http://www.psiquiatriainfantil.com.br/congressos/uel2007/035.htm


Londrina, 29 a 31 de outubro de 2007 – ISBN 978-85-99643-11-2

ALTERNATIVA METODOLÓGICA PARA AS DISCIPLINAS DE EDUCAÇÃO ESPECIAL NAS LICENCIATURAS: NARRATIVAS MEMORIAIS, REPRESENTAÇÕES DA DEFICIÊNIA E FORMAÇÃO DE PROFESSORES

Leandra Bôer Possa
Maria Inês Naujorks


RESUMO

A possibilidade de dar significado e sentido as Disciplinas da área de Educação Especial aos cursos de licenciatura, este texto apresenta a perspectiva das narrativas memoriais como prática metodológica que podem proporcionar aos graduandos/as a oportunidade de refletir sobre as experiências de construção de representações em torno das deficiências. O nosso objetivo é propor a essas disciplinas discutir as experiências de vida e de aprendizagem de acadêmicos/as considerando que suas representações sobre a pessoa deficiente influenciam decisivamente na imposição de barreiras atitudinais que distanciam a prática do educador dos possíveis processos de inclusão que ao longo da carreira profissional terão que desenvolver.  A proposição metodológica das narrativas memoriais como possibilidade de desenvolvimento das disciplinas, em questão, tem o propósito de desvelar como as marcas representacionais que estes/as acadêmicos/as trazem em suas histórias de vida, atravessam seus processos formativos. Por isso, neste texto reflexivo, questionamos o planejamento de conteúdos curriculares meramente informativos na formação de educadores nas Licenciaturas uma vez que os mesmos, pouco impactam ou desequilibram as sínteses representacionais construídas, pelos acadêmicos/as, sobre a deficiência, ao longo de suas trajetórias de vida. Propomos, por isso, uma outra via de organização curricular para dar conta desta complexidade: um currículo sensível à adoção de procedimentos metodológicos que considere as Representações Sociais dos alunos e que questione os conteúdos previstos “a priori” considerando as marcas representacionais construídas pela experiência de vida individual e coletiva. Sabemos, no entanto, que marcas representacionais não se descolam facilmente dos sujeitos, mas podem ser reelaboradas a partir das descrições narrativas. Consideramos relevante estas discussões por compreender que a Universidade, “lócus” formativo de professores, tem o compromisso de se antecipar oferecendo aos acadêmicos/as, oportunidades crítico-reflexivas, que venham ao encontro das demandas da escola atual, aberta à diferença, comprometida com projetos inclusivos, onde a deficiência é entendida como condição e não como déficit.




As pesquisas sobre práticas educativas e formativas para o ensino básico, com enfoque nas aprendizagens escolares, têm demonstrado a importância de considerar as experiências e vivencias do sujeito. Diante deste pressuposto tem-se efetivado, no campo da pedagogia, a perspectiva epistemológica fundamentada em concepções de aprendizagem que tem como referencia a construção significativa de conhecimentos. Diante desta evidência, tem se efetivado metodologias pedagógicas que levam em consideração os conhecimentos prévios ou anteriores do aluno como ponto de partida para um processo de aprendizagem que prevê a aprendizagem de novos conhecimentos.
Estas metodologias, utilizadas no ensino básico, nem sempre se aplicam na pedagogia universitária, pois a formação profissional, objeto de estudo do estudante universitário, é tomada como algo novo e ainda não apropriado pelo aluno como conhecimento anterior.  Por isso, os processos de aprendizagem anteriores dos sujeitos, que chegam à universidade, pouco são levados em consideração, tendo em vista que as aprendizagens e conhecimentos prévios são considerados pouco significativos para aprendizagem da profissionalização.
O que ganha estatuto na formação universitária é o conhecimento científico ligado a profissão e que, metodologicamente construído pelas áreas científicas, se constitui em explicação e compreensão da realidade. As aprendizagens de conhecimentos e saberes da profissão têm, por assim dizer, a pretensão de ensinar uma forma de pensar e agir do profissional e da pessoa que está em formação. O que se percebe, no entanto, é que pouco se possibilita a reflexão e a identificação de como estes saberes que constroem representações profissionais e pessoais são produto e produtores de realidade1.
1 Saber que para Foucault se constitui em base de poder, pois o saber funciona como transmissor de poder quando produz uma realidade. O Saber-Poder da ciência e, por isso, do conhecimento universitário que são organizados nos currículos de formação, se constituem de uma força discursiva científica, política, social e cultural, e esta produz uma verdade que é tomada neste processo (tanto pelos formadores como pelos formandos) como representação da verdade. Neste sentido, as aprendizagens de saberes nos processos de formação não são coercitivas, mas se constituem de um poder que é produtivo, que produz o sujeito e, ao mesmo tempo, produz uma realidade. (FOUCAULT, 2005)

Trabalhando com a pesquisa no ensino superior e buscando desvelar a perspectiva epistemológica da sala de aula e do processo de aprendizagem no ensino superior Possa (2001) destacou que o paradigma racionalista tem uma força determinante na atuação do professor universitário e diz que

As relações educativas que se estabelecem no ensino universitário perpassam por uma concepção de conhecimento que sob a perspectiva de verdade é ditada pelo professor, a avaliação se constitui elemento de poder e sendo a realidade falseada em seus conflitos com a lógica racional e linear se disfarça ideologicamente o real e o apresenta como natural, imutável, fechada em si mesmo. Julga-se o conhecimento transmitido pelo sistema educativo universitário como gerador de verdades e conclusões científicas são incontestáveis e intocadas por outros campos do saber. (POSSA, 2001, p. 28)
            
Então, mudar as representações de construção do conhecimento no ensino superior, colocando em prova a capacidade de realizar aquilo que discursivamente se converte em legado da universidade nas pesquisas sobre aprendizagem para a escola básica, oportuniza repensar os processos metodológicos em que se inserem a formação do pedagogo. Ou seja, valorizar o conhecimento prévio como um saber e as vivencias do sujeito como referência para os processos formativos. Nesse sentido, pensamos que a atuação profissional do professor universitário nas Licenciaturas, deve primar pela não marginalização de outros saberes, produzidos no campo simbólico das representações, em detrimento de um conhecimento científico unívoco.
A percepção e reflexão em torno da história e da produção do conhecimento pela humanidade, como resultado da pluralidade das práticas sociais e culturais, permitem ao ensino superior, em seus processos pedagógicos-formativos, tomar como referência de mediação de aprendizagens de uma profissão, as diferentes formas de conhecer e de compreender o mundo. Essas formas e modos são vivenciados pelos sujeitos em formação, ao longo de suas trajetórias de aprendizagem, em diferentes contextos educativos, sendo por isso importante pensar processos formativos a partir de rememorações de experiências que foram dando tessituras às representações que o compõem enquanto identidade presente.
Nesse sentido, numa relação entre ação e conhecimento, Larrosa Bondía (2002) aponta que o processo de aprender exige mais existência e estética e propõe pensar a formação tendo a experiência e o sentido como par. Para isso o processo educativo da profissão tem como base o sujeito da experiência, tendo em vista que:

Esse sujeito que não é o sujeito da informação, da opinião, do trabalho, que não é o sujeito do saber, do julgar, do fazer, do poder, do querer. [...] o sujeito da experiência seria como um território de passagem, algo como uma superfície sensível que aquilo acontece afeta de algum modo, produz alguns afetos, inscreve algumas marcas, deixa alguns vestígios, alguns efeitos. [...] o sujeito da experiência é um ponto de chegada, um lugar a que chegam as coisas, como um lugar que recebe o que chega e que, ao receber, lhe dá lugar. [...] o sujeito da experiência é, sobretudo um espaço onde têm lugar os acontecimentos. (2002, p. 19)

 Pensando nessa perspectiva de experiência proposta por Larrosa, passamos a perceber que as práticas de formação nas Licenciaturas podem ser concebidas tendo as experiências e as vivencias como parte integrante de um processo de formação profissional.  A perspectiva da formação objetiva, racional, técnica e até crítica, como via máxima da formação de professores, precisa dar lugar para mais um ingrediente que se constitui pela via da subjetividade. Esse se traduz nas memórias e na história de vida, pois como afirma o autor: “É experiência aquilo que ‘nos passa’, ou que nos toca, ou que nos acontece, e ao nos passar forma e nos transforma” (2002, p.18-19).
Foi, a partir, do estudo realizado com setenta e quatro acadêmicos/as da Licenciatura em Pedagogia, da Universidade Federal de Santa Maria-RS, que percebemos como a experiência é aquilo que nos passa, nos toca, mas, sobretudo, que nos constitui. A reflexão desses acadêmicos/as nos possibilitou perceber que a reflexão da experiência de vida, com pessoas deficientes na família, na escola e na comunidade, bem como, a análise sobre como aprenderam e se apropriaram dos conhecimentos em torno disso, foram decisivos para a construção de suas representações.
Podemos perceber com esse trabalho investigativo que as experiências retidas na memória exercem influencias nas representações de aluno deficiente, dos futuros professores/as. Percebemos, também, que ao se confrontar com as discussões da escola, que legitima as políticas de inclusão escolar, a mola mestra de suas ações discursivas e atitudinais estão permeadas pelas representações que, ao longo de suas histórias de vida, experimentaram e aprenderam.
Portanto, o professor/a universitário que opta pela metodologia das narrativas memoriais, para o desenvolvimento das Disciplinas de Educação Especial, nos cursos de Licenciatura, precisa ter em mente a reflexão sobre o que ensina e sobre como media processos de trans-formação de representações. 
Nossas experiências profissionais e a pesquisa no campo das representações e imaginário, têm nos mostrado que não bastam, para a formação de professores, duas ou três disciplinas que discutam a Educação Especial no seu aspecto teórico, tendo em vista os fundamentos ou a dimensão política que envolve o tema. Para os futuros professores, é também necessária a reflexão que possibilita reconstruir concepções de ser humano e sociedade tendo em vista o seu papel na proposição de um processo de aprendizagem escolar inclusivo e, por conseguinte, uma sociedade inclusiva que respeite as diferenças.
Por isso, as disciplinas que envolvem a Educação Especial necessitam considerar no espaço e tempo da formação inicial de professores, a construção de narrativas2 memoriais, que expressem a experiência de vida em relação à deficiência e a condição especial da pessoa deficiente nos contextos em que essas experiências aconteceram. Sabemos, no entanto, que as experiências narradas não podem ser, de modo direto, compreendidas e apreendidas pelas teorias tradicionais que se desenvolve nos currículos dessas disciplinas. As representações que os acadêmicos/as trazem estão no nível da produção simbólica, transformando-se tanto em produto como em produtoras de um imaginário social que povoa as experiências e, por assim dizer, resultavam em sentimentos e pensamentos construídos e produzidos em relação à pessoa deficiente.
2 Narrativas que se colocam como meio em que “as pessoas lembram o que aconteceu, colocam a experiência em uma seqüência, encontram possíveis implicações, [...] e jogam com a cadeia de acontecimentos que constroem a vida individual e social” (ABRAHÃO apud JOVCHELOVITCH e BAUER, 2002, p. 203)
Consideramos, portanto, que os conteúdos de Educação Especial precisam contribuir com a percepção e a reflexão das representações construídas em torno da deficiência. É necessário identificar a metodologia das narrativas memoriais como uma via possível que coloca cada acadêmico/a em interação com suas experiências e representações, para que assim possa desvelar e comunicar para si como elas foram aprendidas, como elas os afetam, como elas inscrevem marcas e produzem efeitos em sua forma de pensar e sentir a deficiência. 
As narrativas memoriais são um caminho, não uma receita metodológica. No entanto, em nossas práticas, as narrativas memoriais vêm mostrando a possibilidade de criar, no ensino universitário, uma alternativa prática que ao mesmo tempo oferece outra dinâmica e conteúdo para os processos de aprendizagem e formação. As trajetórias educativas, as experiências e a construção de representações se constituem em práticas que podem ser refletidas e analisadas, sem imaginar que práticas formativas sejam somente aquelas em que os acadêmicos/as se deslocam para observações dos (e não com os) espaços escolares e que precisam produzir análises simplistas dos mesmos.
Consideramos que o planejamento do professor universitário que toma as narrativas de memórias - fonte de experiências e de construção de representações, conhecimentos prévios dos alunos - tem um trabalho de pesquisa em sua própria sala de aula. O trabalho de planejamento, nessa perspectiva, impõe aos professores considerar o conteúdo da subjetividade, tendo em vista que planejar a ação-reflexão dos sujeitos em torno das memórias e das representações exige muito mais que preparar preleções de teorias científicas tomadas como verdadeiras e explicitadoras da realidade.
Portanto, é através do planejamento metodológico das disciplinas de Educação Especial nas Licenciaturas, que percebemos as possibilidades de sensibilização e abertura para a reconstrução das representações de deficiência e, mais especificamente, a discussão de como as representações podem reconstruir-se.
As experiências metodológicas e formativas, até aqui realizadas, nos possibilitam compreender que é possível mediar informações que potencializem a ação auto-comunicativa3 do sujeito com suas experiências rememoradas. Na experiência de pesquisa, desenvolvida no Curso de Pedagogia e que generalizamos para as Licenciaturas, foi possível perceber que a ação dos alunos os colocam em outro lugar, e que a instrumentalização teórica está exercendo o papel de desvelar as Representações Sociais dos alunos, questionando os conteúdos previstos “a priori” e considerando as marcas representacionais construídas pela experiência de vida individual e coletiva.
Como afirma Leonardo Boff,
 
[...] A cabeça pensa a partir de onde os pés pisam. Para compreender, é essencial conhecer o lugar social de quem olha. Vale dizer: como alguém vive, com quem vive, com quem convive, que experiências tem, em que trabalha, que desejos alimenta, como assume os dramas da vida e da morte e que esperanças o animam. [...] cada um lê e relê com os olhos que tem. Porque compreende e interpreta a partir do mundo que habita.”(1997, p. 9-10)

A proposição de alternativas metodológicas para o desenvolvimento de disciplinas da Educação Especial nas Licenciaturas tem a intenção de colocar as narrativas de memórias e o desvelar das representações como possibilidade de identificar um lugar, ou seja: Qual o lugar e o habitat que experienciado pelos acadêmicos/as influenciaram essas inscrições e produções representativas sobre deficiência?  As disciplinas de Educação Especial, ao buscar discutir essa problemática, podem contribuir para que esses futuros professores reconheçam outros lugares, que lhes ofereça a possibilidade de, não encontrando certezas, perceberem o seu próprio inacabamento de suas representações e, por conseguinte, de suas formas de relacionar-se com pessoas deficientes em contextos educativos inclusivos em que irão atuar.

3 Tendo como referencia o que Habermas  (1990) chama de mundo vivido-  espaço social no qual os sujeitos procuram estabelecer relações comunicativas, criando regras e normas de relação que acontecem com a busca da compreensão recíproca acerca do mundo social, objetivo e subjetivo - tem-se, para o autor, a  linguagem como categoria originalmente humana que possibilita ao ser humano alcançar um patamar evolutivo. Ou seja, através da linguagem o ser humano tem a possibilidade de criar uma nova ação em relação ao mundo que é a ação comunicativa, aquela que ativa e constitui o sujeito nas relações- interações intersubjetivas, dando a ele as condições reais para organizar-se em sociedade, estruturando a célula familiar, designando papéis sociais e construindo normas sociais. Neste sentido, transformamos a perspectiva da ação comunicativa de Habermas para uma perspectiva intrapessoal buscando compreender e refletir sobre como a linguagem organizadora dos sistemas representacionais são tecidas e marcadas pelas regras e normas que constituem as representações sociais que, individualizadas, legitimam a maneira individual e singular de um sujeito compreender o mundo social, objetivo e subjetivo em que está inserido. Assim, a ação de auto-comunicação sugerida (e ainda em processo de desenvolvimento teórico pelas autoras)  pode inferir que o campo da subjetividade, constituída de imaginários e representações sociais singularizadas é construída. Assim, as representações internalizadas por um sujeito, podem ser refletidas desde que este seja mediado por um outro que tem por ele intencionalidade educativa. A proposição da reflexão pela via da  ação de auto-comunicação, que toma as narrativas de memórias, como base tem essa função, qual seja, possibilitar a comunicação para si e para o outro as suas  representações.

REFERENCIAS BIBLIOGRáFICAS

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POSSA. Leandra B. Visão de conhecimento que orienta as práticas pedagógicas na UNERJ: um estudo de caso na profissionalização docente. Havana/Cuba: 2001. Dissertação de Mestrado, Universidade de Havana.