Artigos Científicos

Avaliação da teoria da mente: estudo com alunos de escolas públicas e particulares mineiras

Marisa Cosenza Rodrigues; et al

11 de agosto de 2015

Estud. psicol. (Campinas) vol.32 no.2 Campinas abr./jun. 2015 Epub Abr-2015

 

Avaliação da teoria da mente: estudo com alunos de escolas públicas e particulares mineiras

Marisa Cosenza Rodrigues 1  , Maíze Carla Costa Pelisson 2  , Flávia Fraga Silveira 2  , Nathalie Nehmy Ribeiro 3  , Renata de Lourdes Miguel da Silva 3  

1Universidade Federal de Juiz de Fora, Instituto de Ciências Humanas, Departamento de Psicologia. R. José Lourenço Kelmer, s/n., Campus Universitário, São Pedro, 36036-330, Juiz de Fora, MG, Brasil

2Universidade Federal de Juiz de Fora, Instituto de Ciências Humanas, Curso de Psicologia. Juiz de Fora, MG, Brasil

3Psicóloga. Juiz de Fora, MG, Brasil

RESUMO

Este estudo avalia o desenvolvimento da teoria da mente em pré-escolares de 4 e 5 anos de idade, bem como as possíveis interações entre as variáveis sexo, idade e rede de ensino. Participaram da pesquisa 178 crianças, das quais 91 alunos de escolas públicas e 87 de escolas particulares. Após procedimentos éticos, aplicou-se a Escala de Teoria da Mente. Não foi evidenciada distinção quanto ao sexo (< 0,38). Foram verificadas diferenças quanto à idade (< 0,001) e rede de ensino (< 0,008). Crianças de 5 anos obtiveram melhor desempenho na escala. As crianças oriundas de escolas particulares apresentaram um desempenho superior às das escolas públicas. Resultados indicam que a escala foi sensível para captar a sequência evolutiva da teoria da mente e a relevância dos fatores socioculturais. Por ser uma área ainda em fase emergente de investigação no Brasil, ressalta-se a importância de estudos com amostras maiores.

Palavras-Chave: Desenvolvimento cognitivo; Filosofia da mente; Pré-escolares

Observa-se, nas últimas três décadas, um interesse crescente pelo estudo da teoria da mente. Essa área, de fundamental importância para o desenvolvimento sociocognitivo infantil, investiga a capacidade das crianças de representar os estados mentais próprios e alheios, por meio da atribuição de crenças, emoções e intenções, de modo a prever suas ações de forma mais acurada. Shakoor et al. (2012) destacam que as habilidades envolvidas nes-se desenvolvimento são fundamentais para a integração e o convívio social bem como para a adaptação escolar nos primeiros anos de vida. As crianças, ao adquirirem tais habilidades, tornam-se mais capazes de decodificar as pistas sociais e modelar o comportamento, de modo a interagir com o meio social de forma mais satisfatória.

Quanto ao processo de aquisição dos estados mentais, Carpendale e Lewis (2006) salientam que, aos 2 anos, as crianças compreendem que os desejos movem as ações humanas e que os estados mentais não são observáveis ou tangíveis. Lane, Wellman, Olson, LaBounty e Kerr (2010) afirmam que, com 3 anos de idade, as crianças já são capazes de identificar expressões emocionais básicas, além de entender que dois indivíduos podem ter diferentes desejos e expressar emoções distintas das suas em situações similares. Aos 4 anos, como sustentam Carpendale e Lewis (2006), a criança desenvolve a capacidade de diferenciar crenças de desejos, bem como desenvolvem uma compreensão mais elaborada acerca dos estados mentais. Lane et al. (2010) afirmam que, aos 5 anos de idade, a criança demonstra entendimento de que os indivíduos podem ter uma emoção interna diferente daquela que está sendo expressa em dada situação.

O interesse pelo estudo da compreensão dos estados mentais surgiu na área da cognição animal, na década de 1970. O termo teoria da mente foi utilizado pela primeira vez por Premack e Woodruff (1978), que investigaram tal habilidade em chimpanzés. A partir desse estudo, no início dos anos 1980, alguns pesquisadores (J.H. Flavell, Flavell, & Green, 1983Perner, Leekam, & Wimmer, 1987; Wimmer & Perner, 1983), interessados em estudar o entendimento infantil acerca dos estados mentais, desenvolveram tarefas de crença falsa, no intuito de avaliar a capacidade da criança de reconhecer que o outro pode ter uma crença que difere tanto da sua quanto da realidade. Esse recurso metodológico tornou-se um marco referencial para as pesquisas na área. Com o objetivo de investigar a metodologia utilizada nos estudos nas três últimas décadas do século passado, Benavides e Roncancio (2009)realizaram um estudo de revisão que ratifica a utilização frequente das tarefas de crença falsa como forma de investigar o desenvolvimento da capacidade infantil de compreender estados mentais. Os autores observaram ainda uma predominância de estudos transversais, com destaque para a pesquisa da relação entre idade e desempenho.

Wellman e Liu (2004), advogando que a capacidade de atribuição de estados mentais não se restringe ao estudo da crença falsa, mas abrange a compreensão de um conjunto de habilidades, dentre as quais o entendimento das emoções e desejos, elaboraram uma escala com a intenção de viabilizar a avaliação da teoria da mente de forma mais ampla. Nessa publicação, os autores reportaram, primeiramente, um estudo de metanálise que objetivou reunir as tarefas de teoria da mente e categorizá-las. A partir dos resultados obtidos, Wellman e Liu realizaram o agrupamento das tarefas em um nível crescente de complexidade, a saber: 1) desejos diferentes; 2) crenças diferentes; 3) acesso ao conhecimento; 4) crença falsa; 5) crença falsa explícita; 6) crença e emoção; 7) emoção real e aparente. A Escala de Teoria da Mente, com sete tarefas que avaliam diferentes aspectos da compreensão dos estados mentais, foi testada em uma amostra de 75 crianças estadunidenses de 2 a 6 anos de idade.

A referida escala vem sendo utilizada em algumas pesquisas internacionais. O estudo de Wellman, Fang, Liu, Zhu e Liu (2006) objetivou verificar se as experiências culturais influenciariam no desenvolvimento da teoria da mente. A compreensão dos estados mentais de uma amostra de 140 crianças chinesas (entre 3 e 5 anos) foi investigada e comparada com 135 crianças falantes da língua inglesa (norte-americanas e australianas) da mesma faixa etária. De maneira geral, os resultados foram semelhantes, indicando que as crianças mais velhas apresentavam melhor desempenho. Contudo, as crianças chinesas apresentaram uma compreensão cognitiva dos estados mentais na tarefa de acesso ao conhecimento, enquanto as de língua inglesa evidenciaram tal compreensão nas tarefas de crença falsa. Os autores atribuíram as diferenças a fatores socioculturais. Verificou-se uma sequência consistente no desempenho das tarefas, em ambos os grupos, quanto ao entendimento da teoria da mente.

Shahaeian, Peterson, Slaughter e Wellman (2011) realizaram um estudo transcultural a fim de examinar os contrastes culturais que podem influenciar o desenvolvimento da teoria da mente. Compararam o desempenho de 135 crianças entre 3 e 6 anos, sendo 77 australianas e 58 iranianas. Aplicaram cinco tarefas da escala de Wellman e Liu: desejos diferentes; crenças diferentes; acesso ao conhecimento; crença falsa; e emoção real-aparente. Encontrou-se uma diferença intercultural no sequenciamento dos passos da teoria da mente, mas não no escore total da escala. Verificou-se que, dentre as crianças iranianas, a compreensão do acesso ao conhecimento antecedeu o entendimento de que as pessoas podem ter crenças diferentes, resultado divergente do apresentado pela amostra de crianças australianas. Os autores inferiram que as diferenças culturais podem ter exercido uma influência positiva na aquisição da teoria da mente nas crianças iranianas, dando ênfase ao aspecto coletivista presente em culturas orientais, em que se observa a valorização de atributos como respeitar os pais, evitar disputa e adquirir conhecimento.

No Brasil, um importante passo para a utilização da Escala de Teoria da Mente foi dado com o estudo deDomingues, Valério, Panciera e Maluf (2007), que realizaram a tradução da escala de Wellman e Liu para uso em pesquisas nacionais. Esse estudo permitiu a pesquisa de aspectos que ultrapassam a investigação da crença falsa (Maluf, Gallo-Penna, & Santos, 2011Miguel-Silva, 2012; Noé, 2011; Ribas, 2011).

Ribas (2011) objetivou comparar o desempenho de 115 crianças de 6 e 7 anos de escolas públicas, no que concerne ao desenvolvimento da teoria da mente por meio da escala de Wellman e Liu e da compreensão emocional, mediante aplicação do Teste de Inteligência Emocional para Crianças (Bueno, 2008), realizando ainda uma comparação por sexo. A autora também avaliou a manifestação de comportamentos agressivos, por meio da Escala de Percepção por Professores dos Comportamentos Agressivos de Criança (Lisboa & Koller, 2001). Os resultados permitiram delimitar dois grupos: 30 crianças avaliadas como agressivas e 30 não agressivas. Os resultados indicaram uma relação entre teoria da mente e desenvolvimento social, sugerindo uma influência da habilidade de compreensão das emoções para o desenvolvimento socioemocional infantil. Não foi evidenciada diferença entre os sexos. Foi observado desempenho superior das crianças avaliadas como não agressivas nas variáveis estudadas. Quanto ao desempenho por tarefas da escala, foram encontrados escores superiores na tarefa 3 (acesso ao conhecimento) em relação à tarefa 2 (crenças diferentes). A autora destacou o caráter multifatorial da teoria da mente, questionando a aplicabilidade da escala para as crianças brasileiras, uma vez que se esperava um desempenho decrescente por tarefas, visto que a escala é organizada em nível crescente de complexidade.

Maluf et al. (2011) investigaram a relação entre teoria da mente e compreensão conversacional, utilizando-se também da referida escala, tendo como sujeitos de pesquisa 28 crianças (4 e 5 anos) de nível socioeconômico baixo. Foram aplicadas tarefas de compreensão conversacional e quatro tarefas da escala, a saber: 1) crenças diferentes; 2) acesso ao conhecimento; 3) crença falsa; 4) crença falsa explícita. Identificou-se o efeito da idade na aquisição da habilidade de compreender regras de conversação, bem como na compreensão de estados mentais, a favor das crianças de cinco anos. Foi também sustentada a hipótese de uma associação entre essas duas habilidades. Evidenciou-se em ambos os grupos um melhor desempenho na tarefa 4 (crença falsa explícita) do que na tarefa 3 (crença falsa). Entre as crianças mais novas, verificou-se ainda uma diminuição no número de acertos, partindo da tarefa 1 (crenças diferentes) para a tarefa 3 (crença falsa). Já as crianças de cinco anos apresentaram um desempenho superior de acertos nas duas primeiras tarefas, apresentando certa diminuição de acertos nas tarefas subsequentes. Diante dos resultados, as autoras sugerem uma avaliação diferenciada dessas tarefas para as crianças brasileiras, na medida em que, uma vez mais, não foi observado um desempenho condizente com a ordem de complexidade das tarefas, como evidenciado em estudos internacionais.

Mais recentemente, Miguel-Silva (2012) pesquisou a correlação entre teoria da mente, linguagem referente aos estados mentais e competência social, investigando 85 crianças (6 e 7 anos) de duas escolas públicas - uma localizada em área central, e outra mais periférica -, de uma cidade mineira. Investigaram-se também possíveis diferenças por sexo e por escola. Utilizou-se um livro com narrativa por imagem para avaliar a atribuição aos estados mentais, bem como a Escala de Teoria da Mente (Wellman & Liu, 2004) e as escalasSocial Skills Rating System - Brazilian version (SSRS-BR, Sistema de Avaliação das Habilidades Sociais) (Bandeira, Z. A. P. Del Prette, Del Prette, & Magalhães, 2009), para investigar a competência social (autoavaliação das crianças e avaliação das docentes). Foram observadas diferenças por gênero e por escola para as variáveis linguagem e competência social, mas não foram encontradas diferenças quanto a esses fatores no que diz respeito à teoria da mente. Ao comparar o desempenho da teoria da mente por tarefas da escala, verifica-se que as crianças atingiram melhor desempenho na tarefa 6 (crença e emoção) do que na tarefa 4 (crença falsa); na tarefa 3 (acesso ao conhecimento) do que na tarefa 2 (crenças diferentes); e nas tarefas 6 e 7 (crença e emoção; emoção real e aparente) do que na tarefa 5 (crença falsa explícita). Além disso, evidenciou-se uma correlação entre as variáveis estudadas. Segundo a autora, os dados encontrados referentes à Escala de Teoria da Mente reforçam que a ordem de desempenho por tarefas é diferenciada do padrão apresentado pelas crianças estadunidenses que participaram do primeiro estudo de Wellman e Liu (2004).

Wellman, Fang e Peterson (2011) destacam a necessidade de considerar como relevantes as experiências socioculturais, familiares e escolares das crianças no desenvolvimento da compreensão dos estados mentais. Nessa direção, inserem-se estudos com intervenção, os quais demonstram efeitos positivos para o aprimoramento sociocognitivo infantil; dentre eles observam-se pesquisas nacionais que têm investigado possíveis relações entre o desenvolvimento da teoria da mente e alguns aspectos relacionados à escolarização, como a compreensão leitora (Noé, 2011).

O estudo de Noé (2011), que investigou 77 alunos de uma escola pública, com média de 7 anos de idade, objetivou avaliar e comparar o desempenho das crianças em tarefas da Escala de Teoria da Mente de Wellman e Liu com a compreensão leitora. Além disso, buscou-se verificar a eficácia de um programa de intervenção, realizado por Rodrigues, Ribeiro e Cunha (2012), dirigido a promover a linguagem mental infantil, por meio da exploração dialogada da leitura de histórias infantis. O estudo comparou o desempenho de um grupo de crianças participantes do programa com o desempenho de não participantes. A compreensão leitora foi mensurada por meio da técnica de Cloze (Santos, 2004), adaptada para identificar e comparar categorias de termos mentais atribuídos ao texto. Esperava-se que as crianças participantes do programa, ao aprimorarem a linguagem mentalista, ampliassem a compreensão dos estados mentais, apresentando melhor desempenho nas tarefas de teoria da mente e nos testes de leitura. Contudo, foram observados resultados similares entre os dois grupos. A autora sugere que fatores individuais não abordados pelo estudo - como nível socioeconômico, estilo das relações parentais e fraternais, experiências escolares com livros de história, dentre outros -, possam ter contribuído para as semelhanças entre os grupos estudados.

Outro fator relevante apontado pelo estudo de Noé (2011) foi o alto desempenho das crianças de ambos os grupos, convergindo com a literatura da área que prevê um desempenho satisfatório para a faixa etária estudada. Quanto ao desempenho por tarefas, verificou-se que as crianças participantes do programa apresentaram um desempenho mais satisfatório na tarefa 3 (acesso ao conhecimento) do que na tarefa 2 (crenças diferentes); e na tarefa 6 (crença e emoção) do que na tarefa 5 (crença falsa explícita). Já as crianças não participantes do programa apresentaram melhor desempenho na tarefa 5 (crença falsa explícita) do que na tarefa 4 (crença falsa). Ambos os grupos apresentaram melhor desempenho na tarefa 6 (crença e emoção) do que na tarefa 4 (crença falsa), o que Noé explica como possível efeito do programa de desenvolvimento sociocognitivo, que focalizou a exploração intencional e dialogada dos termos voltados aos estados internos, durante a leitura com as crianças.

Assumindo a importância de desenvolver pesquisas sobre a teoria da mente e de ampliar resultados referentes à Escala de Teoria da Mente no contexto nacional, buscou-se investigar, no presente estudo, o desenvolvimento dessa habilidade em crianças pré-escolares oriundas de escolas públicas e privadas de uma cidade da zona da mata mineira. Foram também investigadas as variáveis idade, rede de ensino e gênero.

MÉTODO

Participantes

Participaram da pesquisa 178 crianças de Juiz de Fora (MG), matriculadas no 1° e 2º período da educação infantil, respectivamente com média de 4 anos e 5 meses e 5 anos e 4 meses. Dessas crianças, 91 (44 meninos e 47 meninas) eram de duas escolas públicas, e 87 (41 meninos e 46 meninas) de duas escolas particulares. A escolha das escolas foi feita de forma não probabilística, considerando a natureza das escolas, a acessibilidade e o número de crianças.

Instrumentos

Para a realização da coleta de dados, foram utilizados os seguintes recursos:

a) Questionário de caracterização das crianças contendo informações sobre a idade (data de nascimento), sexo e turma, obtidas mediante análise documental da própria escola; b) Escala de Teoria da Mente de Wellman e Liu (2004) traduzida por Domingues et al. (2007) para o contexto brasileiro, com pontuação máxima de 7 pontos. A escala é constituída por sete tarefas: 1) desejos diferentes; 2) crenças diferentes; 3) acesso ao conhecimento; 4) crença falsa; 5) crença falsa explícita; 6) crença e emoção; 7) emoção real e aparente. As tarefas são organizadas sequencialmente, em níveis crescentes de complexidade, permitindo captar o grau de desenvolvimento de sete aspectos vinculados ao desenvolvimento da teoria da mente e dos estados mentais.

Para a aplicação da escala, foram utilizados os seguintes materiais: um boneco e uma boneca grandes; três bonecos e uma boneca pequenos; folhas contendo separadamente imagens de uma cenoura, uma bolacha, uma garagem, uma árvore, uma mochila, um armário, um cachorrinho e um porquinho; uma caixa pequena; uma caixa de Band-Aid; uma caixa de bombom; pedras pequenas; uma folha com o desenho de três faces (um rosto feliz, um neutro e outro triste); uma folha com a imagem de um menino de costas. Ressalta-se que esses materiais foram os mesmos utilizados nos estudos de Noé (2011), Ribas (2011) e Miguel-Silva (2012), a fim de seguir uma padronização quanto à aplicação do instrumento, considerando que a variação de características como tamanho, cor e forma dos bonecos poderia influenciar a coleta realizada com as crianças.

PROCEDIMENTOS

A pesquisa foi autorizada pelos responsáveis das escolas e aprovada pelo Comitê de Ética em Pesquisa (CEP) da Universidade Federal de Juiz de Fora (UFJF), sob Parecer nº 092/2011, de 19 de maio de 2011, Protocolo CEP-UFJF: 2342.82.2011. Após, foi solicitada às escolas uma reunião com os pais para explicação dos objetivos da pesquisa e obtenção do Termo de Consentimento Livre e Esclarecido (TCLE).

Depois desse procedimento e com base na lista de crianças de 4 e 5 anos de idade, foram coletadas informações sobre os grupos participantes. Posteriormente, foi agendada com cada uma das quatro escolas uma reunião com as professoras das respectivas crianças, para explicar os objetivos e a importância da pesquisa e marcar os melhores dias e horários para a realização da coleta de dados. Em seguida, foi feita a identificação do universo de crianças das escolas, para análise das fichas cadastrais e preenchimento do instrumento de caracterização dos sujeitos de pesquisa. Com as crianças, estabeleceu-se, inicialmente, um bom rapport, explicando-se os procedimentos da coleta de dados por meio de exemplos do cotidiano da sala de aula. Também foi obtido o TCLE das crianças, de forma oral. Após o consentimento, a coleta de dados foi feita de forma individual, em espaço especificamente reservado na própria instituição escolar.

Para a aplicação da Escala de Teoria da Mente, em cada tarefa foram contadas pequenas histórias para as crianças, utilizando-se os referidos instrumentos. Ao final de cada história foram feitas perguntas relacionadas às narrativas contadas, avaliando a compreensão das diferentes habilidades relacionadas à teoria da mente; foi atribuído zero para cada resposta incorreta, e um ponto para cada resposta correta.

Os dados referentes à Escala de Teoria da Mente foram tabulados e analisados de forma quantitativa. O desempenho na escala foi examinado empregando-se Média (M) e Desvio-Padrão (DP), descrevendo-se os resultados a partir dos percentuais das variáveis preditoras (idade, rede de ensino e sexo). Empregou-se a Análise de Variância para verificar simultaneamente as diferenças e as interações entre as médias dos escores obtidos na Escala de Teoria da Mente entre as três variáveis. Por fim, foi utilizado o Modelo de Regressão Linear Múltipla para verificar se houve significância de possíveis diferenças entre as variáveis preditoras.

RESULTADOS E DISCUSSÃO

Os resultados por faixa etária indicam que o grupo de crianças de 5 anos obteve médias superiores (M = 4,61;DP = 1,38) às das crianças de 4 anos (M 3,41; DP 1,57), sendo essa diferença significativa (< 0,001). Tais resultados convergem com os resultados obtidos por Maluf et al. (2011), segundo os quais crianças mais velhas também obtiveram maior êxito na Escala de Teoria da Mente de Wellman e Liu (2004). No que concerne à variável idade, os resultados obtidos estão de acordo com as afirmações de Carpendale e Lewis (2006), Lane et al. (2010) e Shakoor et al. (2012), os quais acreditam em uma evolução gradual da compreensão dos estados mentais no processo de aquisição da teoria da mente. Realizou-se também uma análise do desempenho por tarefa, considerando a idade dos participantes.

Conforme mostra a Figura 1, não se observa uma sequência decrescente no desempenho das crianças, divergindo, portanto, dos resultados encontrados por Wellman e Liu (2004) com crianças norte-americanas. Ao considerar o grupo de crianças com 4 anos, verifica-se maior êxito na tarefa 5 (crença falsa explícita) do que na tarefa 4 (crença falsa), assim como melhor desempenho na tarefa 6 (crença e emoção) do que na tarefa 4 (crença falsa). Ainda em relação a esse grupo, o desempenho na tarefa 7 (emoção real-aparente) superou o apresentado na tarefa 4 (crença falsa). No grupo de participantes com 5 anos, observa-se maior sucesso na tarefa 3 (acesso ao conhecimento) do que na tarefa 2 (crenças diferentes), bem como melhor desempenho nas tarefas 6 e 7 (crença e emoção; emoção real-aparente) do que na tarefa 4 (crença falsa).

 

Figura 1. Curvas de desempenho dos participantes por idade. 

 

Pesquisas realizadas no contexto nacional (Maluf et al., 2011; Miguel-Silva, 2012; Noé, 2011; Ribas, 2011) encontraram resultados semelhantes aos apresentados pelos participantes do presente estudo. A convergência de resultados em estudos com crianças brasileiras pode constituir um indicativo da interferência de fatores relacionados ao contexto cultural na aquisição da teoria da mente, como descrito por Shahaeian et al. (2011).

É importante destacar que pesquisas realizadas em outros contextos socioculturais também encontraram diferenças quanto à sequência de desenvolvimento da teoria da mente, tanto em crianças chinesas comparadas com americanas e australianas (Wellman et al., 2006), quanto em crianças iranianas comparadas com australianas (Shahaeian et al., 2011).

A segunda análise dos resultados considerou os participantes de acordo com a natureza da rede de ensino, demonstrando que o grupo de alunos das escolas particulares (M = 4,39; DP = 1,58) obteve resultados mais expressivos em relação aos participantes de escolas públicas (M = 3,79; DP = 1,53), sendo essa diferença significativa (< 0,008). Nessa direção, os resultados aqui obtidos condizem com as considerações feitas por Wellman et al. (2011), os quais advogam a relevância das experiências socioculturais, familiares e escolares das crianças.

Não foram encontrados estudos que fornecessem resultados referentes à aplicação da Escala de Teoria da Mente em crianças brasileiras em diferentes redes de ensino, sendo esta uma vertente de pesquisa possível para investigações futuras. Tal diferença pode ser apontada para as possíveis distinções entre as experiências vivenciadas pelas crianças desses diferentes contextos escolares, o que vai ao encontro de alguns estudos nessa direção (Shahaeian et al., 2011; Wellman et al., 2011). Os resultados abrem espaço para novas investigações que possam abarcar de forma mais ampla a relação desses fatores com a aquisição da teoria da mente.

A partir das diferenças apresentadas entre as variáveis idade e rede de ensino, utilizou-se o Modelo de Regressão Linear Múltipla a fim de mensurar o peso da significância dessas diferenças encontradas no desempenho da escala, como demonstra a Tabela 1. Evidencia-se que a distinção entre as idades foi mais sensível do que entre as redes de ensino, o que pode ser explicado considerando-se os valores apresentados. O coeficiente Beta da variável idade é superior ao da rede de ensino. Destaca-se uma relação direta do fator idade que afeta positivamente o desempenho da teoria da mente, enquanto o fator escola pública atua negativamente nesse desempenho.

 

Tabela 1 Modelo de Regressão Linear Múltipla 

Variáveis Coeficientes não padronizados   Coeficientes padronizados   t   Sig.  
                 
B DP   Beta   B   DP  
         
Constante 4,017 0,109     -36,755 0,000  
Rede de ensino - 0,285 0,108 -0,180 0-2,625 0,009  
Idade 0,593 0,109 -0,372 0-5,421 0,000  
                   

Nota: B: Coeficiente não padronizado da equação de regressão; DP: Desvio-Padrão; Sig.: Significância

 

Por fim, considerou-se a análise tendo como parâmetro a variável sexo, evidenciando que as meninas obtiveram média superior (M 4,22; DP = 1,54) se comparada com a média dos meninos (M = 3,94; DP =1,62). Contudo, tal diferença não se mostrou significativa (< 0,38), convergindo com os estudos nacionais conduzidos por Ribas (2011) e Miguel-Silva (2012), os quais também não encontraram diferenças quanto ao sexo.

O desenvolvimento sociocognitivo influencia de maneira expressiva a vida das crianças. Como discutido no presente artigo, a compreensão dos estados mentais vincula-se a aspectos importantes para as interações cotidianas e, de forma mais ampla, para a compreensão acerca do mundo social.

A literatura apresentada assume como hipótese principal que há uma evolução gradual da compreensão dos estados mentais no processo de aquisição da teoria da mente. O presente estudo corrobora essa hipótese, visto que as crianças com 5 anos apresentaram um desempenho superior às de 4 anos. Dessa forma, a escala utilizada mostrou-se sensível para captar a sequência evolutiva da teoria da mente nas crianças aqui pesquisadas.

A teoria da mente é uma área de investigação emergente no Brasil, sendo ainda escassas as investigações que utilizaram a Escala da Teoria da Mente. Ressalta-se, portanto, a importância de mais estudos que contemplem amostras maiores e mais diversificadas, que possam verificar a sequência evolutiva mais próxima da real aquisição dos conteúdos das tarefas da escala nas crianças brasileiras. Nessa direção, torna-se imperiosa a realização de estudos para validação da escala no contexto nacional. Espera-se que os resultados obtidos na presente pesquisa ofereçam contribuições para essa área de investigação.

 

REFERÊNCIAS

 

Bandeira, M., Del Prette, Z. A. P., Del Prette, A., & Ma-galhães, T. (2009). Validação das Escalas de Habilidades Sociais, Comportamentos Problemáticos e Com-petência Acadêmica (SSRS - BR) no ensino funda-mental. Psicologia: Teoria e Pesquisa, 25(2), 271-282. [ Links ]

Benavides, J. D., & Roncancio, M. M. (2009). Conceptos de desarrollo en estudios sobre Teoría de la Mente en las últimas tres décadas. Avances en Psicología Latinoamericana, 27(2), 297-310. [ Links ]

Bueno, J. M. H. (2008). Construção de um instrumento para avaliação da inteligência emocional em crianças (Tese de doutorado não-publicada). Universidade São Francisco, Itatiba. [ Links ]

Carpendale, J., & Lewis, C. (2006). How children develop social understanding. Malden: Blackwell Publishing. [ Links ]

Domingues, S. F. S., Valério, A., Panciera, S. D. P., & Maluf, M. R. (2007). Tarefas de crença falsa na avaliação de atribuição de estados mentais. In P. W. Shelini (Org.), Alguns domínios da avaliação psicológica (pp.141-162). Campinas: Alínea. [ Links ]

Flavell, J. H., Flavell, E. R., & Green, F. L. (1983). Development of the appearance-reality distinction. Cognitive Psychology, 15(2), 95-120. [ Links ]

Lane, J. D., Wellman, H. M., Olson, S. L., LaBounty, J., & Kerr, D. C. R. (2010). Theory of mind and emotion understanding predict moral development. Early childhood British Journal of Developmental Psychology, 28(4), 871-889. [ Links ]

Lisboa, C. S. M., & Koller, S. H. (2001). Escala de percepção por professores dos comportamentos agressivos de crianças na escola. Psicologia em Estudo, 6(1), 59-69. [ Links ]

Maluf, M. R., Gallo-Penna, E. C., & Santos, M. J. (2011). Atribuição de estados mentais e compreensão conver-sacional: estudo com pré-escolares. Paidéia, 21(48), 41-50. [ Links ]

Miguel-Silva, R. L. (2012). Teoria da mente, linguagem e competência social: um estudo comparativo com alunos do ensino fundamental (Dissertação de mestrado não-publicada). Universidade Federal de Juiz de Fora. [ Links ]

Noé, P. A. A. B. (2011). Teoria da Mente e compreensão leitora: um estudo com alunos participantes de um programa promotor de desenvolvimento sociocogni-tivo (Dissertação de mestrado não-publicada). Universidade Federal de Juiz de Fora. [ Links ]

Perner, J., Leekam, S. R., & Wimmer, H. (1987). Three-year old's difficulty with false belief. British Journal of Developmental Psychology, 5(2), 125-137. [ Links ]

Premack, D., & Woodruff, G. (1978). Does the chimpanzees have a theory of mind? Behavioral and Brain Science, 1(4), 515-526. [ Links ]

Ribas, D. A. (2011). Teoria da Mente e Compreensão das emoções: um estudo comparativo com alunos do ensino fundamental (Dissertação de mestrado não-publicada). Universidade Federal de Juiz de Fora. [ Links ]

Rodrigues, M. C., Ribeiro, N. N., & Cunha, P. C. (2012). Leitura mediada com enfoque sociocognitivo: ava-liação de uma pesquisa-intervenção. Paidéia, 22(53), 393-402. [ Links ]

Santos, A. A. A. (2004). O Cloze como técnica de diagnóstico e remediação da compreensão em leitura. Interação em Psicologia, 8(2), 217-226. [ Links ]

Shahaeian, A., Peterson, C. C., Slaughter, V., & Wellman, H. M. (2011). Culture and the sequence of steps in theory of mind development. Developmental Psychology, 47(5), 1239-1247. [ Links ]

Shakoor, S., Jaffee, S. R., Bowes, L., Ouellet-Morin, I., Andreou, P., Happé, F., ... Arseneault, L. (2012). A prospective longitudinal study of children's theory of mind and adolescent involvement in bullying. Journal of Child Psychology and Psychiatry, 53(3), 254-261. [ Links ]

Wellman, H. M., Fang, F., Liu, D., Zhu, L., & Liu, G. (2006). Scaling of theory of mind understanding in Chinese children. Psychological Sciences, 17(12), 1075-1081. [ Links ]

Wellman, H. M., Fang, F., & Peterson, C. C. (2011). Sequential progressions in a Theory-of-Mind Scale: Longitudinal perspectives. Child Development, 82(3), 780-792. [ Links ]

Wellman, H. M., & Liu, D. (2004). Scaling of Theory-of-Mind tasks. Child Development, 75(2), 523-541. [ Links ]

Wimmer, H., & Perner, J. (1983). Beliefs about beliefs: Representation and constraining function of wrong beliefs in yong children's understanding of deception. Cognition, 13(1), 103-128. [ Links ]

Apoio: Fundação de Amparo à Pesquisa do Estado de Minas Gerais (Processo: APQ-01049-11).

Recebido: 22 de Agosto de 2013; Aceito: 18 de Dezembro de 2013

Correspondência para/ Correspondence to M.C. RODRIGUES. E-mail: <rodriguesma@terra.com.br>.


Artigo original:

http://www.scielo.br/scielo.php?script=sci_arttext&pid=S0103-166X2015000200213&lng=pt&nrm=iso&tlng=pt

O portal Psiquiatria Infantil.com.br já recebeu

46.676.912 visitantes