psiquiatria Infantil.com.br já recebeu

46.678.090 visitantes