http://www.psiquiatriainfantil.com.br/congressos/uel2007/059.htm |
|
Londrina, 29 a 31 de outubro de 2007 – ISBN 978-85-99643-11-2
INFORMAÇÃO E CONSCIENTIZAÇÃO: ASPECTOS INDISPENSÀVEIS PARA
OTIMIZAR A INCLUSÃO ESCOLAR
Francisco Ricardo Lins Vieira de Melo
Lúcia de Araújo Ramos Martins
Universidade Federal do Rio Grande do Norte
RESUMO
A educação constitui-se, hoje, numa questão universal dos direitos humanos e, em conseqüência
disso, as pessoas com deficiência devem estar incluídas nas escolas regulares, as quais devem
prover as condições necessárias para garantir seu acesso e um ensino de qualidade. No entanto,
dentre os diferentes aspectos a serem levados em consideração para implementação dessa política
educacional, os de ordem relacional são de fundamental importância, haja vista a aceitação do aluno
com deficiência se constituir num elemento chave para efetivação da sua inclusão escolar. Assim
sendo, visando contribuir com as discussões em torno da inclusão do educando com paralisia
cerebral no sistema de ensino regular, o presente estudo, de cunho qualitativo, realizado em duas
escolas de Natal/RN, no período de dezembro a maio de 2002, teve como objetivo analisar como
estas instituições vêm se organizando, em termos de sensibilização dos seus integrantes para receber
e atuar junto a esses educandos. Os resultados obtidos evidenciaram a ausência de ações
direcionadas a favorecer a desmistificação de preconceitos em relação ao aluno com paralisia
cerebral e a disseminação de informações básicas que permitam a todos perceberem sua
importância nesse processo e como cada um pode ajudar para que a escola seja, de fato, um
ambiente inclusivo.
Palavras chaves: paralisia cerebral, escola inclusiva, comunidade escolar.
INTRODUÇÃO
Atualmente, é cada vez maior o número de alunos com deficiência no sistema de ensino
regular, haja vista os princípios da política educacional contemporânea voltados para educação
inclusiva. No entanto, a implementação dessa política no contexto das escolas brasileiras aponta
para a necessidade de uma reforma estrutural, política e cultural, no que tange - entre outros
aspectos - à capacitação de recursos humanos, adequação de estrutura física, dotação de
equipamentos e materiais pedagógicos, além de mudanças de atitudes frente aos alunos com
deficiência.
Durante anos, a pessoa com deficiência foi vítima de sua diferença, quer seja nos aspectos
físicos, sensoriais ou intelectuais, por não estar condizente com o conceito e com os padrões de
normalidade estabelecidos pela organização social vigente, em cada época. Com isso, foi sendo
marginalizada e afastada da escola regular, pois, no imaginário coletivo, a concepção de deficiência
a levava a ser concebida como inútil e incapaz. De modo que, o aluno com deficiência era visto sob
o prisma do desvio, ou seja, a deficiência era associada a uma doença “numa perspectiva de
causalidade interna [...] gerando problemas de estigma” (SANTOS, 1992, p.10).
Apesar da evolução no atendimento a esses indivíduos na sociedade, inclusive na escola,
onde hoje, a educação no sistema de ensino regular constitui-se num direito legalmente garantido,
muitos preconceitos ainda se fazem presentes na comunidade escolar, sendo ali reproduzidos da
mesma maneira que o são na sociedade, ou seja, através da linguagem, de gestos, do olhar, de
atitudes, da intolerância, da própria indiferença (ITANI, 1998).
. Não se pode querer, de repente, que os valores culturais sedimentados por toda história da
humanidade em torno da deficiência e, conseqüentemente, da pessoa com deficiência, sejam
ignorados, como se não trouxéssemos em nossos comportamentos atitudes influenciadas e
determinadas pela sociedade em relação a esses indivíduos. Mesmo que quiséssemos, não
conseguiríamos negar essa influência em nosso comportamento frente à deficiência, porque esta faz
parte da nossa história de vida, de modo que concordamos com Teles (1993), quando coloca que
os valores culturais transmitidos não somente nos envolvem, mas também nos penetram, modelando
a nossa identidade, a nossa personalidade, a nossa maneira de agir, pensar e sentir.
Logo, pensar em reformar a escola para torná-la inclusiva é pensá-la para além das questões
puramente políticas e pedagógicas. É pensá-la, também, como contexto cultural que envolve
relações entre indivíduos, pois, embora seja possível cumprir uma lei que obrigue escolas a
receberem crianças com deficiência em suas classes, não se pode fazer uma lei obrigando que as
pessoas aceitem e sejam amigas das pessoas com deficiência (GLAT, 1995).
Dessa forma, o presente estudo buscou verificar como a escola vem se organizando no
sentido de sensibilizar a comunidade escolar com vistas a desmistificar idéias errôneas e
preconceitos acerca da deficiência, particularmente do aluno com paralisia cerebral.
O termo Paralisia Cerebral é definido por Muñoz; Blasco e Suarez (1997) como sendo um
grupo de afecções caracterizadas pela disfunção motora, cuja principal causa é uma lesão encefálica
não progressiva, acontecida antes, durante ou pouco depois do parto. É uma perturbação complexa
que pode compreender (ou não) vários sintomas, a saber: alteração da função neuromuscular com
déficits sensoriais (audição, visão, fala etc.), dificuldades de aprendizagem, déficit intelectual e
problemas emocionais.
MÉTODO
A pesquisa teve um caráter qualitativo, sendo efetivada mediante um Estudo de Caso
(CHIZZOTTI, 1998; GODOY, 1995; TRIVIÑOS, 1995; GIL, 1991) do qual participaram 14
sujeitos (duas coordenadoras pedagógicas, quatro professores, quatro alunos sem deficiência, dois
alunos com paralisia cerebral e dois funcionários de apoio) de duas escolas onde estudavam alunos
com paralisia cerebral no ensino fundamental, da cidade de Natal/RN, no período de dezembro de
2001 a maio de 2002.
Caracterização das escolas
A escola A, de cunho governamental (estadual), possui 17 anos de funcionamento e atende
a 1600 alunos, nas modalidades de ensino fundamental, médio e educação de jovens e adultos.
Possui 46 professores e 18 funcionários, que atuam nos três turnos.
A escola B, privada, possui 10 anos de funcionamento e atende a 246 alunos, nas
modalidades de educação infantil, fundamental e médio. Possui 23 professores e 9 funcionários, que
atuam nos turnos matutino e vespertino.
Caracterização dos alunos com paralisia cerebral
Aluno com paralisia cerebral da escola A – Renata (nome fictício), 26 anos, apresenta
diagnóstico de paralisia cerebral com seqüela motora de diplegia espástica associada à atetose,
decorrente de um choque elétrico aos três anos de idade. Estuda na 7ª série do ensino fundamental,
apresenta dificuldade de escrita fazendo uso de material escolar convencional. Possui discreta
disartria e anda com apoio.
Aluno com paralisia cerebral da escola B – João (nome fictício), 11 anos, possui diagnóstico
de paralisia cerebral apresentando seqüela motora de quadriplegia espástica decorrente de anóxia
cerebral por complicação no parto. Estuda na 5ª série do ensino fundamental. Possui ausência de
escrita e leitura e faz uso de lápis adaptado para pintar. Além disso, não fala e anda em cadeira de
rodas.
Os sujeitos foram entrevistados, seguindo um roteiro de entrevista semi-estruturado
previamente elaborado. As entrevistas ocorreram de forma individual, numa única sessão de
entrevista, sendo gravadas e transcritas em sua íntegra.
A análise dos dados tomou como referência o modelo proposto por Alves e Silva (1992).
RESULTADOS E DISCUSSÃO
Considerando que a conscientização para lidar com o outro diferente / com deficiência
constitui-se num dos primeiros passos a ser priorizado pela escola em seu planejamento
pedagógico, com vistas a favorecer a aceitação desses educandos, constatamos - em ambas escolas
investigadas -. a ausência de um trabalho de conscientização voltado para a comunidade escolar
como um todo, mas ações isoladas, ocorridas em situações específicas, como podem observar nas
falas abaixo:
- Não temos esse trabalho de conscientização. Que eu me lembre, houve
apenas uma vez na sala que Renata ia estudar. A partir do momento que
fomos avisados pela Secretaria Estadual de Educação que teríamos uma
aluna deficiente e que passaria a freqüentar a escola, veio uma funcionária
de lá, e ela foi na sala explicar sobre os problemas de Renata, a deficiência
dela. Eu reforcei que não era para tratar ela diferente mas, também, não era
para tratar ela igual a todo mundo e que, na medida do possível, quem tivesse
alguma dificuldade de se relacionar procurasse a gente na escola para
orientação (Coordenadora pedagógica / Escola A).
- Temos, sim. Me lembro que fizemos um seminário em que estavam todos
os pais e falamos de inclusão, da importância da gente estar trabalhando com
essas crianças como seres humanos, como qualquer um de nós
(Coordenadora pedagógica / Escola B).
Verificamos que, no primeiro relato, houve apenas uma preocupação inicial com a admissão
da aluna na escola, no sentido de esclarecer os alunos da turma com quem iriam estudar.
Percebemos que as explicações fornecidas pela funcionária da Secretaria Estadual de Educação
foram reduzidas ao plano biológico, cuja ênfase é dada à deficiência em si e aos problemas que a
aluna apresenta, em detrimento de informações que poderiam propiciar uma discussão mais ampla e
realista a respeito da deficiência (como por exemplo, analisar a deficiência no contexto social, como
a sociedade se comporta diante dessas pessoas, como reage em relação ao preconceito, o direito à
educação de todas as pessoas, sejam elas deficientes ou não, entre outros aspectos).
Percebemos também que, querendo ajudar aos alunos, a coordenadora revela em sua fala
preconceitos em relação à pessoa com deficiência, ao colocar – de forma vaga, genérica - que não
era para tratar Renata diferentemente, mas também que não era para tratá-la igual a todo mundo.
Essa atitude, verbalizada na fala da coordenadora da escola A, é comum na maioria das pessoas
normais, por não saberem o que fazer quando estão diante de uma pessoa com deficiência,
passando a vê-la e a tratá-la de forma diferente das outras pessoas, mesmo que inconscientemente,
como se isso fosse a melhor coisa a fazer. Na verdade, o que estão fazendo está contribuindo para
que essa pessoa com deficiência se sinta inferiorizada por perceber que não é tratada como os
outros, levando-a a desenvolver uma imagem negativa de si mesmo. Tal aspecto poderá influenciar
em sua vida pessoal e, por conseguinte, em sua vida escolar.
Na segunda fala, apesar da coordenadora pedagógica destacar a importância da inclusão
em um seminário realizado com os pais na escola - ação esta fundamental - outros atores da
comunidade escolar não tiveram acesso a esse tipo de discussão, particularmente aqueles que
parecem ser menos valorizados em termos de função na escola, os funcionários de apoio (porteiros,
vigias, merendeiras e auxiliar de serviços gerais), como podemos evidenciar numa das falas deles:
- Para ajudar é importante a gente aprender coisas, porque o tempo vai
passando e as coisas vão mudando e é bom a gente aprender para saber o
porque da gente ajudar, conhecer para ajudar essas crianças [...] A escola é
boa, mas ela não conversa isso com a gente (Porteiro / Escola B).
O que acontece, ao nosso ver, é que a escola de uma forma geral, diante da inclusão do
aluno com deficiência, vem canalizando suas preocupações para a atuação pedagógica do
professor, esquecendo-se das outras pessoas que fazem parte da comunidade escolar e de outras
questões tão importantes como, por exemplo, informar e orientar a todos os membros da escola
sobre como se comportar diante do aluno com necessidade educacional especial (neste caso, com o
aluno com paralisia cerebral), questão fundamental para potencializar as relações interpessoais entre
o aluno e os demais membros da escola. A esse respeito, a comunidade escolar deve estar atenta
para os seguintes aspectos:
· a
pessoa com paralisia cerebral anda com dificuldade ou não anda. Pode ter problemas de
fala. Seus movimentos podem ser estranhos ou descontrolados. Pode, involuntariamente,
apresentar gestos faciais incomuns, sobre a forma de caretas. Geralmente, é uma pessoa
inteligente e sempre muito sensível;
· para
ajudá-la, não a trate bruscamente. Adapte-se ao seu ritmo. Se não compreender o que
ela diz, peça-lhe que repita. Ela o compreenderá. Não se deixe impressionar pelo seu
aspecto, aja de forma natural, sorria, é uma pessoa igual a você;
· se
fizer uso de cadeira de rodas, não segure nem toque nela. Ela é como se fosse parte do
corpo da pessoa. Apoiar-se ou encostar-se na cadeira é o mesmo que apoiar-se ou
encostar-se nela (COMO..., 1992).
Vale salientar que essas informações não devem ser compreendidas como uma receita a ser
obedecida para se ter êxito junto ao aluno com paralisia cerebral, mas como uma orientação básica,
pois acreditamos que a melhor forma de nos comportarmos perante uma pessoa com deficiência é
sendo natural com ela.
Além disso, precisamos estar atentos para perceber que tanto os integrantes da escola, como o
aluno com deficiência, estão vivenciando a mesma realidade, ou seja, para ambas as partes essa
situação nova gera medo, angústia, ansiedade, entre outras reações. Se por um lado a escola regular
não tem experiência com essa situação, o aluno com deficiência, por outro lado, encontra-se
temeroso em saber como vai ser acolhido nessa escola, haja vista ser, para muitos, a primeira
oportunidade de estar no mesmo espaço social com pessoas diferentes das que costumava conviver
em instituições especializadas.
Portanto, é fundamental que a comunidade escolar, diante da inclusão do aluno com
deficiência, tenha um espaço para discutir sobre a deficiência, procurando tirar dúvidas e
questionamentos de todos os seus membros, objetivando assim contribuir para desmistificar idéias
errôneas e preconceituosas a respeito da pessoa que a apresenta.
De uma maneira geral, podemos dizer que esses preconceitos decorrem da falta de
conhecimentos sobre a deficiência, pois, como afirma Amaral (1994, p.18),
o desconhecimento é a matéria prima para a perpetuação das atitudes
preconceituosas e das leituras estereotipadas da deficiência – seja esse
desconhecimento relativo ao fato em si, às emoções geradas ou às reações
subsequentes.
Tal fato foi evidenciado por parte de todos os professores entrevistados, quando indagados
sobre o conceito e conhecimentos que tinham a respeito da paralisia cerebral.
- Conhecimento nenhum (Professora A1).
- O conhecimento é superficial, mas o que eu entendo [...] é uma anomalia,
pode ser de caráter, não sei se congênito e, também, provocado por acidente,
uma perda de massa encefálica (Professor A2).
- Meus conhecimentos são poucos. São pessoas que têm dificuldades de
locomoção, de aprendizagem em si [...], tem limitações na forma de pensar,
às vezes até na forma de falar, dependendo do grau de paralisia cerebral
(Professora B1).
- Sinceramente, quase nenhum. Sei que ele tem um problema motor, não
consegue falar direito, mas dizer o que é de fato a paralisia cerebral, assim,
de forma especifica, eu não sei (Professora B2).
Notamos que as informações dadas pelos professores, de uma maneira geral, recaem nas
características que se apresentam visíveis, às suas limitações cognitivas, motoras, de fala, entre
outras. Os docentes, portanto, não conseguem conceituar claramente a paralisia cerebral. E um dos
professores (Professor A2) ainda relata informações imprecisas e errôneas, ao colocar que a
paralisia cerebral é uma anomalia de caráter, ou que pode ser causada por perda de massa
encefálica.
O mais interessante é que todas as informações situadas pela maioria dos professores a
respeito da paralisia cerebral são puramente de natureza clínica. Em nenhum momento, fazem
associação com o contexto educacional, com exceção da professora B1, que aponta como uma das
dificuldades desse aluno a aprendizagem. Isso se deve principalmente à herança do modelo médico,
que ainda hoje influencia o olhar da comunidade escolar, especificamente do professor sobre o
aluno com deficiência.
Portanto, a ausência de conhecimentos científicos a respeito da paralisia cerebral pode
favorecer um entendimento deturpado a respeito das potencialidades físicas, cognitivas e sociais que
esses alunos possuem em diferentes graus, dando margem a uma idéia errônea, uma vez que quem
ouve o termo e não tem nenhuma informação sobre esta deficiência física pensa que essas pessoas
têm o cérebro parado e, conseqüentemente, não têm a possibilidade de pensar, de sentir ou mesmo
de agir (SATOW, 2000). Para confirmar tal afirmação, apresentamos um dos trechos da fala de
uma coordenadora pedagógica, em que fica clara essa idéia errônea, antes do seu convívio e
acompanhamento pedagógico junto ao aluno com paralisia cerebral.
- É um dos alunos que a gente tem mais dificuldade de trabalhar [...], mas ele
não é aquela pessoa que você acha que é inútil porque tem paralisia cerebral
(Coordenadora pedagógica B).
Sem o devido conhecimento sobre esse tipo de deficiência física e de sua necessidade
educacional especial, muitas vezes o aluno com paralisia cerebral é tratado como um ser incapaz,
como inútil e, até mesmo, como uma pessoa deficiente mental, sem, contudo, sê-la.
Além disso, o desconhecimento e os estigmas criados em torno da deficiência possibilitam
que olhemos a pessoa com deficiência com medo, com insegurança, com sentimentos ambivalentes
(ora com pena, ora com repulsa), como algo estranho, ameaçador ou mesmo sobrenatural.
De fato, evidenciamos algumas dessas reações nas falas dos alunos normais ao se
reportarem como se sentiram pela primeira vez estudando com colegas com deficiências:
- No início, achava ela chata, o jeito dela falar, pensava que pegava aquilo
dela. Hoje não; vejo que ela é uma das minhas melhores amigas, gosto muito
dela (Aluna / 17 anos / Escola A)
- Na primeira vez que eu vi, tive medo. Sentava distante, depois eu comecei
a falar com ela, ela é igual a mim, só aquele jeito dela (Aluna / 17 anos /
Escola A).
- Na outra escola que eu estudava não tinha deficientes, eu só estudava com
crianças normais. Aí, quando eu cheguei aqui, eu achei estranho, porque eu
nunca tinha visto uma criança deficiente. Depois, eu me acostumei, ele só
tem alguns problemas [...] Eu ficava perguntando aos meus amigos porque
ele era daquele jeito (Aluna / 9 anos / Escola B).
- É a primeira vez que estudo com pessoas deficientes. No início, tinha medo,
porque eu não estava acostumado mas, com o passar do tempo, eu me
acostumei. Ele tem problemas e precisa de ajuda (Aluna / 9 anos / Escola
B).
Nos trechos dessas falas percebemos que lidar e aceitar o outro diferente / com deficiência
inicialmente não é tão fácil assim, principalmente quando o outro nos causa temor, desconforto. Para
Glat (1995), isso acontece porque, quando nos deparamos com indivíduos que - por suas
características ou comportamentos - não se enquadram em nossa representação de normalidade,
ocorre uma quebra ou ruptura na rotina da interação social, de modo que ficamos perdidos, sem
saber como agir. Acompanhando esse estado de inércia em que ficamos, várias reações surgem
como curiosidade, espanto, surpresa, repulsa e até mesmo medo, pois, estar diante do que foge à
norma e, portanto, de uma pessoa diferente, tida muitas vezes como anormal (no caso, com
deficiência), ameaça a nossa estabilidade emocional.
Marques (1997) considera que talvez um dos fatores responsáveis por essa dificuldade
possa estar localizado em seu processo de identificação e individualização. Neste, o ser humano
busca, em sua relação com o outro, identificar o que lhe é comum e o que lhe é diferente, ou seja, é
o outro quem lhe permite reconhecer-se como individuo, possibilitando o seu ajustamento à
sociedade. Portanto, se o auto-reconhecimento é construído a partir dessa relação, necessário se
faz que haja um certo equilíbrio entre semelhanças e diferenças, ou seja, o outro não pode se afastar
muito dos padrões tidos como normais naquela realidade. Se houver uma identificação total de um
indivíduo com o outro, isso acarreta a perda de sua própria identidade e, portanto, a perda de si
como ser humano. Outrossim, no caso de se reconhecer no outro uma diferença exagerada, isso
também acarreta a desestruturação do indivíduo e o sentimento de perda de sua própria
humanidade. Decorre disso, em grande parte, a dificuldade do ser humano de se confrontar com a
diferença alheia. O conflito que surge daquilo que ele é, com o que ele pode vir a ser, faz com que
apresente comportamentos negativos frente às diferenças. Portanto,
o outro, o diferente, o deficiente, representa muitas e muitas coisas.
Representa a consciência da própria imperfeição daquele que vê, espelha
suas limitações, suas castrações. Representa também o sobrevivente, aquele
que passou pela catástrofe em potencial, virtualmente suspensa sobre a vida
do outro (AMARAL, 1989, p.10).
No entanto, também percebemos que - apesar desse choque inicial frente ao outro com
deficiência - é através da convivência com as diferenças que as relações interpessoais vão se
tornando naturais, na medida que os alunos pesquisados passam a conhecer o outro em sua
singularidade.
O estar juntos, alunos com deficiência e alunos sem deficiência, facilita a quebra de barreiras
atitudinais, proporcionando oportunidade de ajuda, de trocas significativas, de constatações
positivas diante do colega diferente e a construção de vínculos.
Visando otimizar esse processo, não apenas entre os alunos, mas, entre todos atores que
compõe a comunidade escolar, é fundamental que diante da inclusão do aluno com deficiência exista
um espaço no âmbito da escola para discutir sobre a deficiência, procurando tirar dúvidas e
questionamentos de todos os seus membros, objetivando assim contribuir para desmistificar idéias
errôneas e preconceituosas a respeito da pessoa que a apresenta.
Uma das maneiras para favorecer isto, é prever estratégias em seu planejamento pedagógico
que possam ser utilizadas com os diferentes segmentos da comunidade escolar, tais como debates,
seminários, peças de teatros, uso de fantoches, história infantis1, entre outras, adequando o
conteúdo a ser trabalhado sobre a deficiência às diferentes necessidades e faixas etárias. Tudo deve
ser planejado e executado de modo que favoreça a construção de valores e, em particular, o
respeito ao outro.
1 Citamos, particularmente, no caso de educandos com paralisia cerebral, os livros Um menino especial
(MILARÉ; CALIPO, 1996) e Pedro pé-de-valsa (MILARÉ; CALIPO, 1998) e filmes (como por exemplo, Meu pé
esquerdo, que aborda o caso de uma pessoa com paralisia cerebral), direcionados ao público adulto/adolescente.
Como exemplo dessas estratégias, Ferreira (1998) estruturou um programa que prepara
crianças sem deficiência, em termos de informações, sentimentos e condutas, visando a convivência
com companheiros vistos como diferentes, principalmente com aqueles que são deficientes mentais,
tanto no seu cotidiano, quanto na escola inclusiva. O programa foi desenvolvido junto a pré-escolares, inclusive os freqüentadores de creches e com alunos de primeira série de escolas
regulares, da rede pública e particular de ensino. A autora afirma que o programa demonstrou ser
eficaz quando se visa difundir a informação aos alunos, com vistas ao esclarecimento, à discussão e
à reflexão sobre a deficiência mental e seus portadores, de forma natural, sem preconceitos. Pode
ser desenvolvido em momentos educativos e, até mesmo, lúdicos, respeitando-se o nível e a
capacidade da criança de aproveitar essas oportunidades. Segundo ela, é uma estratégia apropriada
para a conscientização sobre o tema, prevenindo o desenvolvimento de preconceitos em relação
aos indivíduos com deficiência e propiciando uma participação mais adaptada e integrada na
convivência com esse segmento da população.
Esse exemplo de trabalho nos mostra a possibilidade de adequá-lo a outras situações, bem
como de estendê-lo aos diversos integrantes da comunidade escolar. No entanto, acreditamos que
essas ações devem ser priorizadas o mais cedo possível, uma vez que, quando adultos, é mais difícil
- porém, não impossível - serem modificados os valores culturais assimilados sobre a deficiência.
A esse respeito, constatamos, durante as observações nas escolas investigadas, que, de
fato, quanto menor a idade dos alunos, melhor a aceitação e menor a formação de preconceitos
diante dos colegas que apresentam deficiência.
Na escola B, onde os alunos tinham uma menor faixa etária, as relações interpessoais fluíam
naturalmente entre todos os alunos, e pudemos presenciar cenas bastante significativas, que nos
levam a crer que a inclusão escolar já começou a apontar sinais positivos em relação ao respeito e à
solidariedade diante do colega com deficiência, como por exemplo, o carinho dos alunos por João,
quando, no meio da aula, um deles levantava e enxugava sua baba (sialorréia) e perguntava se
estava tudo bem com ele; a preocupação, durante as atividades em grupo, sobre se João estava
interagindo, quando um dizia: “e aí, João, está entendendo? Levanta a cabeça, João, deixa eu te
ajudar” e, de repente, João esboçava um belo riso para o grupo e era correspondido com beijos e
abraços; a disputa para levá-lo para o intervalo, às vezes, tendo até discussão para decidir quem iria
guiar a sua cadeira.
Cenas significativas como essas evidenciam que nessas escolas a inclusão está no rumo
certo, bastando se investir nela e acreditar que é contemplando a diversidade que o outro - diferente
/ com deficiência - pode ser respeitado, pois ser deficiente, como diz Fonseca (1995), representa
apenas uma probabilidade de ser humano.
CONSIDERAÇÕES FINAIS
Os resultados obtidos na investigação apontam para a necessidade das escolas perceberem
que a questão principal para o sucesso da inclusão escolar do aluno com paralisia cerebral não
depende, exclusivamente, da presença de professores capacitados e de recursos materiais e
pedagógicos específicos para atuar junto a esses alunos. Observamos que, embora tais aspectos
sejam fundamentais para garantir a sua permanência na escola e um ensino de qualidade, urge,
principalmente, a superação da visão negativa da deficiência. O aluno com deficiência necessita ser
aceito e respeitado na sua singularidade de ser, e, para tanto, a escola precisa estar atenta para
favorecer esse processo de inclusão, envolvendo toda a comunidade escolar, se preocupando
também com as questões de ordem relacional, pois,
sem que haja, em toda comunidade escolar mudanças de atitude quanto à
diferença, o que implica principalmente numa atitude de não rejeição dos
alunos com deficiência, corre-se o risco de apenas inseri-los no convívio com
outras crianças, sem que efetivem, entre todos, trocas interativas com a
plena aceitação dos portadores de deficiência, o que é fundamental para a
valorização da sua auto-imagem e da sua auto-estima (CARVALHO, 1999,
p.37).
Assim sendo, deve-se pensar num trabalho de conscientização que privilegie a todas as
pessoas que atuam, de forma direta ou indireta, com os alunos com paralisia cerebral. É preciso que
do diretor ao porteiro da escola exista um entendimento básico, que permita a todos perceberem
sua importância no processo de inclusão escolar desses alunos e também como cada um pode
contribuir para que a escola seja, de fato, um ambiente inclusivo.
REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS
ALVES, Zélia Maria Mendes Biasoli; SILVA, Maria Helena G. F. Dias da. Análise qualitativa de
dados de entrevista: uma proposta. Paidéia, Ribeirão Preto, v.2, p.61-69, jul. 1992.
AMARAL, Ligia Assumpção. . Do olimpo ao mundo dos mortais. São Paulo: Edmetec, 1989.
______. Pensar a diferença / deficiência. Brasília: Coordenadoria Nacional da Pessoa Portadora
de Deficiência, 1994.
CARVALHO, Erenice Natália S. de.Adaptações curriculares: uma necessidade. In: SALTO para o
futuro: educação especial: tendências atuais. Brasília: Ministério da Educação/SEED, c1999. p.51-58. (Série de Estudos – Educação à distância).
CHIZZOTTI, A. Pesquisa em ciências humanas e sociais.
São Paulo: Cortez, 1995.
COMO você deve comportar-se diante de uma pessoa que ... Brasília: CORDE, 1992. Não
paginado. il. Extraído do folheto “Handicapés” elaborado pelo Movimento de Mulheres Jovens.
FERREIRA, S. L. Aprendendo sobre a deficiência mental: um programa para crianças. São
Paulo: Memnom, 1998.
FONSECA, V. Educação especial. 2.ed. Porto Alegre: Arte Médicas, 1995.
GIL, Antônio Carlos. Métodos e técnicas de pesquisa social.
5.ed. São Paulo: Atlas, 1999.
GLAT, Rosana. . A integração social dos portadores de deficiência: uma reflexão. Rio de
Janeiro: Sete Letras, 1995.
GODOY, Arilda Schmidt. Pesquisa qualitativa: tipos fundamentais. RAE, São Paulo, v.35, n.3, p.
20-29, maio / jun. 1995.
ITANI, Alice. Vivendo o preconceito em sala de aula. In: AQUINO, J. G. (Org.). Diferenças e
preconceito. São Paulo: Summus, 1998.
MARQUES, C. A. Integração: uma via de mão dupla na cultura e na sociedade. In: MANTOAN,
M. T. E. A integração de pessoas com deficiência: contribuições para uma reflexão sobre o
tema. São Paulo: Memnom, 1997, p.18-23.
MEU pé esquerdo. Direção Noel Pearson. Produção Jim Sheridan. Intérpretes: Daniel Day Lewis;
Ray McNall; Brenda Freecker. [S.l.]: MGM Home Entertrainment, c2002. 1 DVD (103 min.),
color. Produzido pela Videolar.
MILARÉ, Denise; CALIPO, Sylvia Maria. Um menino especial. São Paulo: Scipione, 1996. 16p.
il.
______. Pedro pé-de-valsa. São Paulo: Scipione, 1998. 16p. il.
MUÑOZ, Juan Luis Gil; BLASCO, Glória M. Gonzáles; SUAREZ, Maria J. Ruiz. Deficientes
motores II: paralisia cerebral. In: BAUTISTA, Rafael (Org.). Necessidades educativas
especiais. 2.ed. Lisboa: Dinalivros, 1997. p.293-315.
SANTOS, Mônica Pereira dos. Educação especial: integrada ou paralela? Revista
Vivência,.n.11, p.10-15, 1992.
SATOW, S. H. Paralisado cerebral: construção da identidade na exclusão. 2.ed. Taubaté: Cabral
Editora Universitária, 2000..
TELES, M. L. S. Iniciação à sociologia. Petrópolis:
Vozes, 1993.
TRIVIÑOS, Augusto N. S. Introdução à pesquisa em ciências sociais. São Paulo: Atlas, 1995.