http://www.psiquiatriainfantil.com.br/congressos/uel2007/107.htm


Londrina, 29 a 31 de outubro de 2007 – ISBN 978-85-99643-11-2

REESCRITA DE TEXTOS: UM PROCESSO INTERATIVO NA FORMAÇÃO DA TEXTUALIDADE DOS ALUNOS COM DIFICULDADES ESCOLARES

                                                                                                    Nilza Guidini Valentini – UEM
                                                                                          Lúcia Cristina Dalago Barreto - UEM
Nerli Nonato Ribeiro Mori - UEM
Áurea Paes Leme Goulart – UEM


RESUMO

Este trabalho versa sobre uma pesquisa realizada com o objetivo de investigar a possibilidade de uma prática pedagógica voltada para a textualidade.  Considera como ponto de partida a dimensão interacionista e dialógica da linguagem e parte do pressuposto de que o interlocutor é quem dá sentido ao texto, sendo ele o primeiro determinante das condições de produções textuais (Bakthin,1997). Trabalhou-se com produções e reescritas de textos procurando estimular os alunos com dificuldades escolares a colocarem-se como sujeitos no processo dialógico de produção de textos. O estudo e os procedimentos realizados indicam que são essenciais o desenvolvimento de práticas de produções escritas que possibilitem situações reais de uso da língua, a partir das quais, por meio da mediação do professor, os alunos enriquecem o conteúdo de seus textos à medida que os  reescrevem.

Palavras-chave: prática pedagógica, reescrita, mediação e dificuldades  escolares

Introdução

Os estudos contemporâneos na área da linguagem apontam para a necessidade de um trabalho fundamentado na concepção Histórico-Cultural, a qual considera como ponto de partida a dimensão dialógica e interacionista da linguagem. Ao enfatizar a ação interativa da linguagem, Bakthin (1997) ressalta a importância da reflexão sobre os modos de participação do interlocutor no processo de produção de textos escritos.  Nessa perspectiva, o discurso se organiza em função do “outro” definindo o caráter social da linguagem.  Por meio da qual a produção escrita é vista como interação.

No que se refere à visão da linguagem como interação, Vygotsky (1984:133) declara que “a escrita deve ter significado para as crianças [...] deve ser incorporada a uma tarefa relevante e necessária para a vida. Nesse sentido, as práticas de escrita desenvolvidas com os alunos devem oportunizar situações significativas em que a “artificialidade das produções” sejam rompidas  pela criação de situações concretas de interação” (GERALDI,1997, p.54)

 É nesse sentido que justifica-se o trabalho com a reescrita de textos, pois essa prática desperta nos  alunos com dificuldades escolares a condição de olhar para seu texto com uma visão mais crítica e mais apta a mudanças, provoca o diálogo do sujeito-autor com seu produto criado, possibilitando um relacionamento mais interativo com o próprio texto. Nesse contexto, a produção escrita é vista como contínua construção de conhecimento, no qual cada trabalho escrito serve de ponto de partida para novas produções, pois adquirem a possibilidade de serem reescritos.

Método

 Pautada nos pressupostos delineados, a presente pesquisa está voltada para a produção textual de uma turma de 7ª série do Ensino Fundamental, constituída por 30 alunos de uma Escola Pública no norte do Paraná. Foi desenvolvida uma prática com produções e reescritas de textos procurando estimular os alunos a colocarem-se como sujeitos no processo dialógico de produção textual. A escolha do público alvo da pesquisa, deu-se  pelo fato de uma das autoras atuar, nessa turma, como professora pesquisadora. Trata-se de uma pesquisa-ação, a qual segundo Gil (2004, p. 55) “exige o envolvimento ativo do pesquisador e a ação por parte das pessoas ou grupos envolvidos no problema”, portanto caracteriza-se pela interação entre pesquisadores e membros das situações investigadas.

Para o presente artigo, foi selecionada uma produção textual de cada aluno, a partir da qual foi feito um “diagnóstico” do nível de textualidade apresentado pelos aprendizes. Para tanto, tomou-se como parâmetro as Diretrizes Curriculares de Língua Portuguesa da Rede Pública de Educação Básica do Estado do Paraná (2006, p.23), que elenca como objetivo das práticas de produção escrita: “desenvolver o uso da língua escrita em situações discursivas por meio de práticas sociais que consideram os interlocutores, seus objetivos, o assunto tratado, os gêneros e suportes textuais, além do contexto de produção/leitura.”

 Com base nos pressupostos delineados, o presente estudo leva em consideração a necessidade de que o trabalho com a produção escrita priorize a diversidade dos gêneros textuais e o caráter interativo da linguagem, por meio dos quais os textos tenham circulação na prática social. Nesse sentido optou-se pelo gênero literário, a partir do qual houve uma exploração das especificidades da crônica. Assim, foi possível desenvolver uma prática a partir de textos com assuntos contemporâneos envolvendo fatos do cotidiano, que despertam a atenção dos alunos por serem significativos para o momento no qual estão  inseridos


Resultado

Produção escrita: uma proposta de análise e intervenção

Em relação à produção escrita houve uma preocupação muito especial ao elaborar o comando, para que o mesmo deixasse claro  as circunstâncias das condições de produção.
Como comando da produção textual escrita foi apresentado o seguinte enunciado: “Construa um texto por meio do qual você mostre a internet como um importante meio de comunicação. O texto produzido deverá ser uma crônica em prosa (narrativa), que  após  revisada será afixada no mural do colégio”.
 
Assim que os alunos entraram em contato com o comando, foram imediatamente socializando comentários nos quais relatavam situações em que a internet é um importante meio de comunicação. É claro que não deixavam também de expor opiniões sobre os perigos encontrados em sua utilização. Na continuidade, os alunos foram mobilizados a relembrar quais são as especificidades da crônica como gênero literário. Alguns alunos contribuíam com informações, enquanto outros aproveitavam para sanar dúvidas ainda pertinentes.

Em relação ao local de circulação, mesmo sabendo que a crônica é publicada em revistas ou jornais, os alunos compreenderam que as produções finais seriam afixadas no mural do Colégio devido ao difícil acesso à publicação em revistas ou jornais. O fato de afixar as crônicas produzidas no mural do colégio proporciona a oportunidade de socializar a experiência da produção textual, além de enfatizar o caráter interlocutivo da linguagem, visto que amplia o contato dos possíveis leitores com os autores dos textos.

Durante o desenvolvimento da produção escrita (realizada individualmente), os alunos contaram com intervenção pedagógica, principalmente os que apresentam dificuldades escolares, por meio da qual a professora pesquisadora procurava sempre orientá-los na melhoria de suas produções. 

Ao concluir a produção, comentamos com os alunos que os textos seriam analisadas individualmente e que a análise envolveria tanto a forma, como o conteúdo das crônicas.  Soares (2001) destaca a necessidade de possibilitar aos alunos análise e reflexão sobre os textos produzidos. Nesse contexto, após concluírem a produção escrita e serem motivados à prática de revisão textual, os alunos foram informados de que todos os textos estavam sujeitos a retornar para seus produtores, e que, auxiliados pela mediação pedagógica, poderiam melhorar suas produções por meio de reescritas. Para compreenderem melhor o processo de avaliação no qual seus textos estavam inseridos, distribuí-lhes uma ficha contendo critérios  (alguns deles relacionados na seqüência), os quais envolvem a análise de aspectos textuais e gramaticais, bem como os aspectos relacionados às circunstâncias das condições de produção elencadas no comando.

Nível de textualidade apresentado nas crônicas produzidas

Os textos dos alunos, ao serem analisados segundo os critérios elaborados com base nas Diretrizes Curriculares, e nas especificidades da crônica como um dos tipos de textos do gênero literário, demonstram que a maioria dos alunos apresentam nível bem desenvolvido de textualidade para a série em que estão inseridos.  Na seqüência, apresentamos uma síntese contendo dez dos vinte e um critérios analisados nas produções.

1-Circunstâncias das condições de produção:
·    73,5% dos textos atenderam às circunstâncias de produção: tema, finalidade, especificidade do gênero, local de circulação e interlocutor eleito.
·    Em 19,9% não houve o envolvimento da internet como um importante meio de comunicação, portanto não atendeu à finalidade da produção.
·    Já 6,6% confundiram-se em relação ao gênero, pois não produziram crônicas, e sim um texto expositivo informando sobre a internet como um importante meio de comunicação, atendendo dessa forma apenas o tema e a finalidade.

2- Adequação do repertório lexical:
É muito bem construído, utilizam expressões da área da informática e  procuram transcrever, no discurso direto, a linguagem usada pelos internautas.
·    93,4% dos aprendizes demonstram vocabulário adequado.
·    6,6% deixam transparecer, com pouquíssimo uso, marcas da oralidade.

3- Coerência,clareza e seqüência lógica:
·    76,8% dos textos são coerentes, apresentam clareza e seqüência  lógica.
·    Frases com repetição foram encontradas em 10% dos textos analisados: repetição de pronomes pessoais, de pronome oblíquo e de substantivos.
·    Outro problema detectado, o qual contabiliza 6,6%, foi quanto à inversão de palavras na frase, a qual desencadeou falta de clareza.
 
4- Coerência no foco narrativo:
·    93,4% dos alunos produziram textos desenvolvendo a narração dos fatos, de forma coerente. Assim distribuídos: 66,% em terceira pessoa e 26,8 % em primeira.
·    No entanto, em 6,6% não foi possível a análise do foco narrativo, pois as produções não atenderam às especificidades do gênero textual (literário / crônica em prosa narrativa).

 5- Adequação do discurso (direto / indireto):
·    Em 79,9% das crônicas foram  utilizados o discurso indireto pelo narrador, sendo que também foi dada voz ao personagem por meio do uso de discurso direto.
·    Houve também, 13,5% dos alunos que produziram a crônica usando apenas discurso indireto, não dando oportunidade para envolver a fala dos personagens.
·    Em 6,6% dos textos produzidos constatou-se falta de clareza no uso do discurso direto, pois o discurso do narrador e a fala dos personagens ficaram confusos pela falta de adequação da pontuação utilizada.

6 - Pontuação:
·    Em apenas 53,4% dos textos houve emprego adequado dos sinais de pontuação, possibilitando expressar, por meio da linguagem escrita:  questionamentos, dúvidas, emoções, afirmação, declaração, alegria, espanto...
·    No entanto, 46,8% das crônicas apresentaram dificuldades no emprego de pontuação, comprometendo o sentido do texto.

7- Concordância verbal e nominal:
·    56,6% dos textos produzidos apresentaram coerente utilização de concordância verbal e nominal.
·     Porém, 43,2% das crônicas apresentaram algumas dificuldades em adequar a concordância, sendo que a maioria das dificuldades apresentadas diz respeito à concordância verbal.

8- Articulação de frases e parágrafos por meio de conectores:
·    Apenas 3,3% dos textos apresentaram abundante e diversificado uso de conectores na articulação de frases e parágrafos.
·    Em 90,1% dos textos analisados, é uma quantidade muito expressiva, observou-se o uso de poucos conectores na articulação das partes constitutivas do texto.
·    Além disso, 6,6% das crônicas produzidas apresentam repetição no uso de conectores.

9- Acentuação gráfica:
·    56,8% dos textos foram escritos com emprego adequado de acentuação.
·    Já 29,9 % apresentaram algumas  palavras com equívocos no uso de acentos.
·    Muitas dificuldades de acentuação foram encontradas em 13,3% das crônicas produzidas.

10- Escrita das palavras em relação às normas ortográficas:
·    63,2% dos textos demonstram excelente nível ortográfico.
·    Já 26,8% das crônicas produzidas apresentam transgressões ortográficas, mas normais para a série em que estão inseridos.
·    No entanto, em 10% das produções, foram encontradas uma quantidade elevada de palavras grafadas com problemas ortográficos.

A prática da reescrita

A análise dos critérios observados nas crônicas produzidas mostrou-nos a necessidade de realizar uma discussão coletiva sobre as dificuldades detectadas nas produções. Após essa discussão, foram realizadas reescritas coletivas de trechos de alguns textos, tanto em relação à forma quanto ao conteúdo.  Também houve a proposição de reescritas individuais, nas quais os alunos reescreveram seus próprios textos. Na seqüência, apresentamos uma crônica em sua produção inicial, e também a versão definitiva, após passar pelas modificações realizadas com a prática da reescrita.



K.M.G. – 12 anos
Produção inicial
Março de 2007.


K.M.G. – 12 anos
Versão final – Abril de 2007


O texto “Amiga de internet” em sua produção inicial, de certa forma, atende às circunstâncias das condições de produção, porém precisaria ter dado maior ênfase à importância da internet como meio de comunicação. Em uma leitura superficial não fica clara a finalidade do texto, embora implicitamente compreende-se que a internet foi o instrumento usado para a comunicação entre Nathália e Ana, possibilitando a participação no concurso, portanto um importante meio de comunicação.

O conteúdo do texto é compreensível, embora apresente algumas lacunas. Já a forma está comprometida, principalmente pelo emprego do discurso direto, que não apresenta-se bem estruturado, pois além de misturar falas de personagens e narrador, a pontuação não foi empregada adequadamente. Outras dificuldades apresentadas em relação à forma do texto foram: omissão de algumas palavras e repetição de outras, concordância verbal, normas ortográficas e pouco uso de conectores ao ligar frases e parágrafos.

Após passar pela prática da reescrita, em sua versão final, a crônica sofreu alterações no título: “Amigas pela internet”.  No texto reelaborado o discurso está melhor estruturado, com emprego de pontuação adequada. Além disso, nota-se que diminuíram as dificuldades ortográficas detectadas na produção inicial. Outro fato que merece ser observado na versão final dessa produção é o desenvolvimento do texto: houve expansão de idéias, clareza, coerência e seqüência lógica, deixando-o mais atrativo ao leitor.

 Para Jolibert (1994:47) ”as reescritas correspondem a um aprofundamento do trabalho de elaboração do texto, elas podem ser parciais, referindo-se a um nível de análise ou a uma parte do texto”. A prática de reescrita pode ser realizada individualmente ou em grupo. Assim, acredita-se que por meio da interação entre os colegas, e com a mediação do professor, o aluno desenvolve melhor sua aprendizagem. Isso ocorre pela oportunidade de trocar experiências, e refletir sobre diferentes formas de reescrever os textos, deixando-os coerentes tanto em relação ao conteúdo quanto à forma.

 Nesse processo, os aprendizes foram se apropriando de conhecimentos necessários para a reelaboração de suas crônicas.  Morais (1998:119) enfatiza que os alunos precisam incorporar a atitude de voltar ao que escreveram.  Para o autor, “a prática de produção escrita é um trabalho de idas e vindas e de reelaborações”.  Assim, todos os textos foram reescritos. As mudanças ocorreram de acordo com a necessidade de cada produção

Durante o processo de reescrita os alunos foram muito participativos: questionavam, analisavam, davam sugestões, interagiam com os colegas, enfim, envolveram-se ativamente. A professora pesquisadora foi atendendo às solicitações e fazendo intervenções, visando a adequação, clareza e coerência dos textos reescritos. Desse modo, os alunos foram percebendo que suas produções podem ser modificadas, tanto em relação à forma quanto ao significado, ou seja, não são produtos prontos, acabados.

Discussão

A pesquisa realizada proporcionou-nos chegar a alguns apontamentos com os quais não temos a pretensão de encerrar essa discussão, pois acreditamos que a continuidade desse estudo trará muitas contribuições para o desenvolvimento das práticas de produções  textuais.
Fundamentada em uma perspectiva interacionista e dialógica do trabalho com a linguagem, a prática realizada assume uma concepção de língua escrita como atividade enunciativa, por meio da qual, quem escreve é um sujeito que, em determinado contexto social e histórico, interage com o interlocutor.

Nesse sentido, buscou-se aproximar o uso que os alunos fazem das produções escritas em sala de aula e o uso da escrita na prática social. Para tanto, foi realizado um trabalho de produção e reescrita de crônicas com as quais os aprendizes entraram em contato com possibilidades de novas produções. Ao analisar as crônicas produzidas pela turma da sétima série, foi possível observar que as produções iniciais apresentavam diversos problemas, tanto em relação à forma quanto ao conteúdo. Contudo, ao discutir as dificuldades e realizar as reescritas, as crônicas passaram a atender melhor às circunstâncias das condições de produção de texto propostas no comando.

Com a prática pedagógica empreendida, os alunos puderam perceber o interlocutor como o primeiro determinante das condições de produção, e  além disso, reconhecer que por meio de reescritas os textos podem ser reelaborados, até atingirem a finalidade da situação comunicativa. Esse estudo possibilitou-nos o reconhecimento de que a mediação do professor e a socialização entre os aprendizes é primordial  para que eles possam reescrever seus próprios textos, chegando à versão final  com resultados tão qualitativos. Com a realização dessas práticas é possível minimizar as dificuldades escolares em relação à produção escrita.



Referências:

BAKHTIN,M . Estética da criação verbal. São Paulo: Martins Fontes,1997.

____________. Da redação à produção de textos. In: CHIAPPINI, L. (Coord.). Aprender e ensinar com textos de alunos. São Paulo: Cortez, 1997, p. 17-24.

GIL, Antonio Carlos. Como elaborar projetos de pesquisa. 4. ed. São Paulo: Atlas, 2002.

JOLIBERT, Josette & Cols. Formando crianças produtoras de textos. Porto Alegre: Artes Médicas, 1994.

MORAIS, Artur. G. Ortografia: ensinar e aprender. São Paulo: Ática,1998.

PARANÁ, Diretrizes Curriculares da Educação Fundamental da Rede de Educação básica do Estado do Paraná. Curitiba: SEED,  2005  

SOARES, Magda.  Aprender a escrever, ensinar a escrever. In ZACCUR,E.(org). A magia da linguagem. Rio de Janeiro: DP&A: SEPE, 2001.

VYGOTSKY, L. S. Pensamento e linguagem. São Paulo: Martins Fontes, 1984