Artigos Científicos

Dor abdominal recorrente na criança como sintoma da família

Bianca Bernardes; Elisa Kern de Castro

19 de janeiro de 2015

Psic.: Teor. e Pesq. vol.26 no.2 Brasília abr./jun. 2010

 

Dor abdominal recorrente na criança como sintoma da família

 

Bianca Bernardes; Elisa Kern de Castro1

Universidade do Vale do Rio dos Sinos

 


RESUMO

O objetivo do estudo foi analisar a dinâmica familiar de crianças com dor abdominal recorrente, investigando se fatores comuns em famílias psicossomáticas, como conflitos conjugais, família emaranhada, superprotetora, rígida e/ou com ausência de resolução de conflitos estavam relacionados ao sintoma da criança. O delineamento utilizado foi estudo de casos múltiplos. Foram realizadas entrevistas e foi construído um genograma com as mães de quatro crianças. Percebeu-se a presença de fatores comuns em famílias psicossomáticas associados ao sintoma da criança. Observou-se vínculos conturbados, a existência de eventos estressores anteriores ao sintoma, além da ocorrência de perdas reais ou simbólicas. As famílias parecem ser matrifocais e os pais, mesmo nos casos em que estão presentes, parecem virtuais.

Palavras-chave: família psicossomática; criança; dor abdominal recorrente.


ABSTRACT

The purpose of this study was to analyze the family dynamics of children with recurrent abdominal pain without organic cause. It was investigated whether common factors in psychosomatic families such as parental conflicts, relationship enmeshments, overprotectiveness, rigidity, and/or lack of conflict resolution were related with child symptoms. The design was a multiple case study. Interviews and the construction of a genogram were conducted with mothers of four children. It was observed an association between common factors in psychosomatic families and the child's recurrent abdominal pain. Disturbed bonds, stressful events prior to the symptoms, and the occurrence of real or symbolic losses were noticed. The families seem to focus on the mother while the fathers, even when present, are virtual.

Keywords: psychosomatic family; child; recurrent abdominal pain.


 

 

O conceito 'família psicossomática' foi introduzido por Minuchin (1974/1982; Minuchin Baker, Rosman, Liebman, Milman & Todd, 1975) e refere-se a algumas organizações familiares que reforçam e mantêm sintomas psicossomáticos nos seus membros. Esses grupos familiares geralmente se comunicam por meio de uma linguagem traduzida em sintomas, não havendo mensagens verbais na medida adequada (Rios-Gonzalez, 1994). Em muitos casos, o aparecimento de sintomas físicos na criança pode estar demonstrando alguma disfunção no funcionamento familiar. Dessa forma, o presente artigo objetiva examinar o funcionamento de famílias com crianças que apresentam sintoma psicossomático, especificamente a dor abdominal recorrente (DAR).

Os sintomas somáticos, conforme McDougall (1989/1996), são apresentados como resposta a conflitos através dos quais o psiquismo, de maneira primitiva e não verbal, envia mensagens somaticamente. Os somatizadores não percebem suas emoções em situações angustiantes devido a uma clivagem entre psique e soma e, ao invés de expressarem emoções dolorosas verbalmente, o fazem psicossomaticamente. Nesse sentido, a somatização tem sido associada à depressão, ansiedade, hostilidade reprimida, raiva, repressão do sofrimento emocional, perdas, eventos estressores e alexitimia, que consiste na dificuldade de verbalizar emoções e expressar sentimentos (Beck, 2008; Kellner, 1990; Pinto & Duarte, 2008).

A criança é o centro das atenções da família nuclear, sendo o depósito de fantasias, projetos, frustrações e expectativas desse grupo, o que a torna propensa a ser um membro sintomático (Ariès, 1960/1981). Dessa forma, um sintoma manifesto na criança considerado patológico pelo meio pode ser, na verdade, um protesto sadio ou uma prova da psicopatologia ambiental (Marcelli, 1982/1998).

Assim, quando uma criança somatiza, ela pode não ser o problema, mas o sinalizador de angústias familiares (Andolfi & Haber, 1998). Os sintomas psicossomáticos na criança servem para manter a homeostase familiar, evitando o conflito do grupo e garantindo sua harmonia (Andolfi & Haber,1998; Beck, 2008; Carter & McGoldrick, 1989/2001; Garralda, 1996). O sintoma na criança torna-se a maior preocupação da família e tira do foco de atenção as insatisfações individuais dos membros, os conflitos transgeracionais e os problemas conjugais dos pais encobertos ou evidentes (Andolfi & Haber, 1998; Carter & McGoldrick, 1989/2001).

A literatura internacional (Chitkara, Rawat & Talley, 2005; Garralda, 1996) e nacional (Pinto, 2007; Pinto & Duarte, 2008) indicam que alguns fatores familiares podem contribuir para o surgimento de sintomas somáticos na criança, tais como: altas taxas de problemas de saúde e psicológicos na família; reforço familiar de comportamento doente; ansiedade para experienciar sintomas físicos: perda de pessoas importantes; uso de drogas e álcool por membros da família, entre outros. A relação mãe-pai-filho perturbada também contribui para o aparecimento e a manutenção de sintomas somáticos na criança (Beck, 2008; Craig, Cox & Klein, 2002).

Algumas características das famílias psicossomáticas podem contribuir para o surgimento e/ou reforço do sintoma da criança: emaranhamento, superproteção e rigidez (Minuchin & cols., 1975; Rios Gonzáles, 1994). A família emaranhada se caracteriza por relacionamentos interdependentes, intrusivos, partilha excessiva, falha na autonomia individual e frágeis limites entre os subsistemas familiares. Nesses grupos, os membros permanecem unidos em torno da doença (Craig, Cox & Klein, 2002; Garralda, 1996). A superproteção consiste na preocupação excessiva dos membros com o bem estar uns dos outros, prejudicando o desenvolvimento da autonomia e da competência destes. A criança psicossomática se sente responsável por proteger a família por meio do seu sintoma (Minuchin & cols., 1975; Rios-Gonzalez, 1994). Por fim, a família rígida apresenta dificuldades em lidar com mudanças e busca de autonomia, e insiste em conservar modos costumeiros de interação. Quando a família se aproxima do limiar de tolerância para conflitos, a criança adoece, desviando a atenção para si. Esses grupos familiares, apesar de se dizerem normais, vivem em tensão. O "único" problema fica sendo a doença da criança, e é negada qualquer necessidade de mudança na família (Minuchin & cols., 1975).

Para Rios-González (1994), em muitos casos as famílias psicossomáticas são sustentadas por um forte código religioso ou de ética, que sustenta uma racionalização para evitar conflitos, e por isso, negociação de diferenças são proibidas. Portanto, problemas não são bem resolvidos, frequentemente ameaçando e ativando os circuitos de evitação do sistema. Essa organização familiar baseada na lealdade, proteção e evitação de conflitos, é abalada nas crises normais do desenvolvimento, que são inevitáveis e costumam precipitar o episódio psicossomático.

Minuchin e cols. (1975) descrevem três modelos de interação familiar associados à somatização. Na triangulação, a criança é impedida de se expressar sem apoiar um dos progenitores e contrariar o outro. Na aliança entre um dos pais e a criança, esta tende a ficar sempre no lado do mesmo progenitor e contra o outro. No desvio, o casal é unido, mas encobre seus conflitos com uma postura de proteger ou responsabilizar a criança doente, que é vista como o único problema familiar.

Sintomas somáticos e doenças em familiares são um reforçador da somatização na criança (Beck, 2008; Evans & Keenan, 2007; Pinto & Duarte, 2008). A criança exposta a modelos de comportamento doentes aprende sobre a dor a partir da experiência e das atitudes de seus familiares diante de situações geradoras de estresse (Logan & Sharff, 2005). Frequentemente apresentam sintomas similares aos apresentados por outro membro da família (Mello Filho & Burd, 2004).

A DAR é definida por pelo menos três episódios de dor durante um período mínimo de três meses, com intensidade suficiente para interferir nas atividades habituais do sujeito, apresentando ou não uma causa orgânica (Boyle, 1997). Uma causa orgânica diagnosticada é observada apenas em 10 a 15% dos casos (Puccini & Bresolin, 2003). Alfvén e Lindstrom (2007) ao considerar a DAR não orgânica como uma doença psicossomática, referem que o tratamento psicológico geraria uma melhora nos sintomas da dor.

A revisão de literatura realizada por Chitkara, Rawat e Talley (2005) indicou que a prevalência da DAR variou entre 0,3 e 8% na população de países ocidentais, sendo que as meninas são as que mais sofrem com esse problema. Além disso, evidenciou relações entre DAR e baixo nível socioeconômico, famílias uniparentais e pais e mães com sintomas somáticos.

Fatores socioculturais, familiares e emocionais influenciam as respostas da criança à dor (Thiessen, 2002). Quando pais, escola e médicos se preocupam com o sintoma, este é reforçado porque a criança recebe atenção, descanso, medicação, liberação de obrigações e mimos (Boyle, 1997). Respostas solícitas e de reforço dos pais à dor aumentam o comportamento doente nas crianças com dores crônicas e recorrentes (Peterson & Palermo, 2004). A DAR também é influenciada pela personalidade, comportamento, modelos de identificação e estado emocional (Puccini & Bresolin, 2003).

O prognóstico para DAR é ruim, pois apenas em torno de 30 a 50% dessas crianças são saudáveis na vida adulta. A dor na criança pode ser precursora de outras somatizações (Walker, Garber & Greene, 1991). Segundo Araújo-Soares e Figueiredo (2001), qualquer dor crônica gera ansiedade uma vez que implica numa perda de controle sobre seu próprio corpo. Nesse sentido, a persistência da dor faz com que haja prejuízos no estilo de vida, nas atividades e nos relacionamentos sociais da pessoa.

Crianças com DAR costumam apresentar ansiedade, isolamento, baixa autoestima (Boyle, 1997) e especialmente depressão (Kaczynski, Claar & Logan, 2009; Walker, Smith, Garber & Claar, 2007). Estudos sugerem que essas crianças também frequentemente manifestam dependência, insegurança, dificuldades sociais, problemas escolares, altas expectativas acadêmicas e comportamentais e muitas vezes sofrem bullying (Craig & cols., 2002; Evans & Keenan, 2007; Robinson, Alvarez & Dodge, 1990).

Em um dos maiores e primeiros estudos com crianças com DAR (Apley & Naish, 1958), observou-se que estas sofriam mais de dores de cabeça e nas articulações, anorexia, vômitos e náuseas, crises de raiva, medo excessivo, enurese noturna, e transtornos do sono e do apetite do que crianças sem dor. Quando comparadas com crianças saudáveis, as com DAR tendiam a ser mais nervosas, exigentes, excitáveis, tímidas e apreensivas.

Estudos mais recentes, como o de Campo e cols. (2004), concluíram que pacientes com DAR são mais propensos a receber um diagnóstico de transtorno psiquiátrico, especialmente ansiedade e depressão. O estudo de Kaminsky, Robertson e Dewey (2006) sugere que o estilo de enfrentamento passivo, a falta de suporte social e o desajustamento materno estão relacionados a sintomas depressivos nas crianças com DAR. Do mesmo modo, Walker, Smith, Garber e Claar (2007) identificaram que crianças com DAR enfrentavam situações cotidianas com menos confiança do que crianças saudáveis, características que foram associadas aos sintomas depressivos e às limitações funcionais causadas pela doença. Ainda, Kaczynski, Claar e Logan (2009) identificaram o gênero da criança como um moderador das relações entre dor, enfrentamento, depressão, proteção dos pais e limitações funcionais, em que o efeito foi maior para as meninas. Apesar de que os níveis de dor foram similares para meninos e meninas, elas também apresentaram maiores níveis de depressão.

A DAR pode ser desencadeada ou reforçada por eventos estressores como morte ou separação de um familiar importante, doença nos pais ou cuidadores, problemas escolares e mudança geográfica (Boyle, 1997). Walker, Garber, Smith, Van Slyke e Claar (2001) observaram que crianças com DAR vivenciam com mais frequência estressores diários em casa e na escola que outras crianças, especialmente em pacientes sintomáticos com baixa autoestima e pouco suporte social. Robinson, Alvarez e Dodge (1990) advertiram que crianças com DAR sofreram um aumento de eventos estressores no ano anterior ao início da dor, independente da história prévia. Os resultados do estudo de Pinto (2007) com 48 crianças brasileiras com DAR não orgânica, mostraram que três eventos estressores aumentaram 13,86 vezes a chance de uma criança apresentar a doença: mãe ou cuidador que trabalha fora do lar, história de alcoolismo ou drogas na família e enurese noturna. Esses dados apontam para a importância de aspectos familiares no aparecimento e manutenção da DAR também na nossa realidade.

Tendo em vista a importância dos fatores psicológicos e familiares no surgimento e na manutenção da DAR e a escassez de pesquisas brasileiras sobre o tema, o presente estudo objetiva analisar a dinâmica familiar em que a criança com esse sintoma está inserida, investigando se aspectos específicos da família, como conflitos conjugais, família emaranhada, superprotetora, rígida e/ou com ausência de resolução de conflitos, entre outros, estão relacionados à DAR na criança.

 

Método

Participantes

Foram entrevistadas quatro mães de crianças entre 8 e 11 anos, com DAR. Os casos foram selecionados por conveniência entre os frequentadores do Ambulatório da Dor Abdominal Recorrente do Hospital da Criança Santo Antônio, nos dias de consultas ambulatoriais da equipe. Os critérios de inclusão das participantes no estudo foram: (1) não haver uma causa orgânica que justificasse o sintoma de DAR na criança, há no mínimo três meses; (2) que a criança estivesse na fase escolar; (3) que a mãe biológica estivesse acompanhando a criança.

Instrumentos

Foram utiizados os seguintes instrumentos:

(1) Entrevista Semiestruturada: realizada individualmente com a mãe, no ambiente hospitalar. Na primeira parte da entrevista a mãe foi questionada sobre a história clínica da criança, referente ao seu problema de saúde atual. Após, foi perguntada sobre o contexto familiar passado e os valores e normas familiares, em que ponto do ciclo vital a família se encontra e como reagem às mudanças. Por fim, foi investigada a história pessoal da criança, com a reconstituição dos aspectos importantes de sua vida desde o nascimento, incluindo os dados referentes ao seu desenvolvimento.

(2) Genograma (Carter & McGoldrick, 1989/2001): consiste em um retrato gráfico da história e do padrão familiar, mostrando a estrutura básica, o funcionamento e os relacionamentos da família. Foi utilizado para analisar o quadro trigeracional da família e o movimento desta no decorrer do ciclo de vida (Castoldi, Lopes & Prati, 2006). O genograma foi construído ao longo da entrevista.

Procedimento

Trata-se de um estudo qualitativo, apresentado no formato de casos múltiplos, conforme proposto por Yin (2004).

A pesquisa foi realizada no Hospital da Criança Santo Antônio, que faz parte do Complexo Hospitalar da Santa Casa de Misericórdia de Porto Alegre. Trata-se de um hospital privado que é referência no estado do Rio Grande do Sul no tratamento de crianças e adolescentes com diferentes problemas de saúde. Atende pelo SUS, convênios e particulares, e conta com uma psicóloga contratada, além de estagiárias do curso de Psicologia de diferentes universidades da capital e região. Para a realização da presente pesquisa foram contatados o médico responsável pelo Ambulatório da Dor Abdominal Recorrente e a psicóloga do Hospital da Criança Santo Antônio, para autorização do estudo. O projeto foi submetido e aprovado pelo Comitê de Ética do Complexo Hospitalar Santa Casa de Porto Alegre.

As mães das crianças com DAR foram encaminhadas para participar da pesquisa pela equipe do Ambulatório da Dor Abdominal Recorrente, de acordo com os critérios de inclusão descritos anteriormente. A pesquisadora esteve presente nos dias de consultas no ambulatório de DAR, ocasião em que a equipe encaminhava as mães das crianças para a pesquisa que tinham consulta naquele dia. Mesmo a criança com DAR sem causa orgânica era mantida em acompanhamento médico sistemático pela equipe especializada, uma vez que as queixas faziam com que as famílias a trouxessem frequentemente para consulta. As entrevistas e a construção do genograma foram realizadas com as mães logo após a consulta médica da criança referente ao sintoma, em uma sala reservada no próprio ambulatório.

Análise de dados

As entrevistas foram gravadas, transcritas e os casos foram examinados de acordo com Yin (2004), que destaca três fases para a sua realização: (1) escolha do referencial teórico para compreensão do fenômeno (teoria sistêmica), a seleção dos casos e emprego dos instrumentos (entrevista e genograma); (2) coleta dos dados propriamente dita, com transcrição literal das entrevistas e leituras exaustivas do material; e (3) identificação dos temas relacionados ao objetivo do estudo, buscando desenvolver uma estrutura descritiva de cada caso para, em seguida, examinar padrões semelhantes e particulares no conjunto dos casos estudados.

Conforme postula Yin (2004), o estudo de caso é um método apropriado para ser usado em situações em que o pesquisador tenha baixo controle sobre um fenômeno inserido num contexto social, ao mesmo tempo em que permite compreender e fazer inferências sobre esse fenômeno. No entanto, o conhecimento gerado não é passível de generalização.

 

Resultados

Os resultados são apresentados caso a caso, com base no relato do conteúdo trazido na entrevista e durante a construção do genograma. Inicialmente, apresenta-se o genograma da família de cada criança e, a seguir, a descrição do caso. A Figura 1 apresenta a legenda para compreensão dos dados dos genogramas de cada caso.

 

 

Caso 1: Tatiana2

Tatiana tem 10 anos, frequenta a 5º série com bom rendimento escolar. Apresenta DAR há sete meses, em alguns períodos com frequência diária e em outros com duas ou três ocorrências semanais. As dores costumam acontecer quando a menina se movimenta (especialmente ao deitar-se ou levantar-se) e, na maioria das vezes, ocorre pela manhã, antes de ir à escola. Também costuma apresentar cefaleia. A mãe não sabe explicar como a dor melhora nem o que é feito para amenizá-la porque convive pouco com a filha.

A mãe de Tatiana, Ieda, tem 32 anos e apresenta cefaleia desde o nascimento da segunda filha, única irmã de Tatiana. Para Ieda, exercer a maternidade é difícil "Não é que eu diga que eu não queria ter elas. Só que se pudesse pensar de novo, se voltasse no tempo, eu não ia querer, entendeu?"O pai de Tatiana, Diego, é padeiro e não tem vínculo com a menina.

Os pais de Tatiana são do interior do RS. Namoravam há três meses quando Ieda engravidou. Em seguida, ela descobriu que Diego era casado e tinha uma filha, o que levou ao rompimento. Os pais de Ieda não aceitavam a gravidez, e a pressionaram para que abortasse: "Quando eu engravidei ninguém queria saber de mim, nem meu pai e minha mãe". Ieda sentiu-se envergonhada e despreparada para cuidar da filha, o que a levou a uma tentativa de aborto. Quando a filha nasceu, não recebeu ajuda para cuidar da bebê. Aos cinco meses de Tatiana, os pais de Ieda permitiram que as duas voltassem para casa. O pai nunca procura Tatiana, apesar de ter se separado da esposa legítima.

Quando Tatiana tinha 4 anos, Ieda foi morar na capital em busca de emprego. A menina ficou no interior com a avó. Ieda casou-se e engravidou pela segunda vez, mas sofreu um aborto espontâneo. Quando Tatiana 7 sete anos, Ieda engravidou pela terceira vez de maneira proposital. Nesse período, Tatiana chorava e se recusava a ficar na escola, por isso foi morar com a mãe e o padrasto. Porém, a bebê nasceu com um grave problema de saúde, demandando muitos cuidados, o que fez com que Tatiana voltasse a morar com os avós. Com 1 ano de idade, a bebê passou por um transplante, o que resultou em um afastamento de Ieda e Tatiana nesse período.

Atualmente, Tatiana mora com a avó e passa alguns finais de semana com a mãe. Sente ciúmes da irmã e do padrasto. A mãe não é uma figura de autoridade, apenas a avó: "Eu falo com ela e ela não fica quieta pra mim. Ela diz que eu não mando nela, que eu não sou mãe dela, que ela mora com a vó". Ieda tem um vínculo afetivo difícil com Tatiana e é muito próxima da outra filha. A mãe associa o início do sintoma em Tatiana com uma briga violenta entre o avô (alcoólatra) e um tio. "A Tatiana disse: Ai mãe, o vô quase deu uma facada no meu tio" (verFigura 2).

 

 

Caso 2: Pedro

Pedro tem 8 anos de idade, está na 2ª série da escola e é um dos melhores alunos da turma. Apresenta dores abdominais leves desde os 2 anos de idade, que foram intensificadas há nove meses. Os episódios costumam ocorrer pela manhã, antes de ir para a escola e melhoram quando lhe oferecem chá ou descansa. Às vezes são acompanhados por vômitos.

Pedro mora com os pais e um irmão. Seu avô paterno é alcoólatra e agressivo, e a família do seu pai (José Pedro) é muito unida. Quanto à mãe (Marisa), esta foi deixada com os avós desde bebê, com os quais possui um forte vínculo afetivo. A falta de uma família nuclear foi algo presente na vida de Marisa, que sempre desejou constituir a sua. Três meses após Marisa casar-se, sua avó faleceu e seu avô, Tadeu, foi morar com o casal.

José Pedro e Marisa se conheceram ainda na escola. O primeiro filho do casal faleceu 34 dias após nascido prematuro devido à eclampsia. O segundo filho (Pedro), foi desejado e planejado pelos pais, especialmente pela mãe, pois ele viria para cumprir seu sonho de ter uma família. Pedro também nasceu prematuro e ficou hospitalizado por 30 dias. Tinha crises convulsivas e foi medicado até os 4 anos. Marisa, apesar de orientada a não ter mais filhos, engravidou quando Pedro tinha 1 ano. Este parto também teve complicações, mas o menino é saudável.

Quatro meses antes da intensificação da DAR em Pedro houve uma desavença entre a família e o bisavô, o que resultou na mudança deste para a casa de uma filha. Em seguida, Marisa começou a apresentar episódios frequentes de síndrome do pânico e Pedro começou a apresentar DAR: "O começo dessa dor até foi na época que ele sentiu muita falta do meu vô". O pai de Pedro também sofre de dores frequentes na coluna e de cálculo renal.

Segundo Marisa, sua família é muito unida, mas tem pouco convívio social com outras pessoas. Pedro também possui contato restrito com outras crianças fora da escola: "Não gosto que eles andem na rua, não deixo eles irem pra rua. É em casa".

Marisa parece ser superprotetora e excessivamente controladora da vida do filho, uma vez que relata que vai à escola toda semana conversar com a professora para saber do seu rendimento e se há alguma queixa sobre ele. Pedro é um menino com ótimas notas, porém com dificuldades na interação com os colegas, e a escola nunca apresentou queixa a respeito dele (ver Figura 3).

 

 

Caso 3: Ana

Ana tem 8 anos de idade e frequenta a 3ª série. Costuma ter boas notas, porém muitas dificuldades para fazer amigos. O aparecimento da DAR coincidiu com o controle noturno dos esfíncteres, aos 4 anos, e depois diminuiu. Há cinco meses os episódios de DAR voltaram a acontecer, com intensidade maior. O sintoma costuma ocorrer nos horários das refeições, quando ela se recusa a comer: "Ela tem medo de comer. Se eu não dou na boca dela, ela não come". Geralmente, Ana sente dor na hora de dormir. Para que melhore, a mãe faz massagem até que ela durma. Algumas vezes apresenta vômitos.

Na família paterna existem vários casos de alcoolismo e os avós são falecidos. Na família materna, a avó era esquizofrênica e teve várias internações psiquiátricas. Quando a mãe de Ana e sua irmã gêmea nasceram, a avó de Ana teve complicações no parto. Após isso, em seus momentos de crise afirmava que sua alma havia morrido no dia do nascimento das filhas. Há três anos, jogou-se na frente de um carro, provocando a própria morte.

A mãe de Ana desde solteira queria ter um filho. Segundo ela, tendo um filho nunca ficaria sozinha, e nesse sentido parece que Ana veio a cumprir esse papel.

Após alguns anos de relacionamento, Willian (pai) rompeu o relacionamento com Daniela (mãe) e casou-se com uma prostituta. Um mês depois, flagrou a nova esposa em uma traição. Separou-se e voltou a relacionar-se com Daniela. Nas primeiras relações sexuais, Daniela engravidou de Ana propositalmente, sem o conhecimento do marido. Na ocasião, foram morar juntos e ele assumiu a criança.

Daniela parou de trabalhar para dedicar-se aos cuidados da filha. Quando Ana tinha 2 anos, sua avó paterna faleceu, o que acentuou o alcoolismo e a agressividade de Willian. As brigas em casa eram constantes e Daniela decidiu separar-se. Ficaram afastados por um ano, retomando o relacionamento quando Willian passou a controlar o alcoolismo Willian é um alcoólatra em remissão há três anos, trabalha longe por vários dias e Daniela fica em casa, cuidando da filha. Nas situações de brigas do casal, Ana posiciona-se sempre a favor da mãe e contra o pai.

Willian sempre desejou ter mais filhos, mas Daniela queria evitar a exposição de outra criança ao ambiente hostil de sua casa. Há seis meses, Daniela engravidou acidentalmente. No primeiro mês de gravidez, as dores abdominais de Ana se acentuaram: "Às vezes ela nem pensa que eu tô grávida (...) eu digo: passa a mão, tá mexendo o nenê. Ela diz: tá mãe, eu sei, deixa". Ana e Daniela possuem uma relação de dependência: "No banheiro, ela não vai sozinha, tem que tá eu indo junto (...) Até hoje ela tem medo de dormir no quarto dela, então dorme com nós". Na verdade, Ana dorme com a mãe na cama enquanto o pai dorme no seu quarto, exigindo toda a atenção da sua mãe. Ana, inclusive, proíbe que a mãe fale com o pai quando este chega em casa para não ter que dividir a sua atenção com ele (ver Figura 4).

 

 

Caso 4: Fernando

Fernando tem 10 anos, frequenta a 3ª série com bom desempenho escolar. Apresenta DAR desde os 5 anos, iniciada durante a primeira separação dos pais. A mãe afirma que ele sente mais dor quando está nervoso ou quando a situação familiar é conflitiva. Desde essa época os pediatras diziam que a dor tinha uma origem emocional. Os episódios são muito fortes e ocorrem pela manhã, antes de ir para a escola, às vezes acompanhados de vômitos. A mãe lhe dá chá, medicações e faz massagens no abdome. Fernando também costuma ter cefaleia, dores nas costas e enurese.

Quando o pai de Fernando (Luís Fernando) tinha 2 anos de idade, seu pai (avô de Fernando) faleceu. Luís Fernando nunca quis ter filhos e afirma não gostar de crianças. A mãe de Fernando (Sônia) tem depressão e já fez vários tratamentos. Quando estava sendo gerada, seus pais se separaram e por isso foi criada pela bisavó materna. Aos 7 anos, seu pai a tomou de sua avó e elas não se viram mais. Sônia relata que foi uma criança muito triste e que atualmente é depressiva, instável, agressiva, tem cefaleia, gastrite nervosa e sente dores por todo o corpo.

Os pais do menino são casados há 16 anos. A gestação dele foi de risco, mas a mãe não sabe explicar o motivo. Sônia desejava muito ter um filho, pois acreditava que isso a faria melhorar da depressão que sofria. No entanto, quando Fernando tinha um mês e 20 dias, Sônia ameaçou suicidar-se, mas foi impedida pelo marido. Foi diagnosticada com depressão pós-parto.

Dos 3 aos 5 anos, Fernando tinha convulsões, e era medicado para esse problema. Apresentou enurese aos 5 anos, na primeira separação dos pais, com duração de alguns meses. Atualmente apresenta dificuldade nos relacionamentos sociais, brinca sozinho em casa e na escola. Fica a maior parte do dia com a mãe, mas devido à instabilidade de humor desta, eles têm uma relação conflituosa. Inclusive Fernando disse para Sônia, segundo ela: "Ia ser o dia mais feliz ficar longe de ti".

Sônia e Luís Fernando separaram-se três vezes em 2002. Ela se diz muito instável, o que prejudica o casal, que tem um relacionamento conflituoso. Sônia afirma que continuam juntos por causa do filho: "Ele pediu pra mim que não era pra eu me separar do pai dele". A família tem poucos relacionamentos com outras pessoas (ver Figura 5).

 

 

Discussão

O objetivo deste estudo foi examinar a dinâmica das relações familiares de crianças com DAR funcional. A partir dos dados obtidos percebe-se, de forma geral, histórias de perdas, eventos estressores recentes para a criança e dificuldades nas relações familiares.

De acordo com Mello Filho e Burd (2004) e Minuchin e cols. (1975), um funcionamento adequado da família depende de claras fronteiras entre as gerações e da possibilidade de cada membro sentir-se parte de um todo seguro e acolhedor. Nos casos estudados, essas características parecem ser frágeis. Essas famílias caracterizaram-se pela dificuldade em estabelecer fronteiras bem definidas entre as gerações e/ou por não proporcionarem tanta segurança aos membros, em especial às crianças que apresentam DAR.

Podemos notar na família de Tatiana certa dispersão, ou seja, seus membros não se ajudam, têm dificuldades de comunicação, ocorre negligência e relacionamentos conflituosos. Também pode ser considerada como uma família que não possui hierarquia definida (Carter & McGoldrick, 1989/2001). Já as famílias de Pedro e Ana parecem ser rígidas e resistentes à mudança, favorecedoras da ansiedade de separação, o que torna difícil a individuação e o crescimento de seus membros. A família de Fernando é muito unida e ao mesmo tempo dispersa, pois se comunicam pouco e se afastam por vários momentos como estratégia para manter o grupo. As famílias de Pedro, Ana e Fernando parecem ser sistemas fechados e há indícios de possível superproteção por parte das mães, pois as trocas e relacionamentos com o exterior pelas crianças são bastante limitados.

As quatro crianças sintomáticas são primogênitas, sendo duas delas filhas únicas. De acordo com Rios-González (1994), principalmente no nascimento do primeiro filho, é comum que dificuldades e conflitos se originem pelo fato dos pais não saberem distinguir entre funções parentais e conjugais. Além disso, é nesse momento de se tornar pais que lembranças e modelos dos próprios pais vêm à tona, e terão influência direta na maneira de assumir esse papel.

Nesse sentido, é possível perceber que as mães de Pedro, Fernando e Ana tiveram relações difíceis com seus próprios pais, situação que pode tê-las deixado vulneráveis no momento de constituírem sua própria família. As duas primeiras foram abandonadas quando pequenas e não foram criadas pelos seus pais e mães biológicos. A avó de Ana era esquizofrênica, também não realizando uma maternagem adequada, e o avô era alcoólatra. O avô de Fernando faleceu jovem, não realizando a função paterna. Assim, pela história dessas famílias podemos inferir que as perdas e abandono sofridos parecem ter afetado o desenvolvimento das mães dessas crianças, que sofreram carências emocionais importantes na sua infância. Além disso, esses dados reforçam a literatura sobre DAR, quando refere que estressores como alcoolismo na família, morte de alguém importante, separação, doença nos pais ou cuidadores contribuem para os sintomas (Boyle, 1997; Pinto, 2007).

Como explicitado anteriormente, conforme Minuchin e cols. (1975) e Ríos-González (1994), pertencer a uma família emaranhada, superprotetora, rígida e com ausência de resolução de conflitos são reforçadores da somatização, já que não permite que seus membros sejam autênticos na expressão de seus afetos e nas suas condutas, dificultando o seu crescimento individual. Observa-se esse tipo de comportamento nas famílias de Pedro, Ana e Fernando, com dificuldade de individuação e de separação entre os familiares, principalmente na díade mãe e filho.

A família psicossomática costuma apresentar superproteção entre os membros, característica esta que também é utilizada como controle, prejudicando o desenvolvimento da autonomia na criança (Minuchin & cols., 1975; Ríos-González, 1994) Observa-se esse tipo de interação na família de Pedro, na qual a mãe não permite nem que o filho brinque com outras crianças fora do horário escolar. Na família de Ana, também existe um comportamento superprotetor, quando a mãe refere que ela não é capaz de ir ao banheiro ou de dormir sozinha.

Pertencer a uma família rígida é outro reforçador da somatização (Minuchin & cols., 1975; Ríos-González, 1994). As famílias de Pedro, Ana e Fernando parecem ser rígidas, apresentando dificuldades nas mudanças, como entrada na escola, separação dos pais e gravidez. Outro reforçador da somatização é pertencer a um grupo familiar que apresenta limitações na resolução de conflitos, inclusive naqueles inerentes ao desenvolvimento da família. Observa-se esta dificuldade em todos os casos estudados. Na família de Pedro, as discussões parecem ser evitadas, a mãe insiste que são unidos e não incentiva o contato da criança com outras pessoas fora dela. Nas famílias de Tatiana (afastamento da mãe), Ana (gravidez da mãe e alcoolismo do pai) e Fernando (depressão da mãe), os conflitos são constantes, o ambiente é turbulento, e não parece haver um movimento efetivo para sua resolução.

As quatro famílias parecem ser matrifocais. O pai de Tatiana é ausente de sua vida, e mesmo nos três casos (Ana, Pedro e Fernando) em que o pai vive com a criança, não participam muito da criação desta, aparecendo como uma figura distante e sem autoridade. Conforme Ríos-González (1994), nesses casos pode ter havido uma privação paterna virtual, ou seja, o pai é vivo e faz parte da família, mas sua presença em termos de relação emocional e presença educativa é inexistente ou insuficiente. Assim, as dificuldades experimentadas pelas mães para criar seus filhos praticamente sozinhas e imersas em conflitos familiares, pode dificultar o estabelecimento de um bom vínculo entre eles (Beck, 2008; Craig, Cox & Klein, 2002). As mães de Tatiana e Fernando apresentam dificuldade para exercer a função materna, pois mantêm relacionamentos conflituosos com os filhos. Nos casos de Pedro e Ana existe uma função materna forte, porém superprotetora, que gera dependência excessiva e dificuldade no desenvolvimento de autonomia. Conforme Chitkara, Rawat e Talley (2005), em famílias uniparentais há maior probabilidade de que surjam sintomas somáticos em crianças.

Pedro, Ana e Fernando apresentam uma relação exageradamente próxima com suas mães. A mãe de Pedro é excessivamente controladora, protetora, vai à escola toda semana saber o desempenho do menino, apesar de não haver queixa alguma a respeito dele. Ana é tão vinculada com sua mãe que dorme com ela e chora quando tem que separar-se dela. Fernando fica excessivamente junto de sua mãe quando não está na escola, e o relacionamento dos dois é conflituoso.

Ana e Fernando parecem ser filhos genitoriais, ou seja, têm o papel de um dos genitores para os próprios pais. Essa relação ocorre quando o filho protege um genitor mediante aceitação de um jogo simbiótico no qual um adulto (pai ou mãe) protege para ser protegido por esse filho. Esse genitor se oculta a maior parte das vezes atrás do filho por ser incapaz de enfrentar suas responsabilidades pessoais, seja como mãe e pai ou como adulto (Ríos-González, 1994). Nesses casos, as crianças acabam sentindo-se responsáveis também por proteger seus pais de algo. Nos casos estudados, Ana parece proteger sua mãe de um pai alcoolista e Fernando parece ter a função de atenuar a depressão de sua mãe.

O envolvimento da criança no conflito conjugal predispõe à somatização, uma vez que a criança se vê diante de situações que lhe causam sofrimento e a deixam angustiada. Isso acontece com Ana e Fernando. Ela é aliada de sua mãe que sofre com o alcoolismo de seu pai. Ele é envolvido no conflito dos pais, a cada momento sendo obrigado a posicionar-se a favor de um e contra o outro. Nessa família, discussões e divergências são evitadas ao máximo, mas adoecer é uma forma de comunicação permitida (Minuchin & cols., 1975; Ríos-González, 1994).

Os pais de Tatiana têm filhos de outros relacionamentos, com os quais convivem e mantêm vínculos fortes, diferentemente do que ocorre na relação entre eles e Tatiana. Ana e Fernando são filhos únicos, porém a mãe de Ana está grávida, o que lhe desperta muito ciúme, inclusive ignorando esse fato durante todo o atendimento. Ela tem medo de perder o amor da mãe. Podemos entender que a dificuldade de vínculo com a mãe e o ciúme da irmã (Tatiana) e a chegada próxima de um irmão (Ana) atuem como estressores (Pinto, 2007) que ajudem a manter os sintomas dessas crianças.

Segundo Garralda (1996), dentre os fatores familiares contribuintes para a somatização na criança estão os problemas de saúde e psicológicos na família, uma vez que pessoas perturbadas têm dificuldades em exercer suas funções parentais. As mães de Pedro e Fernando apresentam problemas psicológicos. A primeira tem síndrome do pânico, enquanto a segunda é diagnosticada como depressiva. O pai de Ana é alcoólatra em remissão. No caso de Tatiana, em que a figura paterna é o avô, este também é alcoólatra.

Outro fator que contribui para os sintomas somáticos da criança é a presença de alguma dor nos pais, sugerindo uma tendência para dor herdada e/ou transmitida por modelos (Chitkara, Rawat & Talley, 2005; Robinson, Alvarez & Dodge, 1990). As mães de Tatiana e Fernando apresentam cefaleia, e as duas crianças apresentam esse mesmo sintomas combinado à DAR. O pai de Pedro tem problemas na coluna e cálculo renal, sentindo dores frequentes.

Eventos estressores na família, principalmente a perda de pessoas importantes, costumam precipitar episódios psicossomáticos (Minuchin & cols., 1975). A angústia e o sofrimento derivado da perda não são elaborados e expressados, gerando sintomas físicos. Nos casos estudados foram observados estressores como desencadeantes da DAR. Na história de Tatiana, o avô materno é alcoólatra, a irmã sofre de uma doença grave, ela mesma foi rejeitada por sua mãe durante a gestação e quando foi morar com ela. No caso de Pedro, o bisavô saiu de casa recentemente após uma briga, e sua mãe passou a ter síndrome do pânico. No caso de Ana, houve separações do casal, o pai é alcoólatra e agressivo, houve perdas de pessoas significativas (avós) e a mãe estava grávida. Com relação a Fernando, também houve separações e conflito no relacionamento dos pais e a mãe é deprimida. Segundo Robinson, Alvarez e Dodge (1990), entre as preocupações da criança com DAR está o divórcio dos pais.

Conforme Andolfi e Haber (1998) e Carter e McGoldrick (1989/2001), o sintoma da criança tem a função de se tornar a maior preocupação da família, tirando o foco de outros problemas. Podemos entender que o sintoma é um pedido de socorro por parte dessas crianças. No caso de Tatiana há um pedido de segurança e carinho. Talvez uma tentativa de ficar doente como a irmã, na esperança de também receber cuidados e atenção. No caso de Pedro, o sintoma é entendido como uma expressão do quanto precisa de espaço nessa família, e o quanto a saída de um membro (bisavô) traz uma nova configuração e muito sofrimento, pois o grupo tem dificuldades com mudanças. No caso de Ana, sua dor encobre disfunções conjugais, além da insegurança da mãe. No momento em que a mãe engravida, ela sente seu lugar ameaçado e somatiza. Já o sintoma de Fernando tira o foco da disfunção conjugal, tanto que os momentos de maior somatização estão claramente associados com conflitos e separação dos pais. Isso confirma a ideia de Ríos-González (1994) de que frequentemente os pais preferem que o filho tenha uma doença orgânica do que reconhecer que o que está doente é o contexto ou as relações estabelecidas.

Ana e Fernando apresentaram enurese e Tatiana e Fernando frequentemente têm cefaleia. Os dois meninos apresentavam crises convulsivas, fizeram tratamento medicamentoso e atualmente estão bem, apenas em acompanhamento neurológico. Esses dados confirmam diferentes estudos quando constatam que as crianças com DAR apresentam outros sintomas e/ou transtornos, e que talvez o sintoma da DAR seja apenas um entre muitos outros problemas que sofre a criança e sua família (Apley & Naish, 1958; Campo & cols., 2004; Kaminsky, Robertson & Dewey, 2006).

Segundo Robinson, Alvarez e Dodge (1990), as crianças com DAR costumam ser dependentes dos pais e apresentam dificuldades para fazer amigos, aspecto que está fortemente associado a disfunções familiares como rigidez e superproteção (Minuchin & cols., 1975). Esse aspecto aparece nos casos estudados. Tatiana relaciona-se bem com outras crianças, gosta de brincar e de sair de casa. Pedro e Fernando também têm dificuldades nos relacionamentos devido à superproteção das mães, que os impedem de ter contato com outras crianças.

A partir dos casos estudados, foi possível constatar que os dados trazidos pelas mães corroboram importantes informações da literatura internacional relacionados ao aparecimento e manutenção dos sintomas da DAR e o contexto familiar. Além disso, o estudo propicia compreender como, a partir da percepção das mães, as dificuldades de funcionamento familiar e os sintomas físicos, e inclusive psicológicos, não são problemas exclusivos dessas crianças e sim, são um problema existente em outras gerações. No entanto, é preciso considerar que essas informações foram obtidas apenas a partir do discurso das mães de crianças com DAR, o que é uma limitação importante deste estudo. É possível que, ao ouvir outros membros da família ou até mesmo a própria criança, algumas percepções sobre a DAR e o funcionamento da família possam ser distintas e vir a contribuir para um entendimento mais completo da dinâmica dessas famílias.

O presente estudo é composto por poucos casos, o que impede a generalização dos resultados. No entanto, é um estudo qualitativo que busca compreender o fenômeno da DAR desde uma perspectiva mais profunda. A opção pela abordagem qualitativa, a partir do estudo de casos, permite a compreensão dos mecanismos e da dinâmica familiar dessas famílias, ao mesmo tempo em que vem a contribuir para o entendimento do fenômeno desde um outro olhar, uma vez que a grande maioria dos estudos sobre DAR são quantitativos. Sugerimos, para futuros estudos, que sigam sendo feitas pesquisas qualitativas, porém tentando entender a dinâmica familiar de crianças com DAR a partir do discurso de diferentes membros ou até mesmo de professores e outras pessoas relacionadas diretamente à criança. Outra sugestão é a análise dos vínculos, a partir de análises transgeracionais.

Acredita-se que o presente estudo contribui para a compreensão do funcionamento das famílias com crianças com DAR, um tema pouco explorado na literatura nacional e que merece mais atenção dos pesquisadores. Conhecer os fatores que contribuem para o aparecimento e manutenção da DAR facilitará o desenvolvimento de estratégias terapêuticas que possam minimizar o sofrimento físico e emocional dessas crianças.

 

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1 Endereço para correspondência: Av. Unisinos 950. Bairro Cristo Rei. São Leopoldo, RS. CEP 93022-000. Fone (51) 35908495. E-mailelisa.kerndecastro@gmail.com
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