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Londrina, 29 a 31 de outubro de 2007 – ISBN 978-85-99643-11-2
INSTITUCIONALIZAçãO, DERIVA E ENRAIZAMENTO: REFLEXõES SOBRE OS
PARADOXOS DA INCLUSãO SOCIAL DO DEFICIENTE MENTAL
Lineu Norio Kohatsu
Universidade Presbiteriana Mackenzie
Introdução
No presente trabalho proponho uma breve discussão sobre a inclusão social da pessoa com deficiência
mental, procurando refletir principalmente sobre alguns paradoxos presentes nesse processo. A
problematização proposta neste trabalho tem como ponto de partida a minha pesquisa de doutorado
(Kohatsu, 2005) cujo objetivo principal foi conhecer e compreender a relação que ex-alunos de escolas
especiais mantinham com os seus respectivos bairros.
A discussão sobre a inclusão social das pessoas com deficiência, ainda que seja anterior à Conferência
de Salamanca (1994), ganha impulso e repercussões concretas a partir das propostas apresentadas
nesse evento.
No contexto brasileiro pode ser observado o alinhamento da legislação educacional (LDBN nº 9394/96
(Art. 4º, III e Capítulo V, Art. 58), Plano Nacional de Educação (2001), Diretrizes Nacionais para a
Educação Especial na Educação Básica (2001) entre outros) com as propostas inclusivas, embora na
Constituição Federal de 1988 (artigo 208, III) já estivesse presente a orientação para educação escolar
de portadores de deficiência preferencialmente nas salas regulares de ensino.
A proposta de uma educação inclusiva têm repercutido positivamente no sentido de desafiar o educador
da classe comum a refletir sobre suas práticas e posturas como também tem provocado o professor da
escola e da classe especial a pensar sobre seu papel diante da nova conjuntura educacional.
A discussão sobre a inclusão social da pessoa com deficiência tem sido muitas vezes realizada a partir
de sua polaridade oposta e complementar, ou seja, a discussão sobre a exclusão. Esta, por sua vez, tem
sido compreendida no senso comum, como decorrente do atendimento em instituições especializadas.
Embora as críticas ao atendimento de crianças com deficiência em instituições especializadas tenham
crescido com o movimento da educação inclusiva, elas são muito mais antigas do que se possa imaginar.
Vygostsky (1997) em seu livro “Fundamentos de defectologia” já fazia críticas à escola especial por
afirmar que ela era anti-social e educava para a anti-sociabilidade (1997, p.84). Van der Veer e
Valsiner (2001) e Góes (2002) também comentam o posicionamento crítico de Vygosty à segregação
imposta pela escola especial quando fazem referência à obra do psicólogo soviético.
Embora Vygotsky reivindicasse que os muros das escolas especiais fossem derrubados para que os
alunos delas não fossem mais privados do contato social que necessitavam para o desenvolvimento, por
outro lado defendia a existência de uma “educação especial” que pudesse atender as especificidades
apresentadas por alguns alunos quando eles estivessem inseridos na escola comum (GÓEs, 2002,
p.110). Desse modo, não se tratava de escolher entre uma ou outra, mas oferecer as oportunidades de
socialização, desenvolvimento e aprendizagem proporcionadas pela escola comum e os recursos
necessários para atender as especificidades de determinados alunos.
As críticas à escola especial também podem ser encontradas mais recentemente nos trabalhos de Bueno
(2004), Ferreira (1998) e Mazzota (1997).
Ferreira (1998, p.13 ) e Bueno (2004, p.32) apontam ainda que no Brasil historicamente o
atendimento de crianças com deficiência tem sido realizado em grande parte pelas instituições
filantrópico-assistenciais com intuito de prestar serviços a uma camada da população até então não
assistida pelos serviços públicos. Essa forma de atendimento, contudo, resultou numa contradição de
difícil superação. Se por um lado, as instituições incorporaram/incluíram crianças excluídas do sistema
educacional regular, por outro, esta inclusão em um sistema paralelo resultou na exclusão da corrente
principal. Desse modo, a expansão da educação especial nesses moldes significou simultaneamente
democratização e manutenção da exclusão da cidadania por situar essa população nas amarras do
assistencialismo e da caridade pública.
Bueno (2004, p.94-95) aponta também a dependência como uma das conseqüências mais perversas da
institucionalização, citando o caso de Louis Braille que, apesar de seu talento e capacidade, nunca
conseguiu de viver fora da instituição.
Karaiannis, Stainback, W. e Stainback, S. (1999) e Satow (s.d.) alertam também para as
conseqüências negativas da institucionalização como a dificuldade para se adaptar à vida fora das
instituições, reforçando críticas anteriormente realizadas por Goffman (1987) às instituições totais.
Se por um lado a escola especial vem sendo criticada pelo fato privar seus alunos do convívio com as
demais crianças, por outro, a escola comum não escapa das críticas na medida em que reproduz em seu
interior os mecanismos de exclusão das diferenças.
Olhando por esse prisma, a escola especial e a escola comum não são necessariamente antagônicas,
mas complementares, ambas funcionando a partir da mesma lógica da seleção, classificação e
homogeneização. Nesse sentido, mesmo que as escolas especiais fechem suas portas e seus muros
sejam derrubados, isso não significará necessariamente a inclusão dos alunos com deficiência mental,
pois, se não houver uma transformação na lógica em que opera a escola regular, ou melhor, o sistema
educacional, o que passará a ocorrer será o que Amaral (2002, p.240) denominou como “inclusão
marginal” ou uma segregação mascarada.
Além da inclusão escolar, o trabalho também tem sido visto como um dos importantes meios para
inclusão social das pessoas com deficiência. Os benefícios do trabalho como o aumento da auto-estima,
independência financeira, mudança de status na família e na sociedade, autonomia etc. já foram
exaustivamente apontados por muitos autores (Loureiro, 1989; Amaral, 1994; Goyos, 1995, Giordano,
2000; Meletti, 2001 entre outros). Todavia, tal como na educação, a profissionalização dos deficientes
mentais ao mesmo tempo que representa uma possibilidade de inclusão social pode implicar também no
seu contrário. No Brasil, a preparação profissional, assim como a educação, tem sido realizada por
instituições especializadas que acabam muitas vezes não promovendo a inserção no mercado
competitivo e levando à permanência dos aprendizes nas oficinas de trabalho protegido, tal como
ocorreu com dois dos participantes da pesquisa (Kohatsu, 2005). Todavia, no âmbito do trabalho,
assim como na educação, há alguns anos já vem sendo propostas alternativas ao modelo das oficinas
protegidas, como por exemplo, a idéia do emprego apoiado (ARAÚJO, ESCOBAL e GOYOS, 2006,
KOHATSU, 1998, SASSAKI, 1997).
Ainda que ocorra a inserção no mercado competitivo e conseqüentemente aumentem as chances do
trabalhador com deficiência vir a se tornar mais independente, isso não implicará necessariamente numa
inclusão social plena.
Amaral (1995) ao discutir a integração aponta para a existência de quatro diferentes níveis: físico,
funcional e comunitário/societal. O primeiro nível refere-se aproximação física, a convivência nos
espaços comuns que, apesar do risco de gerar o fortalecimento de estigmas, pode despertar a
curiosidade e levar ao “desejo de conhecer mais e melhor” o outro. Desse modo, a autora não deixa de
apontar para o aspecto positivo do contato, apesar da ambigüidade presente, pois entende que o
“tornar visível” é o primeiro e necessário passo em direção à integração. O segundo nível de integração
refere-se à redução da distância “funcional”, ou seja, “as pessoas podem e devem ter uma atividade em
comum” (AMARAL, 1995, p.105), ainda que utilizem estratégias e equipamentos diferenciados e
desenvolvendo essas atividades em ritmos diferentes. No terceiro nível, o que a autora denomina como
“integração social” (AMARAL, 1995, p.106), espera-se que ocorra a redução da distância interpessoal
em vista da efetivação da comunicação entre as pessoas. Desse modo, espera-se também que a
interação reduza o eventual sentimento de isolamento por parte da pessoa com deficiência. O quarto
nível de integração referindo-se às mudanças no âmbito político e institucional, tanto na esfera pública
como na privada e ações que visem eliminar os obstáculos: legislação, investimentos econômicos em
serviços de reabilitação, eliminação de barreiras arquitetônicas, reciclagem profissional entre outras
(AMARAL, 1995, p.108).
A discussão realizada por Amaral aponta para a necessidade de se pensar não somente na dimensão
objetiva da integração, mas também nos aspectos subjetivos que estão implicados. Nessa perspectiva,
pensar a inclusão/integração implica necessariamente em dar voz ao sujeito, conhecer e dialogar sobre o
seu ponto de vista.
Método
A idéia foi propor a três participantes Luzia (23 anos), Márcio (24 anos) e Mário (41 anos) que, em
posse de uma câmera de vídeo, mostrassem e contassem sobre seus respectivos bairros, os lugares e as
pessoas que conheciam, algumas experiências vividas etc. Foram utilizados como critério de escolha
dos participantes a independência na locomoção, que morassem desde criança no bairro e que
demonstrassem interesse na participação da pesquisa. A pesquisa ocorreu em três bairros do Município
de São Bernardo do Campo: a favela Boa Vista, a Vila Rosa e o Jardim das Orquídeas. As gravações
não seguiram um roteiro pré-estabelecido, sendo realizadas de modo espontâneo pelos participantes na
medida em que caminhávamos pelas ruas do bairro.
Discussão
A primeira experiência (Luzia) foi considerada como piloto, sendo a gravação realizada em um único
encontro, com cerca de quinze minutos de duração. A segunda (Mário) ocorreu em cinco encontros e
aproximadamente 60 minutos de gravação. A terceira e última (Márcio) foi realizada em seis encontros
e aproximadamente 90 minutos de gravação.
Os vídeos produzidos pelos participantes, assim como gravações em áudio realizadas durante as
caminhadas e as minhas anotações de campo fizeram parte do material de pesquisa.
A partir do material produzido pode se observar que, apesar da singularidade de cada experiência,
muitas semelhanças também existiram nos trabalhos. Luzia e Márcio, por exemplo, realizaram registros
de suas casas atuais e também de suas antigas casas situadas no mesmo bairro, tendo a oportunidade
de se reportarem ao passado e resgatarem parte de suas histórias. Mário, apesar de não ter feito o
mesmo, ao gravar algumas ruas do bairro, também pode recordar de passagens de sua infância como a
lembrança do irmão e seus amigos soltando pipa e do seu sentimento de rejeição. Durante a gravação
de uma conversa com um de seus vizinhos, pode lembrar também da época em que desaparecia no
bairro com a sua bicicleta nas raras oportunidades em que saía de casa. Outra coincidência interessante
no trabalho dos participantes foi a gravação das quadras de seus respectivos bairros e também o
registro das igrejas. Na discussão mais aprofundada que realizei na ocasião da tese, levantei a
possibilidade de considerar esses dois locais como indicadores de sociabilidade, ou seja, a quadra
como espaço de exclusão (pois, ainda que filmada não era espaço freqüentado por eles) e a igreja
como espaço de inclusão. Ainda em relação à igreja, foi possível notar como esta comparece como
elemento significativo em momentos diferentes da vida dos participantes. No caso de Márcio e Luzia
como um elemento importante da história de vida e para Mário como o espaço de socialização mais
significativo de seu bairro na atualidade.
A partir do meu contato pessoal com os bairros, dos relatos e das gravações foi possível notar como
cada bairro oferecia condições e oportunidades diferenciadas de socialização aos participantes. No
caso de Luzia, pelo que pude notar, a relação que a sua família mantinha com espaço comunitário da
favela, organizado em torno da igreja, foi uma rica oportunidade de socialização e desenvolvimento de
sua independência. No caso de Mário, o entorno formado por lojas e serviços mostrou-se atrativo e
oportunidade para ele estabelecer relações sociais em seu bairro, embora, como dito anteriormente, a
igreja tenha sido considerada o espaço de socialização mais significativo. Em relação a Márcio, que dos
três é o mais jovem e o que mais recentemente começou a explorar sua independência, não foi possível
notar uma vinculação com as pessoas do bairro, a não ser aquelas já conhecidas por intermédio da
escola especial. Diferentemente de Mário, Márcio valeu-se de sua condição para fazer uso do
transporte público e investir em relacionamentos fora do bairro, mas no universo composto
exclusivamente por amigos da oficina abrigada. Todavia, a manutenção do vínculo com o universo da
educação especial não é exclusivo de Márcio, mas pode ser observado também nas relações de Mário
e inclusive Luzia, a única dos três participantes que estava formalmente desvinculada da oficina abrigada
por ter sido contratada por uma empresa comum. Poderia me arriscar a dizer que a oficina abrigada
substituiu a escola especial como espaço significativo de socialização, podendo ser considerada, de
certa forma, como uma extensão da educação especial. Este é um dos aspectos importante para ser
refletido – a suposta independência e autonomia das pessoas com deficiência mental, adquirida ou mais
exercitada após a saída da escola especial não é garantia de uma inclusão social plena, pois a
dependência desse universo permanece mesmo com as portas da instituição abertas, provavelmente
pela dificuldade em estabelecer sozinho novas relações sociais em outros espaços. Esse dado nos
obriga a repensar o conceito de instituição e institucionalização, assim como seus efeitos na constituição
da identidade, tal como discutido por Goffman (1987) e Foucault (1988). A instituição, desse modo,
não se restringe a espaços físicos mais ou menos segregadores, mas a práticas que determinam modos
de subjetivação e desenvolvimento cada vez maior da dependência. Assim, mesmo libertos dos muros
concretos da instituição, os egressos perambulam solitários, ficando à deriva, sem rumo tal como a
Stultifera Navis (FOUCAULT, 1995).
A institucionalização internalizada e subjetivada por tantos anos torna-se uma das barreiras mais difíceis
de serem transpostas para que a inclusão social se efetive. Desse modo, não basta destrancar portas e
derrubar muros, mas pensar sobre novas possibilidades de enraizamento (WEIL, 1979) e vinculação
social.
De modos e níveis diferentes, os três participantes revelaram as dificuldades e as possibilidades de
constituírem novas relações sociais além do universo “especial”. Se a tarefa se mostra difícil de ser
realizada sozinha, há que se pensar em quem poderia ser o parceiro mais indicado para o êxito dessa
empreitada.
As experiências dos três participantes da pesquisa mostraram que qualquer pessoa poderia se tornar um
efetivo colaborador: o vizinho, um amigo mais experiente, os companheiros da igreja e principalmente a
própria família. Embora esta seja considerada muitas vezes como superprotetora e impedidora do
crescimento dos filhos, a família pode exercer também o papel fundamental de ponte para lançá-los à
vida, tal como mostraram Márcio, Luzia e Mário. Assim, a ambivalência observada nas famílias
(AMARAL, 1995, OMOTE, 2001, YAEGASHI, 2001) pode ser transformada e servir como
alavanca importante para a inclusão social.
A escola, por sua vez, assim como a família, apresenta suas contradições. Se por um lado apresenta em
seu discurso a preocupação com a independência e a autonomia, por outro, cria mecanismos para
justificar a sua existência e assim perpetua a necessidade de manter os alunos sob seu alcance e sob sua
supervisão.
As novas perspectivas da educação inclusiva não significam necessariamente uma ameaça à existência
dos profissionais que atuam na educação especial, mas certamente exige um novo posicionamento frente
às novas demandas. E uma das possibilidades de atuação é justamente contribuir para a ampliação das
fronteiras e criar estratégias de apoio à inclusão.
Neste trabalho não tive a pretensão de apontar caminhos para a efetivação da inclusão social das
pessoas com deficiência mental, mas somente refletir sobre as contradições, ambivalências e
ambigüidades inerentes ao papel de cada um dos atores que formam esse processo. Mas, considero
que o mais importante, sem dúvida, foi poder ouvir e dialogar com os próprios protagonistas dessa
jornada.
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