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Londrina, 29 a 31 de outubro de 2007 – ISBN 978-85-99643-11-2
POR DETRÁS DA CORTINA DA “PERDA AUDITIVA”:
O TEATRO COMO ESPAÇO ARTETERAPÊUTICO PARA SURDOS
Daniela Roberta Dal´Forno Ferenci - Universidade de Passo Fundo
Tatiana Bolivar Lebedeff – Universidade de Passo Fundo
RESUMO
O trabalho trata de uma pesquisa-ação realizada com oito jovens surdos sobre o uso do teatro
como instrumento arteterapêutico para auxiliar o surdo a ultrapassar barreiras que o
desconhecimento e o preconceito com a surdez impõe. A pesquisa teve como objetivo desafiar um
grupo de jovens surdos a utilizarem o teatro terapêutico para reconhecerem-se e refletirem sobre
suas identidades conscientes de suas diferenças, utilizando a força de uma nova possibilidade de
expressão. Foram realizados doze encontros, sendo que em cada um foram desenvolvidas
atividades arteterapêuticas tendo como fio condutor o teatro. Ao final dos encontros pode-se
verificar, via entrevistas, depoimentos ocorridos durante o desenvolvimento das atividades e
observação do desempenho expressivo, os benefícios que a arte produziu nos participantes,
auxiliando a afastá-los do estigma do fracasso imposto pela sociedade. O corpo de cada um dos
artistas foi considerado como um veículo de comunicação e expressão.
Introdução
No campo de conhecimento da Arteterapia pode-se presenciar a arte sendo usada para
ressignificar a compreensão que cada sujeito tem de si, nesse sentido, a arteterapia pode ser
utilizada como forma de compreensão, de expressão e comunicação (Ormezzano, 2005). Esta
pesquisa buscou possibilitar aos sujeitos surdos momentos de ressignificação de suas auto-biografias
(Bruner, 2001). Adotou-se, na pesquisa, o termo “surdo” referindo-se a um grupo social, de
minoria lingüística, possuidor de cultura própria, com formas próprias de assimilar e expressar o
mundo. Perlin (2005) afirma que o surdo tem diferença e não deficiência.
Foram realizados 12 encontros semanais com um grupo de oito jovens surdos. Em cada
encontro foram desenvolvidas atividades arteterapêuticas que utilizaram, como fio condutor, o
teatro. Deste modo, oito jovens vivendo momentos de transformações tanto corporais, como
afetivas e psicológicas entraram em cena. Logo nos primeiros encontros percebeu-se uma dura
realidade: o grande problema da surdez não é a deficiência em si, mas o modo como as pessoas
ouvintes reagem a ela, a família, os amigos, a escola, a sociedade. Lulkin consegue traduzir a
dificuldade do contexto em questão quando afirma
aquele que não ouve tão bem, ou não percebe algumas manifestações sonoras na
medida em que deveria, via de regra, passa a ser distinguido como alguém com uma
perda, com uma carência, com uma falta de, com uma deficiência, e também como uma
pessoa portadora de uma especialidade. Essa nomenclatura cria uma circunscrição
marcada pela inferioridade, pela deficiência, aprisionando aquele que diz e aquele do
qual se diz. (2005, p.40).
Percebeu-se, então, o quanto os surdos estão inseridos no estigma da deficiência, termo
carregado de um sentido pejorativo e cheio de preconceitos. Perlin, autora que se apresenta como
sendo mulher, surda, não nativa, teóloga e militante pela causa surda, afirma que: “Exprimidos pela
participação ouvinte, os surdos são vistos como figuras frias desprovidas de definição cultural.
Admitidos como tipo incapazes, continuam a carregar a marca de seus corpos ditos mutilados, de
inteligência dita fracassada [...].” (2005, p.55).
Há muito tempo o poder de expressar-se através da fala está ligado à possibilidade de
pensar. Desde a antiguidade a oralização era responsável por, entre outras coisas, possibilitar a
integração do indivíduo à sociedade. A dificuldade de entender a linguagem oral era tida como
responsável por comportamentos agressivos, nervosismo, rebeldia e inércia dos surdos. Não havia
preocupação em compreender quem não podia se fazer compreender através da oralidade.
Quando se olha a surdez com atenção, com reflexão, procurando entender a maneira de
como o surdo busca compreender o mundo, sua singularidade via experiência visual (Skliar, 1998),
sua subjetividade/objetividade, fornecendo a possibilidade de desenvolver sua identidade, sua
individuação, fica-se inebriado com tanta riqueza. Há uma suavidade e uma beleza no sistema de
comunicação gestual. Sendo assim, é lamentável que se coloque o ouvinte como um referencial
para um não-ouvinte. Este padrão de referência pode ser encontrado na família, entretanto, pode-se dizer que a escola é o local, por excelência, da cristalização de um padrão oralista/ ouvintista
para os surdos.
Lebedeff (2006) denuncia a precariedade de escolarização a que os surdos seguem sendo
submetidos, apesar das disposições legais. Para a autora os alunos surdos permanecem desprovidos
de língua, alijados de cultura, com currículos inadequados, não compreendidos em suas
singularidades, relegados à sua própria sorte no processo de construção do conhecimento.
Percebendo as diversas questões escondidas por detrás das cortinas da “perda auditiva”,
serão apresentadas, nesta pesquisa, maneiras de possibilitar atividades teatrais arteterapêuticas para
um grupo de jovens surdos como exercício de ressignificação autobiográfica, proporcionando que
cada um compreendesse a si mesmo, o outro e o mundo que o cerca, fortalecendo a auto-estima, a
autoconfiança, permitindo o autoconhecimento para um viver mais intenso e, principalmente, mais
prazeroso.
Método
As representações corporais acompanham o cotidiano de um sujeito surdo desde a mais
tenra infância. A criança surda descobre, desde muito cedo, a necessidade de comunicação gestual.
Durante muito tempo os gestos são idiossincrásicos (Lebedeff, 2004) e, mesmo quando se apropria
da língua de sinais, o corpo todo é envolvido no ato da comunicação. Para Rosa, da mesma
maneira que um ouvinte transmite suas emoções por meio de ruídos, melodia e imposição de voz, o
surdo materializa no corpo. A autora explica:
Existem sinais que são configurados da mesma maneira, sendo o sentido marcado
pela expressão facial ou corporal. A ênfase na oralidade será marcada na Língua de
Sinais pela expressão facial. Assim como, para o ouvinte, um tom de voz traz muitos
significados, para os surdos a expressão corporal, juntamente com os sinais, carrega
muitos significados. (2003, p.242).
Conhecedores, mesmo que involuntariamente, de todo um trabalho de expressão corporal,
oito jovens surdos com idades que variam entre 15 e 23 anos foram, de fato, os atores desta
pesquisa. Dos oito, sete eram alunos da APAS (Associação de Pais e Amigos dos Surdos) de
Passo Fundo, e um cursava o ensino superior na Universidade de Passo Fundo. Através de um
trabalho de maquiagem com criação de máscaras, no qual cada um dos participantes fez a escolha
de um personagem, caracterizou-se e autonomeou-se, obtiveram-se as identificações para cada um
deles. Os participantes foram identificados, portanto, como: o Anjo, o Touro, a Palhaça, a
Prostituta, a Dançarina, o Jogador, o Homem/Mulher e a Criança.
Os encontros foram realizados numa sala de teatro da Universidade de Passo Fundo (Sala
de Espetáculos da UPF), que possui um amplo palco de madeira e arquibancadas no formato de
meia arena. O espaço também continha um pequeno camarim que se mostrou extremamente útil em
vários momentos.
A Língua Brasileira de Sinais foi a língua preponderante durante todos os encontros. Para
auxilio na comunicação com o grupo, contou-se com a ajuda de uma intérprete de Língua de Sinais
que cursa a Faculdade de Artes Visuais. As autoras Lima, Boechat e Tega nos apresentam a língua
de sinais como indispensável ao desenvolvimento da pessoa surda. Elas esclarecem:
A Língua de Sinais é uma língua visuogestual, criada pela comunidade de surdos.
Ela é composta de movimentos e formatos específicos de mãos, braços, olhos, face,
cabeça e postura corporal, que combinados fornecem as características gramaticais
necessárias para a formação de uma língua (fonológica, sintáticas, semânticas e
pragmáticas). É o meio natural de comunicação entre surdos, e a criança deve ser
exposta a ela o mais cedo possível por meio do contato com adulto surdo fluente em
situações significativas e contextualizadas. (2003, p.46).
Assumir a identidade lingüística deste grupo foi a forma de fazê-los sentirem-se parte do
processo de construção desta pesquisa, uma maneira de incluí-los no processo arteterapêutico.
Perlin (2005) comenta que o caso dos surdos na cultura ouvinte, infelizmente é um caso em que a
identidade é reprimida, rebela-se e afirma-se em questão da original. Entendendo identidade como
algo que se transforma, que não é fixo, que não está pronto; algo em construção, uma construção
móvel que poderá freqüentemente ser transformada. Para esta pesquisa trilhou-se um caminho em
busca de um objetivo maior, que era possibilitar a um grupo de jovens surdos atividades para
reconhecer-se, auxiliando na construção de identidades consciente de suas diferenças,
comprovando a força de uma nova possibilidade de expressão: o teatro terapêutico.
Como atividades de teatro terapêutico foram utilizadas as técnicas desenvolvidas por Boal
(1996), que apresenta o teatro como capacidade humana que permite ao sujeito se observar em si
mesmo, em ação, em atividade. Assim, o auto-conhecimento adquirido permite-lhe ser sujeito
(aquele que observa) de outro sujeito (aquele que age). Ou seja, o ser humano vendo-se no ato de
ver, de agir, de sentir, de pensar. Dentre as atividades desenvolvidas pode-se citar: o encontro dos
espelhos, o encontro dos detalhes, consciência corporal, o homem primitivo, o nascimento do
teatro, entre outros.
Como instrumentos para a coleta de dados foi utilizado o método de observação, através do
diário de campo, relatando percepções, angústias, questionamentos, informações, colocando as
vivências arteterapêuticas como elemento indispensável do projeto.
A partir do momento em que iniciaram as atividades arteterapêuticas, várias indagações
vieram à tona: É possível aos surdos construírem uma identidade, num espaço onde se reconheçam,
conscientes de suas diferenças, através do teatro terapêutico? O teatro terapêutico pode ser
considerado para o surdo uma forma de comunicação capaz de fazê-lo compreender melhor a si e
os seus espaços? Qual a significância do processo arteterapêutico para este grupo?
As respostas para estas perguntas foram surgindo durante os encontros, quando foram
registradas as percepções de como os surdos olham, criam, vivenciam e representam seus
significados.
Resultados
Muitas foram as histórias de esquecimentos e conquistas acompanhadas durante o período
desta pesquisa. O surdo brigando por seu espaço, pelos seus direitos. No palco o grupo se
afastou do “silêncio” do mundo não só pelas mãos, mas utilizando o corpo todo, mãos, braços,
olhos, pernas, pés, quadril, cabeça, ombro. Seus corpos constituindo, representando, significando o
universo.
Nos primeiros encontros procurou-se que os participantes se ambientassem no novo
espaço, o palco; que se reconhecessem enquanto surdos, com língua e cultura diferentes; que
utilizassem um novo meio de expressão, o teatro. Quando se percebeu, já havia sido encontrada
uma maneira de estabelecer a comunicação. Sem nem mesmo ocorrer qualquer tipo de combinado,
as palavras não se fizeram mais necessárias, o olhar falava mais alto. A língua de sinais foi
fundamental para estabelecer essa ligação. Adotar essa língua como a língua de comunicação
proporcionou um espaço para a realização do potencial intelectual e emocional de cada um. No
palco se pode perceber que eles se reconheciam, comunicando-se com seus semelhantes,
adquirindo e partilhando informações. Neste espaço não havia deficientes; somente pessoas
diferentes.
Percebeu-se a grande necessidade do reconhecimento, urgente, das diferenças, por toda a
sociedade de um modo geral, não simbolicamente, mas sim efetiva e verdadeiramente. Dorziat
(1999) comenta que só através da consciência de que existam diferenças e de que estas precisam
ser respeitadas é que conseguiremos construir sociedades mais justas e talvez possamos promover
uma igualdade de condições de vida entre surdos e ouvintes.
Provou-se ser possível proporcionar espaços onde os surdos possam se manifestar, se
expressar e construir sua identidade sem nenhum tipo de repressão ouvinte. Nos encontros
constatou-se o quanto o grupo se mostrava disponível e aberto para todas as solicitações. As
propostas eram aceitas com entusiasmo e realizadas com um prazer imenso. Um dos equívocos
cometidos no início desta pesquisa foi a necessidade de, a partir da percepção de ouvintes, ver de
suas mãos saírem palavras que demonstrassem seus sentimentos, suas percepções e sensações.
Tiveram que ser “deletadas” as concepções prévias de língua e comunicação para abrir portas a
outro tipo de linguagem: não apenas as mãos comunicam, não apenas das bocas saem palavras,
seus corpos possuíam e respondiam a todas as perguntas.
Sugere-se, através das observações realizadas, das inferências formuladas a partir dos
encontros, que a arteterapia desenvolvida via o teatro terapêutico para surdos é de extrema
importância. Foi possível ver e compreender que a arte tornou a vida dessas pessoas mais
saborosa, mais prazerosa, quebrando a barreira da racionalidade e da imposição da condição de
“deficiente” por parte de toda uma sociedade limitada e limitante que preconiza a discriminação.
Os jovens participantes começaram a mudar sua autobiografia: não mais sujeitos sem fala,
não mais sujeitos sem audição. Começaram a se auto narrar como atores, personagens e
protagonistas de novas histórias, de novas narrativas, de novas possibilidades de comunicação e
expressão. O participante Anjo comentou, em um dos encontros, ao comparar jardins de apenas
uma flor com jardins compostos por vários tipos de flores: As pessoas não são iguais, cada uma é
diferente, o bonito é isso.
A partir dos encontros foi possível compreender, de forma mais potencializada, as idéias de
Skliar (1998), de que a surdez não é o problema, não são os surdos, não são as identidades surdas,
não é a língua de sinais, mas as representações dominantes, hegemônicas e “ouvintistas” produtoras
de “verdades” prejudiciais sobre identidades surdas, a língua de sinais, a surdez e os surdos, que
desconsideram suas possibilidades cognitivas, afetivas e criativas, esquecendo-se de que este sujeito
é portador de um diferença, não uma deficiência.
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