http://www.psiquiatriainfantil.com.br/congressos/uel2007/144.htm |
|
Londrina, 29 a 31 de outubro de 2007 – ISBN 978-85-99643-11-2
FAMÍLIA DE AUTISTA: RELATOS E EXPERIÊNCIAS DE UM GRUPO DE PAIS1
Sandra Cordeiro de Melo
Universidade Federal do Rio de Janeiro
1 Texto integrante da Dissertação de Mestrado intitulada - AUTISMO E EDUCAÇÃO: a dialética na inclusão.
Programa de Pós-Graduação em Educação ProPEd - UERJ, 2004.
RESUMO
Este estudo aborda a formação e o desenvolvimento de um grupo de pais de crianças e jovens com
transtorno autista. É fruto da pesquisa Autismo e Educação: a dialética na inclusão (2004). Utiliza a
abordagem de pesquisa qualitativa de tipo Pesquisa-Ação para a coleta e análise dos dados como:
observação participante, gravações em áudio e vídeo, entrevistas e triangulação dos dados; assim
como transcrição, decupagem e separação por categorias de análise. Apresenta através de relatos
dos participantes, o sentimento de tornar-se família especial, a busca por respostas que expliquem o
comportamento diferenciado de seus filhos, a romaria por médicos, psicólogos, fonoaudiólogos,
professores. São vozes misturadas que compartilham a experiência de se ter um filho com transtorno
autista em casa.
Introdução:
Este é um estudo sobre a formação e o desenvolvimento de um grupo de pais de crianças e jovens
com transtorno autista. Neste estudo apresentamos um panorama teórico sobre a dinâmica familiar e
sua relação com fatores estressores associados ao transtorno. Relacionamos este panorama teórico
aos dados coletados em ocasião da pesquisa Autismo e Educação onde os pais relatam o
surgimento de uma família especial, a preocupação com a educação formal quando esta é oferecida
aos seus filhos, a necessidade de apoiar-se na religião e a preocupação que nutrem em relação ao
futuro de seus filhos.
Método:
Utilizamos a abordagem de pesquisa qualitativa de tipo pesquisa-ação. Esta abordagem se dá num
processo que consiste em um grupo de profissionais, e possivelmente teóricos, que planejam, agem,
avaliam os resultados das ações que foram executadas e monitoram as atividades. Fazem isso
repetidamente até que um resultado satisfatório seja alcançado (Thiollent, 1992).
Resultado:
Acompanhamos a criação e o funcionamento de um grupo de discussão formado por
pais/responsáveis de crianças com transtorno autista durante o período aproximado de um ano com
freqüência semanal. Para a coleta e análise dos dados utilizamos os instrumentos da pesquisa
qualitativa, tais como observação participante, gravações em áudio e vídeo, entrevistas e
triangulação dos dados; assim como transcrição, decupagem e separação por categorias de análise.
Obtivemos um total de 20 horas de gravações em vídeo, 4 entrevistas, 3 depoimentos escritos. As
categorias levantadas através da triangulação dos dados foram:1 - como o meu filho se comporta
(82 ocorrências), 2 - análise dos membros (59 ocorrências), 3 - processo decisório (50
ocorrências), 4 - ong (40 ocorrências), 5 - exemplos (30 ocorrências), 6 - dicas familiares (14
ocorrências), 7 - como o seu filho se comporta (11 ocorrências), 8 - acesso aos serviços (11
ocorrências), 9 - interesses (7 ocorrências), 10 - habilidades (7 ocorrências), 11 - serviços
oferecidos (6 ocorrências), 12 - busca de profissionais (6 ocorrências), 13 - diagnóstico (5
ocorrências), 14 - histórias de vida (4 ocorrências), 15 - atividades extra escolares (4
ocorrências), 16 - busca de soluções (3 ocorrências), 17 - a família e a doença (3 ocorrências), 18
- modo de trabalho (3 ocorrências), 19 - sociedade inclusiva (3 ocorrências), 20 - monitoria (3
ocorrências), 21 - receios familiares (3 ocorrências).
Estas categorias representam o comportamento habitual do grupo em situação de interação.
Privilegiamos a recorrência dos eventos e dos padrões de comportamento, não deixando de
observar aqueles padrões manifestados como atípicos que também corroboraram para a sua
significação.
Discussão:
Estado da Arte:
Segundo Grey, (1988) o autismo é uma das mais misteriosas e incapacitantes desordens do
desenvolvimento da infância. Manifesta-se desde o início da vida, porém se torna mais evidente a
partir dos dois anos de idade. Durante este período os pais buscam explicações familiares, sociais e
emocionais para um ou outro comportamento diferenciado que já se manifeste. Para o autor,
dificuldades ocasionais combinando comportamento e idade, e aquelas incomuns associadas à
alimentação, ao choro e ao sono são freqüentemente interpretadas como não problemáticas. Na
maioria dos casos, os pais percebem que seu filho não está se desenvolvendo normalmente, e é
comum notar uma associação com o atraso na aquisição da linguagem. Porém anormalidades no
desenvolvimento social da criança podem se tornar aparentes nas explosões de raiva, na indiferença
por outras pessoas e pelo aumento do comportamento idiossincrático.
Para Mesibov & Shea (2007) o autismo, obviamente não é verdadeiramente uma cultura; é um
transtorno de desenvolvimento causado por uma disfunção neurológica. Entretanto, o autismo
também afeta a maneira que pessoas se alimentam, se vestem, usam seu tempo de lazer, entendem
seu mundo, se comunicam, etc. Consequentemente, de alguma forma, o autismo funciona como uma
cultura, sob a perspectiva de que ele produz padrões de comportamento característicos e previsíveis
nas pessoas sob esta condição.
Para Sprovieri & Assunção Jr. (2001) A família, quando tem um elemento-problema, não cumpre
com seu papel social de educar indivíduos para participar da sociedade segundo suas normas. Isso
porque ela é uma instituição social criada para formar indivíduos para essa mesma sociedade
segundo suas regras que, hoje, em uma sociedade pragmática, contém dados de seleção como
eficiência e eficácia. Neste estudo verificou-se que as famílias com um elemento deficiente dificultam
o desenvolvimento emocional sadio de seus outros membros, mesmo quando ela se compõe
somente de pais e filho doente uma vez que dificulta naqueles o desenvolvimento de seus papeis de
pais e cônjuges. A adoção de determinados padrões de comportamento e atitudes com relação aos
aspectos da vida passam a ser subordinados quase que exclusivamente à doença, conferindo-lhe
característica de superorganização, a qual leva ao estabelecimento de padrões familiares rígidos
impossibilitando o processo de desenvolvimento individual e familiar. As famílias de autistas vivem
continuamente sintomáticas porque o problema progride em termos de gravidade. Quanto mais essa
criança evolui e entra em outras etapas evolutivas, mais seus limites se fazem presentes. A família
enfrenta os efeitos de um de seus membros ser permanentemente sintomático, com deficiências que
progridem gradativamente. Os períodos de alívio das exigências ligadas a doença são mínimos, o
que contribui para a família se disfuncionar. Assim, a família passa a viver em função do doente e de
suas exigências, por sua dificuldade em adquirir autonomia e pela dependência permanente. Não se
pode deixar de avaliar tal situação como estressante e dificultadora de verbalização afetiva. O
autista e o deficiente mental, participam de um processo de exclusão social. Conforme descrito por
Goffman a família sofre pressão social quando tem um elemento que não corresponde às
expectativas sociais.
Para Mesibov & Shea (2007) Os serviços educacionais para pessoas com autismo deveriam ter 2
metas: 1) aumentar sua compreensão; e 2) tornar o ambiente mais compreensível. Na cultura do
autismo cada palavra significa apenas uma coisa; elas não tem conotações adicionais ou associações
subjacentes. Um exemplo deste fato é um jovem de 15 anos com um QI mediano que quando lhe
foi perguntado sobre o significado da frase “o pássaro que chega mais cedo pega a minhoca”,
respondeu que “se o pássaro levanta pela manhã bem cedo, ele pode pegar uma minhoca se a ver e
se ele a pegar, ele pode comê-la logo, e então ele continua e pode procurar outra minhoca”. De
forma similar, quando foi feita a pergunta sobre o significado da frase “não chore sobre o leite
derramado”, ele respondeu, “se você derramar o seu leite você não deveria chorar sobre ele, mas
você deveria pegar um pano, deveria passar sobre o leite e depois limpar o pano e depois ir pegar
mais leite”.
Para Fávero & Santos (2005) indubitavelmente, as famílias que se encontram em circunstâncias
especiais, promotoras de mudanças nas atividades de vida diária e no funcionamento psíquico de
seus membros, deparam-se com uma sobrecarga de tarefas e exigências especiais que podem
suscitar situações potencialmente indutoras de estresse e tensão emocional.
Para Tunali e Power (1993), é comum o achado de dificuldades das mães de crianças autistas em
prosseguir sua carreira profissional devido ao tempo excessivo da demanda de cuidados que a
criança necessita e à falta de outros cuidadores. Segundo este estudo, os autores concluem que o
papel central de satisfação e desempenho está relacionado ao fato de ser a mãe, enquanto a
definição de bom cônjuge no caso dos pais de crianças autistas é de alguém provedor de suporte
emocional e físico (Fávero & Santos, 2005, p. 361).
Segundo Koegel e cols (1992), as famílias de autistas revelam um nível geral alto de preocupação
quanto ao bem-estar de suas crianças depois que os pais não puderem providenciar mais cuidados
para elas (Fávero & Santos, 2005, p. 361).
O Grupo de Pais:
Experimente, como em uma receita, juntar pessoas com algumas fortes características em comum,
acrescente um ambiente adequado para o encontro, salpique companheirismo, tolerância e desejo
de trocar experiências – nem sempre saborosas. Temos, então, um grupo.
Ao nascer uma criança especial, nasce também uma família especial. Da mesma forma, o luto que se
faz pela criança que não veio – talvez tenha embarcado para a Holanda – se faz pela família que
deixou de ser.
Recebi um texto maravilhoso daquele que a pessoa programa uma viagem para a Itália, aí depois no
meio do caminho vai parar na Holanda, o quê que vai fazer? Vai se estressar, se desesperar, não, a
gente vai aproveitar o que tem de melhor na Holanda, então tem que aproveitar o que tem de melhor
no nosso filho né, eles tem muitas coisas boas também... (Mônica, em entrevista).
Todo o universo familiar se modifica. É comum ouvirmos relatos de comportamentos de reclusão e
interesses despertados para o conhecimento da doença. Em um só barco, todos entram: a criança,
seus pais, seus irmãos, seus avós, e seus amigos. Iniciam uma nova viagem rumo ao desconhecido.
Aprendemos que o choque inicial se mistura à culpa e ao medo. Os conceitos anteriormente
adquiridos, freqüentemente são reformulados, ocasionando novos conceitos sobre o significado da
doença, da relação pais e filhos, da sociedade.
A psicóloga fez o diagnóstico e disse que a Ingrid é autista. Eu levei um baita de um choque. Fiquei
assustada. Eu já estava desconfiada que ela tinha alguma coisa, mas daí ter certeza, é outra coisa.
Aí eu quis saber o porquê que ela é assim, o que tinha acontecido de errado. Eu comecei a me sentir
muito culpada, pôxa, a primeira filha e eu fiz tudo errado. Eu imaginava que podia ter sido algum
trauma que ela tinha sofrido. Alguma coisa tinha que ter acontecido para ela poder ter ficado
daquele jeito, isso tudo passava na minha cabeça. Se não era neurológico, nem genético, eu queria
achar algum fundamento sobre o caso dela. (Elis, em entrevista).
No processo de aproximação das famílias, nos deparamos ainda, com aquelas tornadas especiais a
partir da adoção de uma criança com o transtorno autista. Nestes casos, percebemos que a situação
de uma família constituída especial pelo nascimento pouco se modifica daquela formada pela
adoção. Nem sempre a condição da criança é conhecida anteriormente, o que faz com que o luto
pareça bastante similar.
Seu alheamento ao mundo chegava a tal ponto que, sensibilizados, resolvemos pesquisar o seu
passado, com a finalidade de desvendar a que ponto chegava o seu comprometimento (Marlene,
em entrevista).
Neste movimento, novas pessoas são formadas. Dificilmente observamos outra situação em que
tantas pessoas se modifiquem de forma tão acentuada como com o nascimento de uma criança
especial na família. É sobre o grupo familiar, neste processo de viagem rumo ao desconhecido, na
sua formação de família especial, que este texto pretende versar. Neste momento as vozes se
misturam, muitos falam ao mesmo tempo e compartilham a experiência de ter, em sua casa, uma
pessoa com transtorno autista.
O Grupo de pais de autistas: Inicialmente como uma reunião de pais, o grupo foi formado a partir
da intenção de apresentar o teor da pesquisa Autismo e Educação: a dialética na inclusão e buscar a
autorização destes para o acompanhamento de seus filhos durante o período escolar. Com
freqüência semanal, a reunião era composta de três mães, dois pais, três estagiários e a
coordenadora da pesquisa. Ao todo, nove pessoas se reuniam para trocar experiências. A temática
era aberta aos interesses que os pais apresentavam.
Com o tempo, outros pais foram participando das reuniões, até que, no primeiro semestre de 2003,
o GAAPE – Grupo Amigos do Autista de Petrópolis, foi criado. Mais tarde um pouco, em agosto
do mesmo ano, foi iniciado o processo de regulamentação da Organização Não-Governamental
GAAPE, no Município de Petrópolis – RJ, com o objetivo de prestar serviços de psicologia,
fisioterapia, terapia ocupacional, inclusão digital, e oficina de artes. Todos os serviços gratuitos e
sem fins lucrativos, destinados às pessoas com Transtorno Autista da região. Segundo um cálculo
aproximado baseado no último censo, Petrópolis possui atualmente2 114 pessoas acometidas pela
doença. Neste trabalho de pesquisa, entramos em contato com pelo menos dez pessoas com
Transtorno Autista, das quais oito freqüentam o ambiente escolar, seja especial ou regular. Sabemos
que ainda temos mais de cem pessoas por encontrar.
2 A pesquisa foi realizada entre os anos de 2001-2004.
Quem é o meu filho e como ele se comporta: a apresentação do filho como representação
pessoal / social dentro do grupo.
O Lúcio era uma criança absolutamente alheia a tudo o que se passava ao seu redor. Arredio e
defensivo. Repudiava qualquer contato físico, defendendo-se com pés, mãos, joelhos e mordidas.
Era literalmente impossível mantê-lo no colo por tempo razoável, bem como examinar o seu corpo,
seus membros, ou mesmo colocar as mãos em sua cabeça. Totalmente alheio, não manifestava
qualquer reação a doces, brinquedos, animais, crianças, etc. Vivia escondido embaixo das camas,
mesas ou atrás das portas. Mal andava, não mastigava (sua alimentação era somente liquidificada),
usava fraldas, não sorria nem chorava e não tinha controle dos seus organismos. Não atendia a
chamados ou a qualquer outro estímulo. Acreditava-se, inclusive, que fosse deficiente auditivo e
visual. Com as pernas geralmente entrelaçadas ao pescoço, emitia sons em forma de gritos, batia
muito no próprio rosto, babava-se durante quase todo o dia. À noite, não dormia antes das 3 horas
da manhã e despertava antes das 6 horas. Nesse período, irritado – talvez pelo silêncio dos que
dormiam – desarrumava e derrubava tudo o que estivesse ao seu alcance (Marlene, em entrevista).
Pergunte a qualquer pai ou qualquer mãe como é o seu filho e eles dirão como ele se apresenta e
como gostariam que fosse. Cada filho ou filha naquele grupo representa o passaporte para a
permanência daqueles pais ali e a possibilidade de ouvir e, principalmente, ser ouvido em queixas,
lamentações, desejos, angústias, idéias, planos. É por causa de cada filho ou filha que eles estão lá e
parecem não esquecer disto. A todo o instante, observamos um pai ou uma mãe falando de seu filho
e os outros escutando. Eles ouvem porque se vêem naquela narrativa. Ouvem porque parecem
sentir de forma muito semelhante o sentimento do outro, e o respeitam. Nenhuma situação parece
simples, corriqueira ou vulgar. A impressão que temos é a de que todos ou já passaram por aquelas
situações que vão sendo relatadas ou se preparam para vivenciá-las. Poderíamos pensar que muitas
dicas fossem distribuídas, como balas às crianças, mas percebemos que são as experiências vividas
as que mais ensinam.
Entendemos que, ao apresentar um filho ou uma filha, os pais apresentam a si mesmos, suas vitórias
e suas faltas. Se apresentam como parte integrante do primeiro grupo, que é a família, para que se
incluam como parte de outro grupo, o de pais de autistas.
A Busca de “Respostas”:
Eu expliquei para ele que ela estava muito no cantinho dela, distraída, não conseguia ficar atenta.
Ele me recomendou que eu colocasse ela na escola no outro ano, para ela poder conviver com
outras crianças, para melhorar o comportamento dela e passou o remédio Dogmatil para vê se ela
ficava mais ligada. Eu não gostei da consulta porque se não era nada não precisava de remédio nem
de fono. (Elis, em entrevista).
A luta travada pelos pais em busca de “respostas” às suas inquietações sobre o desenvolvimento
diferenciado de seu filho ou filha, também parece um marco nesta apresentação. Todos demonstram
enfrentar uma romaria de médicos, especialistas, profissionais que, de acordo com as suas queixas,
pouco explicam sobre os procedimentos terapêuticos a que seus filhos são submetidos, assim como
sobre a doença propriamente dita, nos casos em que são feitos os diagnósticos.
Nesta busca, um dos primeiros diagnósticos estabelecidos é o de surdez profunda. No entanto,
como explicar o fato de uma criança que não responde aos chamados e se mostra impassível aos
altos sons, demonstrar acalmar-se e até pedir que lhe cantem cantigas de ninar? Por estas e muitas
outras razões vivenciadas no recesso do lar, entendemos que os pais trazem consigo uma espécie de
sabedoria do que os seus filhos podem ou não ter.
Nós fomos para o Instituto Nacional dos Surdos-Mudos, lá que nós descobrimos que ele era
autista. É, tinha um... na porta do consultório tinha aquele papel das catorze características de
autismo né, aí o Carlos começou a ler e me cutucou para eu ler também, e começamos a enquadrar.
(Mônica, em entrevista).
Desta forma, o reconhecimento da doença nos filhos parece ser feito de forma gradual. Peça por
peça, o quebra-cabeça vai sendo montado e, para muito do que os seus filhos apresentam,
encontram respostas. Entendemos que estas respostas, principalmente no que se refere ao
Transtorno Autista, diferente de outras doenças, são de fato encontradas, não são dadas nem
oferecidas por terceiros, mas obtidas no seio da família, onde serão assimiladas, digeridas e
enfrentadas da maneira como se mostrarem capazes de fazê-lo.
Buscam o tratamento com médicos, psicólogos, fonoaudiólogos, pedagogos, e outros tantos
profissionais que se encontrem ao alcance de suas possibilidades.
Somente então, numa clínica aqui perto com uma fonoaudióloga, onde fizeram todos os exames com
ele, ela foi descartando um monte de doenças e síndromes, dizendo que ele não tinha nada destas,
com exceção de algumas características de Autismo, não todas, andar nas pontas dos pés,
ausência da fala e alguns movimentos estereotipados, foi então a primeira vez que tive contato com
a situação do autismo (Suelen, em entrevista).
Nem todos os tratamentos surtem os efeitos esperados e desejados pelos pais como nos mostra o
relato abaixo:
Participou de ludoterapia e acompanhamento com psicólogas e foi acompanhado por cerca de 3
anos por uma fonoaudióloga, mas não conseguimos nenhum resultado significativo (Dario, em
entrevista).
Nestes momentos, observamos a família e a equipe de profissionais apresentarem objetivos
diferentes para o tratamento de seus filhos. O distanciamento em relação ao tratamento parecia
aumentar o peso da responsabilidade sentida pelos pais.
Nesta hora não teve psicólogo que pudesse me ajudar, todos eles falavam que não podiam me
ajudar, que tinha acabado e quem me ajudou nesse momento difícil foi Deus. Nessa hora, a força do
homem se torna pequena. O que eles podiam fazer era dar uma injeção sossega-leão nele e levá-lo
para o hospital. E eu não queria isto para o meu filho e quando eu ligava para um neurologista, eles
diziam que era para eu internar o Gugu numa clínica para ele acabar os dias dele lá (Suelen, em
entrevista).
Observamos que este distanciamento favorecia a aproximação da família com o suporte afetivo que
a religião podia oferecer. Deus entrava em cena para prover o milagre que a medicina negava.
Foi uma época em que eu pensava que não ia agüentar, pensava em suicídio mas ao mesmo tempo
eu me chamava de covarde, porque eu estaria fugindo, eu estaria me dando a liberdade morrendo, e
estaria deixando o meu filho, então uma voz falava dentro de mim – ‘não faça isso’. Aí eu comecei a
pedir ajuda em igreja, eu não era de igreja, eu era do mundo, eu queria curtir a vida, queria carnaval,
queria ver tudo o que a vida tinha para oferecer, quando me vi nesta situação eu procurei uma
igreja (Suelen, em entrevista).
Notamos que esta crença amparava as famílias no cuidado e na educação de suas crianças
especiais. Fortaleciam-nas quando sentiam-se fracas, desanimadas e até desesperadas. Era o apoio
que não encontravam na sociedade. Acreditando que todos são irmãos, sentiam-se incluídas no rol
dos filhos de Deus.
A Educação:
Empenhamo-nos em aprimorar sua educação, ensinando-lhe o essencial para uma convivência
familiar, preparando-o para uma possível socialização.
Percebemos como uma das maneiras de enfrentamento da doença, as diferentes formas de educar.
Estimulação precoce, escolaridade, paciência no trato, atividades extra-escolares e cuidados em
tempo integral entram em discussão. Encontramos diferentes vias de acesso ao desenvolvimento dos
filhos, assim como diferentes níveis de acometimentos.
As atividades de vida diária demonstram ter importância primária. É preciso antes que o filho
aprenda a controlar esfíncter, a comer sozinho, a, pelo menos minimamente, cuidar de sua higiene
pessoal e a comunicar-se com os pais. Após esta etapa, parece surgir a importância da socialização
escolar e extra-escolar. Ainda que nem todas as escolas recebam estas crianças durante o período
regular, ou seja, muitas ainda adotam alguns dias da semana para que a criança “se prepare para
entrar na sala de aula”, o momento em que elas passam a freqüentar tal ambiente é decisivo no seu
bom desenvolvimento.
Neste curto espaço de tempo, Lúcio desvencilhou-se da maioria de suas estereotipias e de muitos
de seus distúrbios, respondendo satisfatoriamente às nossas expectativas: já não se auto-agride,
aprendeu a ir ao banheiro (a cerca de um ano já não usa fraldas), controla seus organismos – fezes
e urina, alimenta-se sozinho, atende aos chamados (é obediente), procura nossa atenção e carinho,
esqueceu completamente os incessantes gritos, pede, através de sinais, o que quer – água, coca-cola, doces, bolos, balas, mingau, etc. Interessante, vale frisar, que faz prevalecer a sua escolha
entre as coisas oferecidas, reage diante das situações, pede colo e abraça-nos, dorme a noite
inteira, anda, corre, sorri e chora. E, por final, está iniciando integração com outras crianças na
escola municipal. Mantém ainda alguns distúrbios, tais como: ocasionalmente, entrega-se a acesso
de euforia, não fala, às vezes, entrega-se ao alheamento (apesar de nos atender se chamarmos),
coloca saliva nas mãos e comporta-se como criança de idade bem inferior à sua (Marlene, em
entrevista).
Observamos que a aprendizagem formal só começa a mostrar importância depois que a criança está
socialmente adaptada e demonstrando ser bem cuidada pela escola, mesmo que o fato de ser
alfabetizada ou hiperléxica traga consigo um grau de desenvolvimento superior aos demais. Com
relação aos jovens autistas entre dezesseis e vinte e dois anos, talvez por apresentarem grau de
acometimento maior ou uma rotina confinada ao lar e com pouca socialização, percebemos que
grande parte da educação e do o afeto foi dada pela família.
Das oito famílias que participaram das reuniões, dois jovens apresentavam este quadro, até que,
com o GAAPE, começaram a sair de casa para algum tipo de tratamento após um período de pelo
menos dez anos (Sandra, em entrevista).
Da mesma forma que estes jovens cruzaram o portal de suas casas, seus pais e mães puderam
também desfrutar do convívio social.
O Futuro:
A gente fica se questionando quanto ao futuro: “E agora como vai ser?” e tudo mais... o tempo vai
ajeitando tudo, dá uma angustia muito grande, o Carlos esses dias estava falando que ele vai
comprar um apartamento e o aluguel daquele apartamento vai ser para o sustento do Camilo. Vai
deixar registrado em cartório e vai ser “imexível” aquele apartamento, já que a gente não tem
expectativa de que ele possa ter um trabalho para se auto-sustentar. A gente não quer que ele
seja... a gente sente na pele a dificuldade: são tratamentos caros, não temos, e ele tem necessidade
do medicamento, tem necessidade do tratamento, então é um peso muito grande para gente deixar
pra alguém assumir (Mônica, em entrevista).
O futuro a todos é incerto, mas no que se refere às famílias especiais, chega a ser angustiante. O que
será das crianças quando seus pais falecerem? Esta é a dúvida que ronda o imaginário destas
famílias. Cumpre necessário tornar os filhos cada vez mais independentes e autônomos para que
dependam menos de outras pessoas. Com a longevidade normal, as crianças autistas são temas de
preocupação para os seus pais.
A Bruna é uma pessoa que veio para me ajudar a cuidar da Ingrid (...) Ela vai ser uma pessoa que eu
vou poder contar. Eu estou criando a Bruna para isso. Eu explico que ela vai ter que cuidar da irmã.
Eu, um dia vou morrer e se a Ingrid for uma pessoa que não vai dar conta dos seus atos, tem que ter
uma pessoa para ficar com ela .(...). Porque a única pessoa que eu posso jogar essa
responsabilidade é para minha filha. (...) Mesmo se a Bruna casar e tiver filhos, eu queria que ela
entendesse que a irmã dela vai ser quase uma obrigação ela cuidar (...). Então, eu vou jogar toda
responsabilidade em cima da Bruna. Às vezes, até lá ela se casa e tem filhos e quem sabe os filhos
não ajudam a cuidar da tia. Eu falo isso porque nós que temos filho especial temos que pensar em
tudo. Por mais que nós não gostamos de pensar, é melhor pensar agora, porque mais para frente vai
causar mais dor ainda. Vamos ficar preocupados (Elis, em entrevista).
Tecem o futuro como quem prepara o presente. As famílias cuidam da maturidade de seus filhos
quando ainda são crianças porque conhecem as pedras do caminho, o custo do tratamento e os
riscos de uma interrupção, as oscilações no comportamento, a dependência, o isolamento.
Finalmente, acreditamos que diferentes são as formas de lidar com a situação futura; no entanto, a
preocupação existe de forma clara no imaginário destas pessoas. Para estas famílias, trabalhar por
uma sociedade mais inclusiva se apresenta como um exercício de amor aos seus filhos - preparar um
mundo em que eles possam viver com maior segurança, respeito e autonomia. Percebemos na busca
de cada pai e mãe, quer a inclusão de seu filho ou filha seja nos serviços de saúde, educação ou
naquilo que é comum a todo cidadão, que sua busca é também a de sua própria inclusão. Não
como alguém que fundamentalmente errou na concepção de seu fruto, mas como pessoas que,
conhecendo a fragilidade da condição humana, são capazes de aperfeiçoá-la.
Referências Bibliográficas:
Fávero, M. A., & Santos, M. A. (2005). Autismo Infantil e Estresse Familiar: uma revisão
sistemática da literatura. Psicologia Reflexão e Crítica , 18(3), pp. 358-369.
Goffman, E. (1985). A representação do eu na vida cotidiana (9ª ed.). (M. C. Raposo, Trad.)
Petrópolis, RJ, Brasil: Vozes.
Gray, E. D. (1998). Autism and the family: problems, prospects and coping with the disorder.
Illinois: Copyrighted material.
Koegel, R. L., Schreibman, L., Loos, L. M., Dirlich-Wilhelm, H., Dunlap, G., Robbins, F. R., et al.
(1992). Consistent sterss profiles in mothers of children whith autism. Journal of Autism and
Development Disorders , 22, pp. 205-216.
Mesibov, G. B., & Shea, V. (15 de maio de 2007). A cultura do autismo. (M. d. Vatayuk, Trad.)
Sprovieri, M. H., & Assunção Jr., F. B. (2001). Dinâmica familiar de crianças autistas. Arquivo
Neuropsiquiatria , 59 (2A), 230-237.
Thiollent, M. (1992). Metodologia da Pesquisa-Ação. São Paulo: Cortez.
Tunali, B., & Power, T. G. (1993). Creating satisfaction: a psychological perspective on stress and
coping in families of handcapped children. Journal of Child Psychology and Psychiatric and
Aallied Disciplines , 34, pp. 945-957.