http://www.psiquiatriainfantil.com.br/congressos/uel2007/177.htm |
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Londrina, 29 a 31 de outubro de 2007 – ISBN 978-85-99643-11-2
A APRENDIZAGEM DE LíRIO: MOMENTOS DA MINHA FORMAçãO EM
EDUCAçãO ESPECIAL
Jalusa Oliveira da Silveira1
Universidade Federal de Santa Maria
1 Acadêmica do 8º semestre do Curso de Educação Especial da Universidade Federal de Santa Maria. E-mail:
jalusa_o@hotmail.com
RESUMO
Reconhecer o estágio e o processo de interação educador especial e aluno com deficiência como
um momento de aprendizagem é o que este texto busca apresentar. A prática refletida no texto
evidencia o papel do educador enquanto mediador das construções da criança através da prática
pedagógica de estimulação essencial, que tem como elemento de fundamentação o desenvolvimento
e a aprendizagem da criança, sendo mediada pelo outro e pela musicalidade. Conclui-se ainda, com
a reflexão da prática, que as experiências de estimulação essencial ampliam as possibilidades de
desenvolvimento cognitivo, afetivo e motor de uma criança com Síndrome de Down, da mesma
forma que se constituem em processo de formação do educador especial. Evidencia-se ainda o
papel do atendimento em estimulação essencial como dinamizador das relações familiares com a
criança.
O processo de reflexão da prática pedagógica presume a análise por meio da pesquisa, sendo o
educador aquele que avalia tanto a intencionalidade, como os processos de mediação que
organizam a ação de desenvolvimento e aprendizagem do sujeito-criança que está em processo de
aprendizagem. O presente trabalho vai, nessa perspectiva, buscar contar e refletir a prática
pedagógica de uma educadora especial em formação, considerando a sua prática educativa em
torno da intencionalidade e da organização do atendimento pedagógico com uma criança de seis
meses, com síndrome de Down, que será chamada pelo nome fictício de “Lírio”2.
O registro da prática pedagógica em Educação Especial, que está se propondo apresentar neste
documento, se insere na modalidade de estágio3, sendo parte da formação e, ao mesmo tempo, no
projeto de pesquisa e extensão em Estimulação Essencial4 do NEPES (Núcleo de Ensino Pesquisa
e Extensão em Educação Especial) da Universidade Federal de Santa Maria.
2 Observa-se que o nome fictício dado ao aluno em questão é o nome de uma flor, esta escolha deu-se pelo fato
de ser esta uma flor que possui um número fixo de pétalas, o que as torna idênticas. No entanto, cada Lírio possui
uma beleza única, uma peculiaridade, o seu lugar e processo de crescimento lhes são próprios, assim como a
singularidade dos registros humanos que lhe são dados.
3 Disciplina de Estágio Supervisionado para o Aluno com Déficit Cognitivo, recebendo orientação da Professora
Ms. Leandra Bôer Possa.
4 Projeto em Estimulação Essencial, coordenado pela Professora Drª Maria Alcione Munhoz e Leandra Bôer
Possa, que tem por objetivo acompanhar e atender pedagogicamente pela estimulação essencial, crianças de 0 a 3
anos e 11 meses nascidas de alto risco, prematuro e ou com baixo peso extremo no Hospital Universitário de
Santa Maria, bem como crianças com diagnóstico de síndrome.
Esta prática pedagógica em Estimulação Essencial tem o propósito de contribuir para o crescimento
e desenvolvimento de “Lírio”, que quando começa o atendimento pedagógico com seis meses de
idade, necessita de uma proposta em estimulação baseada nas trocas sociais e afetivas. Segundo as
diretrizes do MEC/SEESP entende-se por Estimulação Essencial:
Conjunto dinâmico de atividades e de recursos humanos e ambientais
incentivadores que são destinados a proporcionar à criança, nos seus
primeiros anos de vida, experiências significativas para alcançar pleno
desenvolvimento no seu processo evolutivo.
Sob esta perspectiva, a família e o educador desempenham importante papel para o
desenvolvimento global da criança, ou seja, para a sua interação social e desenvolvimento cognitivo.
Considerando a proposta de atendimento pedagógico de “Lírio” compreende-se que seu processo
de aprendizagem e de desenvolvimento, como ser total, singular e integral perpassa pelos processos
de interação com a família, o educador especial e outros, pois é neste processo que ele aprende e
apropria-se construtivamente de conhecimentos, sentimentos, movimentos e comportamentos que
irão orientar sua ação e pensamento no mundo.
Esta perspectiva é esclarecida por Vygotsky, que considera que o processo de apropriação
construtiva de conhecimentos, sentimentos, movimentos e comportamentos de “Lírio”, se dão pela
sua ação no mundo, pois ao mesmo tempo em que transforma a realidade é capaz de construir a si
mesmo. Neste sentido, Vygotsky também afirma que este processo de construção de si mesmo, que
esta sendo construindo pelo aluno é um movimento que só acontece na relação com o outro.
O papel do educador especial ganha ênfase no trabalho com “Lírio” quando da relação com o outro
ele é capaz de se apropriar e construir a realidade para si, pois apreende e utiliza-se de
instrumentos, ferramentas e da linguagem. Ou seja, quando mediado pedagogicamente, percebe que
suas ações realizadas no mundo podem ser por ele interiorizadas, pois como afirma Vygotsky
[...] o aprendizado desperta vários processos internos de desenvolvimento,
que são capazes de operar somente quando a criança interage com pessoas
em seu ambiente e quando em cooperação com seus companheiros. Uma
vez internalizados, esses processos tornam-se parte das aquisições do
desenvolvimento independente da criança. (1998, p. 117-118)
Nesse sentido, a minha prática pedagógica tomou como premissa o conhecimento do
desenvolvimento infantil e, tendo em vista o estudo e as observações continuamente realizadas, me
coloco como pesquisadora da própria prática, ou seja, levantando reflexões sobre o meu
verdadeiro papel enquanto educador e, por vez, mediador dos processos de construção da criança
que é atendida neste programa de estimulação.
Tendo em vista que esse atendimento tem como sujeito um bebê com Síndrome de Down, e
considerando que o período em que ele se encontra é o período fundamental para marcar o
desenvolvimento social, emocional e cognitivo, foi pensada uma proposta que leva em conta os
diferentes modos de aprendizagem da criança, o aprofundamento de vínculos afetivos com os pais,
bem como seu desenvolvimento integral.
“Lírio” tem características próprias da síndrome, no entanto de forma bastante singular se distingue
por um potencial que surpreende a cada encontro, tem grande capacidade de percepção,
continuamente revelando seu esforço para compreender o mundo e construir conhecimentos novos.
Diante desse sujeito sugeri, com base na musicalidade, uma proposta de atendimento que visasse
explorar três grandes áreas: motora, cognitiva e sócio afetiva. No aspecto motor surpreendeu,
desde o inicio do atendimento, pois com seis meses já tinha controle da cabeça, sentava com apoio,
apresentava certa coordenação visual-motora, com as mãos apreendia, soltava e levava objetos à
boca, transferia de uma mão para outra e demonstrava um grande potencial para sentar sozinho e ao
ser colocado em decúbito dorsal ensaiava os movimentos do engatinhar. Essas foram então, as
habilidades motoras que requeriam ser colocadas como objetivo para o atendimento pedagógico,
incluindo-se ainda o estímulo de atividades musculares, como massagens, tração e retração de
força, como meio para o fortalecimento do tônus.5
No aspecto cognitivo o desenvolvimento de “Lírio” se apresentava, aos seis meses, com uma
grande capacidade de sensações que originavam as percepções, sendo estas articuladas com
movimentos corporais, se caracterizando por um conjunto organizado e freqüentemente repetidos,
sendo reconhecidas, suas ações, em diversos comportamentos e diante de diversas situações6.
Acompanhava a mãe, a mim e aos objetos com os olhos, continuando a olhar na mesma direção até
que os objetos escondidos reaparecessem, seguia a direção da voz e de objetos sonoros emitindo
balbucios. Diante deste quadro, estabeleceu-se como objetivo a ampliação das percepções e
relações com o mundo e para tanto, utilizando-se de recursos que pareciam ser interessantes para
ele, como músicas infantis e brinquedos7 sonoros, coloridos e com texturas.
Quanto ao aspecto sócio afetivo verificava-se que “Lírio” possuía uma ligação emocional com a mãe
e apresentava-se aberto a criação de vínculos afetivos8 com outras pessoas, tendo sido muito fácil a
minha relação com ele. Identificava objetos que lhes pertenciam, a mãe como instrumento de
aconchego e de provimento do alimento, expressava através do choro ou do sorriso o gostar e o
não gostar. Percebia no contexto das relações sociais pessoas próximas e pessoas estranhas,
respondendo com movimentos corporais e chorando quando era deixado sozinho. Tendo em vista
estas habilidades já construídas propôs-se pedagogicamente a ampliação dos vínculos sociais e
afetivos com relação à família, tendo esta o papel de cooperar, criando momentos em que as
atividades do atendimento sejam refeitas no âmbito familiar.
5 Os objetivos na área motora são reforçados pelo atendimento terapêutico em fisioterapia, o que se torna muito
importante para o desenvolvimento de um trabalho interdisciplinar.
6 Segundo Piaget esse conjunto organizado se refere ao conceito de esquema de ação e por isso de
desenvolvimento.
7 O brinquedo se constitui algo fundamental para o desenvolvimento e educação da criança. Brincando ela
exercita a socialização, experimenta desafios, investiga e conhece o mundo de maneira espontânea. Além disso,
desenvolve habilidades motoras e cognitivas.
8 O vínculo aqui tem, para mim, o conceito de elo que uni os indivíduos, especialmente considerando que amar e
ser amado é uma das grandes necessidades humanas, evidenciando que todos desejam ser aceitos
incondicionalmente como são. Além disso, a aprendizagem que ocorre a partir das interações sociais está
impregnada de afetividade, o que gera o estabelecimento de fortes vínculos.
Como a música exerceu o papel de recurso mediador dos atendimentos, percebeu-se que poderia
exercer grande influência nas relações sociais e familiares do “Lírio”, bem como no seu
desenvolvimento, pois é um processo contínuo de intercâmbio de experiência entre pais, educadores
e criança.
Tendo definido os objetivos da proposta pedagógica com “Lírio”, a música como elemento
dinamizador da mediação de suas aprendizagens é considerada como uma linguagem que esta
entrelaçada à ampliação perceptiva, à descoberta de sons e silêncios, à identificação e associação
de pessoas, animais e objetos, à expressão de afetividades, emoções e movimentos corporais, que a
musicalidade incita.
Neste sentido, a musicalidade9 e o desenvolvimento desta em “Lírio” se constituiu de atividades
marcadas pela afetividade, na qual serve como estímulo para o desenvolvimento global da criança,
assim como pode ser grande aliada à integração familiar e reforço dos laços afetivos.
9 A musicalidade da criança não se dá somente pela escuta de músicas em um CD, a música é composta por sons
e por ausência de sons, dessa forma, todos os sons e silêncios se constituem em linguagens importantes para a
aprendizagem, caracterizando um processo criativo e de criação.
Por isso pôde identificar, experimentar e imitar, movimentar-se e perceber. Isto ficou claro em um
dos relatos do atendimento em que, com musicas clássicas infantis, “Lírio” percorre o espaço com
ritmo e destreza corporal para encontrar bolhas de são que eram jogadas. Parte do relato que
expressa esse elemento do desenvolvimento global pode ser observado a seguir:
Fiquei em absoluto silêncio, somente enchendo o quarto de bolhas. O Gabriel
seguia atentamente com os olhos e se contorcia inteiro para tentar alcançá-las, foi um momento de concentração e encantamento, ele sorria quando as
bolhas estouravam em seu rosto. Por alguns minutos permanecemos nesse
ritual de descobertas, onde ele tentava imaginar como aquilo flutuava, era
tão leve: “O que será que tem ali dentro?”.
Observei, ao longo dos atendimentos, que as conquistas dessa criança não estão somente nos
avanços intelectuais ou físicos, mas no afeto, num sorriso, num momento de poder ignorar qualquer
limitação orgânica que venha a caracterizá-la como deficiente.
A família que recebe um novo membro, diferente do que ela imaginou durante os nove meses de
gravidez, nem sempre se encontra estruturada emocionalmente para oferecer um ambiente favorável
à criança, sendo necessário rever antigos desejos e sonhos em relação ao filho. Para isso, a
orientação e observação da família durante o atendimento de estimulação essencial foi fundamental,
clareando à família idéias de que realmente não se pode mudar a condição genética do seu bebê,
entretanto pode-se dar a ele o ambiente e o amor necessários para o desenvolvimento de todo seu
potencial. Isso pode ser observado num dos relatos, a seguir:
Quando percebi, a mãe do “Lírio” nos observava pela porta entreaberta e me
parecia sensivelmente tocada. Não sei há quanto tempo ela estava lá, mas
estava entusiasmada e sorrindo ao ver o que seu bebê fazia. Em seguida ela
chamou o pai para presenciar também aquele momento.
Como educadora especial em formação, venho aprendendo o papel que posso exercer como
mediadora das construções de aprendizagem e desenvolvimento da criança, compreendendo e
conhecendo o universo infantil de cada uma. Ao mesmo tempo, a partir da ação pedagógica que
exerço, posso possibilitar a ampliação das experiências que ajudam a criança a desenvolver seu
potencial de aprendizagem e de inserção no mundo social e cultural em que vive.
Por fim, aprendi na experiência que vivi e ainda vivo com “Lírio” a acreditar no desenvolvimento e
na potencialidade infantil, percebendo que muitas vezes estas estão escondidas por detrás de
rótulos, sobretudo no caso de crianças com necessidades especiais. Percebi que a prática educativa
deve buscar situações de aprendizagem que respeitem o tempo de cada criança, mas sendo a
proposta pedagógica aquela que antecipa suas potencialidades de aprendizagem.
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