http://www.psiquiatriainfantil.com.br/congressos/uel2007/143.htm |
|
Londrina, 29 a 31 de outubro de 2007 – ISBN 978-85-99643-11-2
DEFICIÊNCIA E ESTRANHAMENTO: O OLHAR DA FAMÍLIA E DO POETA
Elisabeth Becker
Maria Eloísa Famá D´Antino
Professoras do Centro de Ciências Biológicas e da Saúde e do Programa de Pós-Graduação em
Distúrbios do Desenvolvimento da Universidade Presbiteriana Mackenzie.
Trabalhando com pessoas com deficiência um questionamento subsidia inúmeras
pesquisas e artigos reflexivos: qual é a natureza essencial das alterações que são impressas ao
campo relacional em presença da deficiência? De um ângulo mais específico: como a família com
um integrante com deficiência estrutura-se e estrutura seus integrantes perante tal condição?
Decorrem possíveis desdobramentos de tal ponto de partida: o conteúdo emocional
peculiar, freqüentemente presente em tais famílias constitui-se em elemento significativo da
dinâmica relacional estabelecida no interior das mesmas e destas com o universo social? Ou,
ainda: é possível que a vivência emocional, as frustrações, as expectativas e idealizações nutridas
no interior da instituição familiar, imprimam e sustentem no seio social uma repetição destas
experiências? Como disse Caetano Veloso, no poema de sua canção “Sampa”:
Alguma coisa acontece no meu coração...
Para tentar responder estas questões, deve-se percorrer um caminho teórico que passe
tanto por aspectos de ordem sociológica quanto psicológica, visando subsidiar a complexidade a
elas inerente. Escolhemos, para caminhar neste ensaio, a companhia de Caetano Veloso, através
de alguns de seus versos de “Sampa” para juntos fazermos uma incursão na vivência do
estranhamento frente o novo. Incursão esta magnificamente expressa por ele nesta canção.
Assim, este ensaio procura apresentar uma sistematização de alguns aspectos relativos à
família, buscando compreender suas especificidades enquanto instituição social, privilegiando
tanto as questões relativas aos aspectos emocionais quanto o papel sócio-político que assume na
teia de relações na qual está imersa, particularmente face à deficiência de um integrante
Inúmeros trabalhos dedicaram-se ao exame de questões afeitas à dinâmica relacional
intra-familiar em presença da deficiência e estes, de um modo geral, sinalizam peculiaridades que
apontam para a compreensão da família enquanto micro-estrutura que, ao mesmo tempo, é
produzida e produtora, reflexo e refletora das relações sociais mais amplas.
Buscando-se a interlocução com Lapassade (1983) e Foucault (1993), a família pode ser
concebida como a união de pai, mãe e filho(s) que se inter-relacionam afetiva e economicamente,
apresentando uma dinâmica própria de funcionamento, cada qual desempenhando um papel
determinado, dentro dos padrões, normas e valores por ela estabelecidos e de conformidade com
os socialmente aceitos.
O grupo familiar, no entender de Lapassade (1983, p. 15), constitui-se no “cimento
mais firme da ordem social estabelecida” sendo o lugar da interiorização da repressão, o que
terá sua continuidade na escola, aspectos também destacados na teoria psicanalítica. Desta forma
a família é compreendida, ao mesmo tempo, como a instituição da afetividade e da primeira
divisão de trabalho. Expressa-se em Lapassade, ao tratar de questões relativas à instituição
familiar, uma preocupação tanto de ordem afetiva-emocional quanto sócio-política, embora com
maior ênfase nesta última, no que não se distancia da visão de Foucault (1993), segundo a qual a
família, colocando-se como espaço para a sobrevivência e evolução da criança, ainda possibilita
que o vínculo conjugal preste-se a ser a matriz da vida adulta.
Enquanto micro-estrutura social, a família foi e continuará a ser, o primeiro e mais
importante “berço” do indivíduo, tendo como função original satisfazer todas as necessidades
físicas, afetivas e sociais da criança. Como “berço” cumpre, também, a função de mediadora
original entre esta e o mundo social. Assim, esta micro-estrutura funciona, ao mesmo tempo,
como representante e intermediária das relações sociais mais amplas, possibilitando à criança a
formação de sua primeira identidade.
A criança aprende a se relacionar com o meio extra-familiar através da teia de relações
vividas na família, no estabelecimento e entendimento dos papéis desempenhados pelos seus
membros e nos valores, normas e regras deste meio. Ou seja, o núcleo familiar tem, dentre
outras, uma função sócio-educacional, apresentando-se ao indivíduo como o modelo de ser e
estar no mundo, aspecto muito destacado, inclusive na óptica de psicanalistas como Soifer
(1982), por exemplo. Pode-se observar, entretanto, como colocado contundentemente na crítica
ao historiador Christopher Lasch, feita por Costa (1995, p. 158), que vivemos um período em
que:
“em nome da tradição
democrática ocidental [....] é moralmente
odioso querer reduzir família ao conjunto de bípedes aparvalhados que
assistem juntos à televisão; adulto a zumbi de shopping centers; pai a
suplente de caixa registradora; mãe a “orelhão” para desaforo e grosseria
de adolescente; criança a cabide de artigos da moda, etc., e tudo isso para
multiplicar os lucros [...]”
Mesmo considerando-se a especificidade das mazelas e conflitos da instituição familiar
no momento atual, tal como discutida em Derrida e Roudinesco ( 2004), Nicolaci-Da-Costa
(1985) e Roudinesco (2003), esta ainda é o palco privilegiado para a observação da criação e
difusão dos mecanismos de poder. Ou seja, na colocação de Foucault (1977, p.58):
“O indivíduo, durante muito tempo foi autenticado pela referência
dos outros e pela manifestação de seu vínculo com outrem (família,
lealdade, proteção); posteriormente passou a ser autenticado pelo discurso
de verdade que era capaz de (ou obrigado a) ter sobre si mesmo. A
confissão da verdade se inscreveu no cerne dos procedimentos de
individualização pelo poder.”
Pode-se abstrair desta colocação a força da família na transmissão de valores
aprendidos, dentro os quais se encontra o preconceito.
É, pois, com a função de promover, em última instância, a educação social das crianças
que a família se torna um meio físico denso, permanente e contínuo que envolve, mantém e
favorece o corpo da criança, no dizer de Foucault (1993). Vale lembrar que a primordial função
da família diz respeito à sobrevivência da sua prole. Por outro lado, é teoricamente na família que
se encontra o espaço para as vivências mais íntimas. É o espaço permitido para o perder-se e
re-encontrar-se, onde podem ser expressos todos os sentimentos, desejos e necessidades...
Onde pode ser exercitada a condição de ser, simplesmente sendo...
A ênfase nessa faceta afetivo-emocional da família nos leva (nestes caminhos trilhados em
companhia de Lapassade e Foucault) a refletir sobre o tema da idealização, entendendo-se a
procriação como uma de suas possibilidades de expressão.
Ao conceber e gestar um filho concebe-se e gesta - se, também, a idéia do filho sadio,
belo, inteligente, forte. Idealiza-se o filho como um ser capaz de fazer e/ou refazer tudo quanto
não foi possível de ser realizado pelos pais. É, como visto em muitas culturas, o pacto com a
transcendência, com o futuro e objetivamente, o cumprimento da lei biológica de continuidade da
espécie.
Torna-se compreensível, desta forma, o fato de projetar-se no filho o ideal estético, ético,
intelectual, profissional e social, o qual, como um “super-homem” ou “mulher maravilha”, deverá
dar conta de satisfazer toda gama de projetos idealizados pelos pais. Razão porque se acredita
que, ao nascer de cada criança, “nasce” com ela uma nova condição da mulher e do homem,
“nasce” a condição de ser pai e mãe, posto que não se aprende a ser pai e mãe, senão sendo...
Do ponto de vista emocional, o nascimento de um bebê já é por si mesmo um fato
carregado de repercussões psicológicas específicas em uma família, o que se encontra bem
documentado em trabalhos de estudiosos do tema. Mas, e se o bebê for significativamente
diferente do esperado? E se o bebê apresentar uma deficiência? Como fica o jogo de
identificações e idealizações?
Continuando nosso diálogo com o poeta Caetano (sabendo-se, entretanto, que as
motivações do poeta em muito podem diferir das nossas):
É que quando eu cheguei por aqui eu nada entendi...
Embora repercussões de ordem psico-social não sejam exclusivas das famílias em
questão, uma vez que o nascimento de uma criança em qualquer família demanda certo rearranjo,
a chegada de uma criança com deficiência pode determinar maior grau de tensão, e intensa
ambivalência nos sentimentos experimentados, como assinalado por Amaral (1995), podendo
acarretar inclusive diferentes reações defensivas em tais famílias. Se esta nova condição parece
não ser tão simples para pais de crianças que nascem sem maiores problemas, podem-se
formular algumas questões, dentro do tema aqui explorado:
. De que forma os pais de crianças que apresentam deficiência lidam com seu narcisismo?
. Como são estabelecidas as relações afetivas entre pais e filho, se não era essa a criança que
idealizaram ter?
. Que papel será atribuído a esse filho na estrutura familiar?
As vivências das expectativas não realizadas e da realidade não desejada poderão dar
origem a dificuldades na acomodação familiar, pela presença do filho real, com as manifestações
emocionais variando, porém, de família para família, em sua forma e intensidade.
Nesse sentido, Amiralian e Becker (1992) sinalizaram a possibilidade de ocorrência de
fenômenos relacionais peculiares. Considerando as possíveis dificuldades da relação com este
bebê, essas autoras remetem à idéia de que é esperada a identificação dos pais e,
particularmente, da mãe com seu filho, propiciando, nos momentos iniciais do desenvolvimento,
seu desenrolar saudável. Mas há o risco de identificações patológicas remeterem os familiares a
situações de luto insuportavelmente prolongadas ou a, reativamente, assumir um lugar em que o
verdadeiro enfrentamento afetivo da situação cede a uma exagerada busca racional de
conhecimentos sobre como intervir na deficiência, tornando-os mais especialistas que pais. Estas
são condições possíveis de alteração dos laços naturais que evidenciam o fato da deficiência estar
se interpondo continuamente na relação com o filho, o que, provavelmente, repercutirá em
comprometimentos emocionais em seu desenvolvimento.
A alteração no desempenho de papéis e funções de seus integrantes poderá, portanto,
desencadear desordens de diversas naturezas nas relações intra-familiares, que serão refletidas
nas relações com o filho com deficiência. É possível que fique patente (ou latente) o risco dessa
criança não poder cumprir com o papel que, neste momento, lhe havia sido atribuído, de ser sua
“majestade” o bebê, ou até, de tornar-se aquele que ocupará esse lugar eternamente...
Não se tem a intenção de culpabilizar a família por vivenciar sentimentos ambivalentes em
relação ao filho com deficiência, tampouco julgá-la. Até porque a ambivalência apresenta-se em
qualquer relação, parental ou não, como ingrediente de peso, frente a frustrações ou
ressentimentos. Nas famílias em questão, porém, essa ambivalência pode ter tonalidades mais
fortes, o que é perfeitamente compreensível, se lembrarmos as colocações de Fédida (1984),
mostrando o quanto a percepção de deficiências pode ser perturbadora, remetendo à experiência
de angústias muito primitivas, comparáveis à vivência de um cataclismo que aniquila nossos
possíveis sentimentos de controle onipotente, remetendo-nos ao confronto com nossas próprias
limitações/deficiências.
Ainda não havia para mim Rita Lee
A tua mais completa tradução
Remetidas a uma condição de perplexidade e, portanto, vulneráveis, quais trocas podem ser
estabelecidas nessas famílias? Tal questão coloca-se tanto ao considerarmos aquele que exerce a
função de apresentação do mundo a seu novo integrante (em geral, a mãe) quanto, no sentido
inverso, a apresentação deste novo ser humano à cultura, à comunidade, à sociedade à qual
pertence, de modo geral. Como sugere o poema, tal família clama, em desamparo, por uma
possibilidade de obter uma tradução, à guisa de instrumentar-se para o diálogo que, com ou sem
a deficiência, precisa ser estabelecido por ela, tanto interna quanto externamente.
O sentido crucial do diálogo, termo que indica, no ensaio de Matos (1998, p.97),
o que
une e distingue os contrários, “...supõe movimentar-se num campo semântico e conceitual que
leva em conta o discernimento, a distinção e a diferença”. Remete-nos, particularmente quando
reportado às questões da diferença presentes na deficiência, aos conflitos entre respeito,
preconceito e intolerância. Acompanhando as reflexões expostas pela autora nesse artigo,
podemos observar que ela, tal como Crochíck (2006), destaca a dificuldade no estabelecimento
de uma relação de respeito perante aquele que nos provoca estranheza, na medida em que este
pode nos revelar algo não reconhecido como familiar, mas sim, inquietantemente estranho.
Continuando com Matos (1998, p.98), ela nos diz que “interrogar a intolerância é, pois,
questionar as relações do eu ao outro mas sobretudo de nós a nós mesmos. (...) É o medo
que fixa o estranho fora de nós, revelando naquilo que uma vez foi familiar algo
potencialmente ‘impregnado’ do estranho, no caso, o inconsciente”
Crochíck (2006), por sua vez, remetendo-se a Freud (1975), nos diz que aquilo que não
queremos ou que não podemos reconhecer em nós mesmos é o que, verdadeiramente, está na
raiz do temor ao outro diferente e é contra esse desconhecido/familiar que nos defendemos.
Deparamo-nos aí com a raiz de atitudes que, oscilando de extrema benevolência complacente, à
mais feroz e implacável rejeição, quando adotadas a priori frente à deficiência, expressam a
desqualificação típica do preconceito. A esse respeito, pode-se encontrar também em Amaral
(1994, 1995, 2002) preciosas contribuições.
Quando eu te encarei
Frente a frente
Não vi o meu rosto
Chamei de mau gosto o que vi
De mau gosto, mau gosto
É que Narciso acha feio
O que não é espelho
Para os pais que se deparam com um filho com deficiência, o sentimento de que estão
refletindo (no lago de Narciso) uma imagem que não aceitariam como própria, normalmente é
vivido como culpa e responsabilização por terem gerado esse filho, muito embora essa
responsabilidade, na maioria das vezes, não corresponda necessariamente à realidade.
E a mente apavora
O que ainda não é mesmo velho
Nada do que não era antes
Quando não somos mutantes
Mesmo nas condições mais adversas de gestação, a possibilidade de procriar traduz uma
esperança no futuro, esperança que será concretizada com o nascimento do filho idealizado. Se a
realidade do filho com deficiência se contrapõe a tal expectativa, os pais se vêem confrontados
com a necessidade de fazer face à perda desta idealização, o que comumente é nomeado na
literatura especializada como o “luto do filho normal”. Nesse período, as trajetórias dos pais
(mutantes?) podem deparar-se tanto com a mais completa omissão de apoios sociais quanto
com o amparo e acolhimento adequados, quer do grupo familiar mais amplo, quer de instituições
e de profissionais especializados.
Toda gama de sentimentos (culpa, negação, rejeição, auto-piedade, etc.) que acompanha
o processo pelo qual passam os pais quando do nascimento ou descoberta de que o filho
idealizado não está presente, tendo vindo outro em seu lugar, pode reapresentar-se em vários
momentos do ciclo da vida familiar, mormente em marcos de transição. Entretanto, os momentos
iniciais da descoberta da condição de deficiência na família, são particularmente cruciais.
E foste um difícil começo, afasto o que não conheço...
Referindo-se à ambivalência de sentimentos, Amaral nos diz que “o impacto da
deficiência na família reveste-se de tonalidade muito semelhante, uma vez que os
sentimentos gerados pela sua ocorrência oscilam entre polaridades muito fortes: amor e
ódio, alegria e sofrimento; uma vez que as reações concomitantes oscilam entre aceitação e
rejeição, euforia e depressão - para citar o que ocorre com maior freqüência.” (AMARAL,
1995, p.73)
As relações afetivas e o funcionamento da unidade familiar variam, como já dito, de
família para família, com normas, regras, valores e vivências próprias, enfim, com uma dinâmica
única, fruto de uma bagagem que representa a história de vida de cada um - e cada história é
sempre única, com seus personagens, cenas, imagens e capítulos escritos por aqueles que a
vivem.
Mas, como a história tende a se repetir, pode-se encontrar, nas famílias em apreço, a
reprodução de muitas imagens e cenas sendo vividas por atores diferentes que também escrevem
seus capítulos. Capítulos que se entrecruzam pela identificação, retro-alimentados pela força
mobilizadora e geradora de alternativas de enfrentamento à situação.
D’Antino (1998) descreve em sua pesquisa o fato de ser a reprodução dessas imagens,
cenas e capítulos o mote catalizador da união de pais para a formação de instituições de
atendimento a deficientes dirigidas por estes familiares. Estes sobrepõem à função de pais a de
administradores ou especialistas na área que a instituição se propõe a atender. Deslocados de seu
lugar inicial, imprimindo sérios riscos à relação com sua prole, ainda assim há o lucro de superar
uma paralisação, buscando criar e também crescer, a partir da situação vivenciada com seu filho
com deficiência.
Do povo oprimido nas filas
Nas vilas, favelas
Da força da grana que ergue
E destrói coisas belas
Da feia fumaça que sobe
Apagando as estrelas
Eu vejo surgir teus poetas
De campos e espaços
Tuas oficinas de florestas
Teus deuses da chuva...
Existem outros fatores desencadeantes e responsáveis por desordens na dinâmica familiar,
muitos deles com existência anterior ao nascimento da “criança diferente”, mas observa-se que
existe uma tendência de atribuir a essa criança a responsabilidade pelas insatisfações, desordens e
problemas enfrentados pela família, desde os de ordem material até os de "desordem" emocional.
Esses fenômenos de delegação das dificuldades exclusivamente à condição de deficiência
presente naquele filho são discutidos em vários trabalhos de Amiralian (1997, 2003a, 2003b) à
luz das contribuições de Winnicott para com o conhecimento psicanalítico da natureza humana.
Essa autora mostra como as propostas desse psicanalista podem proporcionar uma nova maneira
de compreensão e a conseqüente intervenção junto às pessoas com deficiência, tanto em
procedimentos educacionais, quanto nos clínicos.
Em suas palavras:
A ocorrência de invasões ambientais, seja pelo impingir de uma
ação inoportuna seja pela não satisfação das necessidades do indivíduo,
acontece com freqüência na interação entre um ser com deficiência e o
ambiente que o circunda. [...] Ocorrem tanto nas relações familiares como
no contato com amigos, com professores, com colegas e até nas relações
profissional/cliente, pois, mesmo o profissional que tem por objetivo
ajudá-los, muitas vezes relaciona-se com eles na base da intrusão.
Perceber as necessidades de outro ser humano por meio de outras pistas
sensoriais ou motoras que não aquelas a que estamos habituadas não é um
processo simples. Assim como também não é fácil a constatação de que a
realização plena e satisfatória de alguns passa por condições extremamente
diversas das nossas. (AMIRALIAN, 2003a, p. 210).
Podemos observar nessas colocações,
o quanto é complexo para cada família, conhecer
a real dimensão entre a limitação física ou psíquica inerente à deficiência e as possíveis questões
de dependência/autonomia que estarão nela implicadas. Mais ainda, o quanto é confusa e,
portanto, ansiógena, a delimitação de como, quando e quanto esta limitação determina ou será
determinada pelas relações interpessoais estabelecidas, particularmente se pensarmos no âmbito
das instituições sociais.
É importante lembrar, porém, que quanto mais a família estiver estruturada
emocionalmente, com relações afetivas satisfatórias e com vivências de trocas verdadeiras e
ainda, quanto mais precocemente puder ser atendida em suas necessidades, tanto maior será sua
possibilidade de reestruturação e redimensionamento de funções e papéis e, conseqüentemente,
de facilitação do processo de desenvolvimento de seu filho, na totalidade do ser.
Consequentemente, seria possível também que defesas inadequadamente acionadas por estas
famílias pudessem ser minimizados. Dessa forma, ao invés de serem levadas por esses familiares
para o interior das instituições de atendimento, transformando-se em dificuldades implicitamente
presentes nas dinâmicas que nelas se estabelecem, passariam, por sua vez, a constituir veículos de
conscientização de qualquer distorção relacional, particularmente daquelas que se cristalizam e
sustentam a existência de preconceitos. Só assim, poderíamos, finalmente, estar afinados com o
que propõe o poeta:
E quem vem de outro sonho
Feliz de cidade
Aprende depressa a chamar-te
De realidade
Porque és o avesso
Do avesso, do avesso, do avesso....
REFERÊNCIAS
AMARAL, L.A. Pensar a Diferença/Deficiência. Brasília: CORDE, 1994.
AMARAL, L.A. Conhecendo a deficiência : em companhia de Hércules. São Paulo: Robe,
1995.
AMARAL, L.A. Diferenças, estigma e preconceito: o desafio da inclusão.. In: OLIVEIRA. M.
K.; SOUZA, D.T.R.; REGO, T.C. ( orgs.) Psicologia, educação e as temáticas da vida
contemporânea. São Paulo: Moderna, 2002. p. 243-248.
AMIRALIAN, M.L.T.M. Compreendendo a deficiência pela óptica das propostas
winnicottianas.Estilos da Clínica. São Paulo, II, n.2, p.96-102, jul./dez.1997.
AMIRALIAN, M.L.T.M.A clínica do amadurecimento e o atendimento às pessoas com
deficiências.Natureza Humana. São Paulo, v.5, n.1, p.205-219, jan./jun.2003a. AMIRALIAN,
M.L.T.M. Deficiências: um novo olhar. Contribuições a partir da psicanálise winnicottiana.Estilos
da Clínica. São Paulo, VII, n.15, p.94-111, jul./dez.2003b. AMIRALIAN, M.L.T.M.;
BECKER, E. Deficiência congênita e autismo secundário: um risco psicológico. Rev. Bras. Cres.
Des. Hum. São Paulo, II (2) , p.49-55, 1992.
COSTA, J.F. A ética e o espelho da cultura.Rio de Janeiro: Rocco, 1994.
CROCHÍC, J.L. Preconceito, indivíduo e cultura.São Paulo: Casa do Psicólogo, 2006.
D´ANTINO, M.E.F. A máscara e o rosto da instituição especializada: marcas que o passado
abriga e o presente esconde. São Paulo: Memnon, 1998.
DERRIDA, J.; ROUDINESCO, E. De que amanhã...diálogo.Rio de Janeiro: Jorge Zahar Ed.,
2003.
FÉDIDA, P. A negação da deficiência. In: DÁVILA NETO, M.I. (org.) A negação da
deficiência. Rio de Janeiro: Achiamé/Socius, 1984.
FOUCAULT, M. História da sexualidade. Rio de Janeiro: Graal, 1977.
FOUCAULT, M. Vigiar e punir: história da violência nas prisões. 2ª ed. Petrópolis, Editora
Vozes, 1983
FOUCAULT, M. Microfísica do poder. 11ª ed. Rio de Janeiro, Graal, 1993.
FREUD, S. 0 Ego e o Id. Rio de Janeiro: Imago , 1975 .
LAPASSADE, G. Grupos, Organizações e Instituições. Rio de Janeiro, Francisco Alves, 1983.
NICOLACI-DA-COSTA, A.M. Mal-estar na família: descontinuidade e conflito entre sistemas
simbólicos. In: FIGUEIRA, S.A.. (org.) Cultura da Psicanálise. São Paulo: Brasiliense, 1985.
SOIFER, R. Psicodinamismos da família com crianças: terapia familiar com técnicas de jogo.
Petrópolis: Vozes, 1982.
ROUDINESCO, E. A família em desordem. Rio de Janeiro: Jorge Zahar Ed., 2004.