http://www.psiquiatriainfantil.com.br/congressos/uel2007/103.htm


Londrina, 29 a 31 de outubro de 2007 – ISBN 978-85-99643-11-2

O BRINCAR COMO ESPAÇO REVELADOR DA EXPERIÊNCIA ATIVA DA CRIANÇA E A OBSERVAÇÃO PSICOPEDAGÓGICA

BIANCHINI, Luciane G. Battistela - UEL
OLIVEIRA, Francismara Neves de – UEL



RESUMO


A presente pesquisa objetivou resgatar na literatura especializada o papel do brincar como favorecedor do desenvolvimento e da aprendizagem criança, bem como objetivou considerar o papel do brincar como espaço de observação da criança, no enfoque da atuação psicopedagógica. Dentre as reflexões da presente pesquisa, destacamos como o brincar pode ser considerado um canal de comunicação entre a criança e o adulto, sua relevância enquanto espaço integrador dos diferentes aspectos do desenvolvimento da criança e como pode servir enquanto recurso psicopedagógico de escuta e intervenção junto à criança com dificuldades de aprendizagem ou problemas globais no desenvolvimento. A metodologia utilizada foi qualitativo-descritiva o que nos permitiu destacar e descrever um momento de observação de uma criança, em situação de interação lúdica, num Centro de Atendimento a criança com Problemas Globais no Desenvolvimento, no centro da cidade de Londrina/Pr, sendo o sujeito do estudo, uma criança de nove anos de idade. Os dados empíricos permearam a discussão teórica e permitiram um olhar sobre a atividade construtiva da criança, revelada no brincar, através de uma atitude de escuta do observador. Os resultados indicaram que a atividade construtiva da criança manifesta-se de forma bastante significativa, durante o momento do jogo evidenciando-o enquanto espaço de expressão da criatividade e matriz do aprender. A partir disto então concluímos a necessidade de que as pessoas envolvidas com as crianças reconheçam a importância desta expressão infantil, seja na escola, na família ou na clínica. Nossos dados indicaram o brincar como espaço válido à observação e intervenção psicopedagógicas.


Introdução

A aprendizagem e o desenvolvimento humano são questões sempre intrigantes que abrem espaço para concordâncias como também controvérsias. Assim, foi a partir do não saber no que concerne a estas questões que os pesquisadores começaram a levantar hipóteses a fim de conhecer mais sobre a subjetividade humana e tudo o que implica aprender e desenvolver-se. Nas construções dos campos teóricos que versam sobre o desenvolvimento e a aprendizagem então se apresentavam inicialmente polarizados, os diferentes enfoques levantados sobre a questão: por um lado a defesa de que o desenvolvimento era o carro chefe para a aprendizagem e de outro a defesa que apontava a aprendizagem como promotora do desenvolvimento.

Os estudos mais atuais nos mostram através de uma perspectiva do desenvolvimento denominada Ecológica (BRONFENBRENNER apud DESSEN, COSTA, 2005) que estas duas questões estão articuladas e são convergentes, pois tanto a aprendizagem como o desenvolvimento constituem um processo mediado social e culturalmente, bem como também dirigidos internamente e em parte impermeáveis à influência externa (BASSEDAS; HUGET; SOLÉ, 1999).

Nesse sentido, não podemos deixar de considerar a influência dos processos de aprendizagem no desenvolvimento humano e nem tampouco a estrutura interna do sujeito (no qual se inclui o biológico), enquanto parte integrante que possibilita, limita, condiciona e amplia, no seu funcionamento, a existência, do campo de intercâmbios do indivíduo com o meio. Mas e o indivíduo em si mesmo? Qual é o papel delegado a ele no próprio desenvolvimento e aprendizagem? É preciso, ao analisarmos o desenvolvimento humano, reconhecermos que há uma importante dimensão – a do individual- nesse processo de conhecer, que envolve tanto o desenvolver quanto o aprender. É inegável, portanto o lugar do trabalho mental que vai sendo realizado enquanto o indivíduo constrói os sentidos nas interações que estabelece com o meio.

O estatuto da ação do indivíduo é defendido por Piaget (1936), como a forma possível de construção do conhecimento, embora o autor valorize uma classe muito particular de ações, ou seja, aquelas que produzem mudanças internas qualitativas nos esquemas mentais e que consequentemente produzirão desenvolvimento e aprendizagem.

Enquanto age, o indivíduo está articulando processos internos/externos e o resultado desta operação será expresso na forma como cada ser humano apresenta-se então diante do mundo, ou seja, com ritmo individual, interpretações próprias, modalidades de aprendizagem particulares. Esta análise permeou as discussões maiores nessa pesquisa sobre o brincar, pois objetivamos nela discutir o brincar como espaço revelador de diferentes aspectos que compõem o processo de aprender e de desenvolver.

Nesse sentido, entendemos o brincar como atividade inerente ao sujeito e que naturalmente implica em articulação dos aspectos biológico, cognitivo, social, afetivo, enfim, contextual, pertinente à história de construção do próprio sujeito. Ao brincar a criança põem em uso todos estes aspectos sem que isso lhe seja externamente solicitado a não ser pela própria interação que o brincar espontaneamente a ela suscita.

Ojetivamos em nossa pesquisa enfatizar a importância que há para o sujeito do brincar neste contexto da ação ou da atividade construtiva, como também discutir a importância do brincar da criança como um espaço de observação desta atividade interna e construtiva do sujeito que se manifesta nas situações de interações lúdicas.


Método
A presente pesquisa enquadra-se como qualitativa na modalidade de estudo descritivo de um momento de observação da criança em atendimento no qual o brincar foi enfatizado. Para isto, elegemos como lócus de pesquisa um Centro de Atendimento a crianças com Problemas Globais no Desenvolvimento. Selecionamos uma criança de nove anos de idade que, em atendimento, foi avaliada por uma equipe multidisciplinar. Os recortes apresentados na pesquisa foram retirados dos diários de observação da avaliação psicopedagógica feita com a criança e tomou como ponto de reflexão três momentos específicos do processo de observação psicopedagógica: o motivo da consulta, a história vital da criança e a hora do jogo dentro da perspectiva de Sara Pain (1992) para este momento. O período de observação foi de janeiro de 2003 a abril do mesmo ano, contando assim com 5 sessões, sendo duas com a mãe e três com a criança.

Resultado

Um dos problemas que nos propusemos pesquisar é o de como o brincar da criança pode constituir-se um espaço revelador de sua experiência construtiva, seja a nível cognitivo, emocional ou social. A partir do estudo de caso analisado, através de fragmentos das sessões apresentamos um pouco da história do atendimento observado e percebemos o quanto é importante a experiência ativa da criança a fim de que construam conhecimento. A criança em questão trata-se de uma menina uma menina de nove anos, aluna da 3ª série de uma escola pública. Até o momento da observação diagnóstica realizada, embora a mãe não tivesse procurado nenhum tipo de atendimento, a menina apresentava dificuldades para ler, interpretar, matemática, história, além de dificuldade de relacionamento social com os colegas e professores de sua escola. Tanto a mãe quanto a escola nunca tiveram reclamação sobre o comportamento da menina, pois a mãe esclarece que sempre achou que esta era uma característica própria de Júlia.

A professora da criança é quem se sente incomodada com a situação e insiste com a mãe pedindo permissão para procurar ajuda. A mãe concorda e ela faz os primeiros contatos com a clínica levando como queixa, a quietude e as dificuldades escolares apresentadas pela criança durante as aulas. Descreve que durante as aulas Júlia nunca faz perguntas, também não conversa com os amiguinhos e na hora do intervalo permanece na sala sem falar com ninguém. Quando questionada sobre algo da matéria, Júlia não responde e a professora não sabe se ela não pergunta por que não entendeu nada ou se é uma questão de sociabilidade. A professora ainda frisa que Júlia parece estar se fechando dentro de uma redoma a cada dia. A menina tem seu olhar sempre distante e a tristeza parece fazer parte de seu semblante: “Acho que falta vida para esta menina”, é a fala da professora.

Em entrevista a mãe, aponta que dedicou cuidados excessivos (entendidos como superproteção) à filha reduzindo seu espaço de exploração desde o nascimento. Quando bebê passou a maior parte do tempo no carrinho e quando cresceu sempre impediu que ela brincasse na rua com outras crianças, uma vez que a mãe considera o bairro muito perigoso para a filha estar. Na análise sobre os brinquedos e os objetos de leitura que a criança possui encontramos que ela quase não tem brinquedos, tem um jogo de baralho faltando cartas, uma bicicleta, mas só pode andar na sacada de sua casa e os objetos de leitura se restringem aos livros emprestados pela escola que são devolvidos sempre ao final de cada ano e uma bíblia.

A partir deste caso, que aqui recortamos, então compreendemos através do brincar expresso pela criança na hora do jogo (momento relevante do processo diagnóstico), que esta apresentava pobreza no repertório de suas interações seja em situações de exploração com o objeto ou vivencias em grupo, mas que apesar de tudo apresentava-se ativa neste processo. Para Pain (1992, p.50) enquanto brinca, além de falar das marcas que realmente lhe fizeram sentido, a criança através da atividade lúdica nos fornece informação do que está em processo de construção/elaboração dos esquemas que organizam e integram todo o conhecimento a nível representativo.

No momento de observação da hora do jogo a criança apesar da pobreza no repertório de brincadeira, apresentou através dos jogos funcionais repetidos e explorados incessantemente, grande lacuna em sua experiência ativa histórica. Alguns picos simbólicos também apareceram e junto a ele um desejo em aprender latente que se colocava em ação quando havia a possibilidade de atuar ativamente sobre a realidade.


Discussão

A necessidade de pensar e pesquisar sobre crianças que revelam alguma dificuldade em agir, surgiu da nossa observação do cotidiano infantil como também do contato com estudos que versam sobre a importância da experiência ativa para o desenvolvimento integral da criança. O que acontece com as crianças que não agem? Elas estão impedidas ou foram impedidas de agir por algo externo a elas? São crianças com déficits que devem ser considerados? A professora Zélia Ramozzi-Chiarottino1 citada por Dolle (1999) nos esclarece que a criança pode apresentar um déficit sem ser deficitária, tendo assim possibilidade de superá-lo se ao sujeito for possibilitado um espaço de experiência ativa.

A literatura especializada tem revelado que o brincar, justamente porque está presente em todas as realizações da criança, espontaneamente construído por ela (o brincar não é inato, nem geneticamente determinado, mas é um processo de construção social), justamente por essa razão, promove a humanização do indivíduo ao mesmo tempo em que evidencia este processo construtor.

Um ponto relevante é que o espaço do brincar além de espaço de observação também é terapêutico na medida em que, se algo se apresenta fragmentado, com lacunas para uma construção, enquanto brinca a criança se coloca a fazer e assim podemos ir observando suas dificuldades em construir, dar sentido ao mundo real. Para Weiss o uso das situações lúdicas durante o diagnóstico “é mais uma possibilidade de se compreender, basicamente, o funcionamento dos processos cognitivos e afetivo-sociais em suas interferências mútuas, no modelo de aprendizagem do paciente”. E ainda considera que ao se “abrir um espaço de brincar durante o diagnóstico, já se está possibilitando um movimento na direção da saúde, da cura” da criança uma vez que ela tem a possibilidade de se reposicionar quando se coloca a fazer enquanto brinca (WEISS, 1997, p. 58- 59).  

Macedo considera que observamos pouco a criança em brincadeira. Para algo ser revelado é necessário alguém para interpretar este momento, no entanto esta interpretação não é tão simples, é preciso que o observador se esvazie de si mesmo, de seus conceitos e vá ao encontro dos conteúdos construídos pela criança. O autor explica melhor dizendo que:


[...] temos que nos recolher no silêncio de quem olha para ver, de quem ouve para escutar, de quem pode contemplar e admirar o outro, apenas para saber o que ele pensa e faz. Um observar, que produz conhecimento, exige uma atividade nada passiva de interpretar aquilo que é dado contemplar. A observação é condição para arte de refletir (MACEDO, 1994, p. 111).


1 Diretora do Instituto de Psicologia USP

Por isso, dentro da observação clínica, o brincar é muito importante, pois é brincando que a criança fala de si simbolicamente, e a maneira como ela atua enquanto brinca pode revelar o sentido oculto das angústias e dos sintomas que apresenta. Winnicott (1982) muito bem explica que as crianças têm o desejo de comunicar-se com os adultos através das brincadeiras, assim como adulto o faz falando em análise. A criança faz isto por que:

[...] tem uma grande crença na capacidade de compreensão do adulto, de modo que o psicanalista conhece enormes dificuldades para corresponder ao que a criança dele espera. As crianças mais velhas estão comparativamente desiludidas a tal respeito, e para elas não constitui grande choque não serem compreendidas [...] (WINNICOTT, 1982, p. 165).

Neste momento é quando a criança em atividade aponta e ao mesmo tempo revela como estão sendo estruturados três aspectos da função semiótica: o jogo, a imitação e a linguagem.

O exercício de todas as funções semióticas que supõe a atividade lúdica possibilita uma aprendizagem adequada na medida em que é através dela que se constroem códigos simbólicos e signáticos e se processam os paradigmas do conhecimento conceitual, ao possibilitar-se, através da fantasia e o tratamento de cada objeto nas múltiplas circunstâncias possíveis. Através do jogo a criança combina propriedades numa alquimia peculiar na qual pode ser experimentado. O jogo põe em marcha uma série de possibilidades, dentre as quais as mais equilibradas são conservadas, isto é, aquelas onde a regulação estabelece um nível suficiente de coerência. Desta forma só o plausível é integrado (PAIN, 1992, p.50-51).

Se analisarmos cada um destes aspectos, primeiramente o jogo é reconhecido como uma atividade predominantemente assimilativa2 de fundamental relevância, na medida em que através dela a criança vai exercitar seus esquemas simbólicos. Enquanto brinca a criança atribui características ausentes a um objeto presente e mantêm entre eles uma relação motivada (PAIN, 1992, p. 50).

Nesse sentido, a criança realiza um trabalho de simbolização dos objetos indo muitas vezes além daquilo que ele representa enquanto um símbolo da cultura, ou seja, nas situações brincantes ela modifica os objetos a nível representativo colocando em cena sua criatividade ao mesmo tempo em que exercita a generalização dos sentidos (polissemia do objeto). Na prática é quando podemos ver uma caixa de sapato virar banheira, na brincadeira da criança. Enquanto Júlia brincava os objetos primeiramente foram explorados enquanto suas propriedades, aos poucos Júlia inicia seus desdobramentos e os encaixes de lego passam a se transformar num ônibus que passeava com pessoas. Assim, enquanto brincava com as representações estava coordenando aquilo que foi assimilado e fazendo relações entre os símbolos da cultura e as propriedades do objeto.


2  Para Piaget o jogo no período sensório motor é compreendido como todos os comportamentos repetidos por puro prazer funcional e que implica em assimilação pura (PIAGET, 1978, p.118).


Pain ainda destaca que enquanto o objeto não passar a ser polissêmico (generalização de sentidos), a situação criativa do sujeito fica obstaculizada. Assim se voltarmos ao exemplo da caixa de sapato, numa criança com dificuldades de aprendizagem poderíamos ver a caixa de sapato servindo apenas para guardar o sapato e mais nada. As características da caixa como, por exemplo, ser retangular como uma banheira não é coordenada.

As várias maneiras de a criança abordar o objeto possibilitam ao psicopedagogo levantar indícios de como estão sendo construídos os esquemas simbólicos da criança. A imitação também é muito relevante, pois revela uma ação “postergada”, ou seja:


[...] internalizada como imagem, que permite à criança realizar ações simbólicas sobre objetos simbólicos que tem por base o próprio corpo. Quando uma criança “faz que bebe de uma xícara” levando um cubo que tem na mão à boca e levantando o queixo, representa simbolicamente o ato de beber, internalizado como esquema. Às vezes o corpo da criança é utilizado para imitar certos movimentos alheios ou mecânicos, como por exemplo, os eixos de um trem [...] (PAIN, 1992, p.50).

A autora ainda explica que outro tipo de representação que aparece no jogo é a linguagem. Na imitação, a criança representa algo longe do tempo e do espaço expressando aquilo que foi assimilado da realidade, enquanto que através da linguagem substitui movimento difíceis de simbolizar materialmente. A medida que a criança cresce a linguagem cada vez mais vai tomando conta da cena até ser o único agente da fantasia expresso através da narrativa. No caso de Júlia, enquanto agia na cena que criava fala baixinho a si mesma, num discurso interior: ”o ônibus vai passar debaixo da ponte, dar uma volta na rua voltar”... Aqui encontramos indicativo do quanto ainda os esquemas estão apoiados na fala .

Assim, a brincadeira simbólica nas três expressões acima citadas vai se complexizando e evoluindo. Esta evolução vai dando indícios claros da estruturação mental da criança em seu duplo aspecto sintático e semântico (OLIVEIRA; BOSSA, 2002, p. 33).

Por isso, Sara Pain considera muito importante neste momento da investigação, observar o jogo da criança e assim propõe uma sessão com materiais predominantemente não figurativos: uma caixa com paralelepípedos de construção, cartões, fita adesiva, clips, tesouras, cartolina, papéis coloridos, tintas, esponjas, massinha, etc, também pode ser acrescentados miniaturas de personagens e animais. A utilização destes materiais, caracterizados como objetos não figurativos, tem como propósito proporcionar elementos para uma situação de brincadeira e assim possibilitar ao psicopedagogo atentar-se para a construção simbólica da criança, mais do que “às projeções efetuadas sobre um objeto já determinado pelo seu conteúdo” (PAIN, 1992, p. 51).

Conclui-se assim que dentro do momento diagnóstico a hora do jogo, é a hora da criança. Por isso, precisamos aprender a escutá-las em suas brincadeiras, olhando para seus gestos, ouvindo suas falas, compreendendo suas dramatizações, enfim abrindo os olhos para ver suas produções como um todo e isto só é possível se olharmos para ela em atividade lúdica, pois é assim que ela se comunica neste tempo da infância.

Também foram parte de nossa reflexão as instâncias sociais referidas a infância: família e escola, pois são contextos importantes para compreendermos qual é o lugar delegado ao brincar da criança, afinal o reconhecimento do brincar a partir destas instâncias, delegam a criança riqueza em possibilidades para sua construção mediante o brincar.

Brincar e criança são faces da mesma moeda, assim o lugar do brincar é o lugar da criança. Se delegarmos ao brincar um lugar de menor valor seja na família ou na escola estamos delegando às nossas crianças, um espaço social inferior com relação ao adulto, pois estamos tirando delas o direito de atuarem e a se posicionarem enquanto crianças. Assim, embora a brincadeira seja considerada uma atividade própria da criança, para entendermos melhor o fenômeno, precisamos considerá-lo não de forma isolada, ou seja, olhando só para a criança. É preciso estudar a brincadeira de forma contextual e isto envolve as instâncias escola e família.
Optamos por analisar nuances que permitem por observação inferirmos o contexto psíquico da criança manifesto por ela no brincar a partir das contribuições da psicanálise especialmente no que diz respeito ao brincar tal como analisado por Winnicott, um dos maiores nomes da psiquiatria e da psicanálise da criança. A perspectiva Winnicottiana não é dissonante da proposta piagetiana quanto ao brincar, mas confere acréscimos a esta compreensão, uma vez que Piaget não se propôs a uma análise que enfatizasse as construções psíquicas, tal como Winnicott o fez. Por essa razão, vemos as duas perspectivas teóricas como complementares no que concerne ao brincar da criança.
Os pressupostos desta teoria (WINNICOTT) foram construídos com base nos anos de sua prática e estudo sobre o assunto, embora o autor reconheça que não tenha esgotado o tema sugerindo deve haver a continuidade dos estudos sobre a atividade brincante da criança (WINNICOTT, 1975, p. 60).

Em seus estudos, o autor descobre que o brincar é uma conduta infantil de comunicação da criança consigo mesma e com os outros. Assim, enquanto uma linguagem própria da criança indica saúde, facilita o crescimento e conduz a relacionamentos grupais. O autor ainda considera que há nesta conduta infantil, um potencial riquíssimo de atividade criativa da criança que vai se desenvolvendo a medida que ela cresce e tem experiências espontâneas de criatividade através do brincar com outro ser humano (WINNICOTT, 1975, p. 64).

Postula então um lugar para esta atividade no psiquismo humano, enquanto matriz das experiências culturais, que pela sua complexidade nos coloca a questionar: mas onde se localiza o brincar? Dentro ou fora da criança?

Segundo Winnicott (1975), nem dentro e nem fora, o autor propõe um terceiro espaço psíquico (virtual) para o brincar, que integra o mundo interno ao ambiente da criança e enfatiza este espaço citando Tagore: “Na praia do mar de mundos sem fim, crianças brincam” (WINNICOTT, 1975, p. 133).

Para o autor os dois espaços interno/externo são na maioria das vezes, constantes aos indivíduos enquanto que este terceiro espaço vai depender de experiências vivenciadas pela criança que lhe produza confiança (WINNICOTT, 1975, p. 142).

Fernandèz (1991, p. 27) postula que é neste espaço de jogo onde a criança expressa sua criatividade onde encontramos a como matriz do aprender. É ali onde a criança constrói o conhecimento, é ali onde ela poderá voltar a ter o desejo por aprender, que talvez um dia foi encapsulado pelo sintoma “levando a criança a renúncia pelo pensar, conhecer e crescer”.

Por isso, impedir a criança de agir e de brincar é tirar dela o direito de “ser” e, portanto, impedir que ela aprenda e se desenvolva. Seus pensamentos ficam restritos apenas às vivências que lhe foram possibilitadas, enquanto que as experiências não vividas soarão como lembranças de histórias contadas por outros autores e nesse sentido não são verdades das quais as crianças se apropriam, mas são apenas histórias.

Nosso estudo aponta para a necessidade de novas reflexões, pesquisas e propostas de intervenção junto às crianças, ampliando as discussões aqui realizadas que enfatizem a atividade mental através do brincar. Aponta ainda para a necessidade e confirma a concepção do brincar que a psicopedagogia tem enfatizado, no sentido de um espaço para a escuta da criança - espaço imprescindível, dada a capacidade de observação que proporciona.
As crianças expressam suas brincadeiras de formas diferentes em diferentes contextos e em diferentes culturas. Por outro lado, a cultura influencia as suas brincadeiras, mas as crianças não deixam de brincar, pois é a forma que possuem de ser e estar no mundo.

Referências

BASSEDAS, E; HUGET, T. SOLÉ, I. Família e escola. In: Aprender e ensinar na eduação infantil. Porto Alegre: Artes Médica Sul, 1999.

DESSEN, M.A e COSTA. A.J. A ciência do desenvolvimento Humano: tendências atuais e perspectivas futuras. Porto alegre: Artmed, 2005.

DOLLE, Jean-Marie. Essas crianças que não aprendem: diagnósticos e terapias cognitivas. 4. ed. Petrópolis: Vozes, 1999.

FERNÁNDEZ, Alicia. A inteligência aprisionada: abordagem psicopedagógica clínica da criança e a sua família. 2ª ed. Porto Alegre: Artmed, 1991.

MACEDO, Lino de. Ensaios construtivistas. São Paulo: Casa do Psicólogo, 1994.

OLIVEIRA, Vera Barros e BOSSA, Nádia A. orgs. Avaliação Psicopedagógica da Criança de Sete a Onze Anos. Petrópolis: Vozes, 2002.

PAIN, S. Diagnóstico do e tratamento dos problemas de aprendizagem. Porto Alegre, Artes Médicas, 1992.

PIAGET, Jean. La naissance de I’intelligence chez l’efante. Nauchâtel, Delachaux & Niestlé, 1936.

WEISS, Maria.L.L.Psicopedagogia clínica:uma visão diagnóstica.2ª ed. Porto Alegre: Artes Médicas, 1997.

WINNICOTT, D. W. O brincar e a realidade. Rio de Janeiro: Imago, 1975.

WINNICOTT, D. W. A criança e o seu mundo. Rio de Janeiro: Zahar Editores S.A, 1982. (Trabalho original publicado em 1965).