http://www.psiquiatriainfantil.com.br/congressos/uel2007/190.htm


Londrina, 29 a 31 de outubro de 2007 – ISBN 978-85-99643-11-2

DESENVOLVIMENTO MOTOR INFANTIL: CONCEPÇÃO DA ABORDAGEM DOS SISTEMAS DINÂMICOS
Virlaine Bardella Lopes
(Universidade Federal de São Carlos – UFSCar)
Maria Stella Coutinho de Alcântara Gil
(Universidade Federal de São Carlos – UFSCar)


RESUMO

Há algum tempo temos nos questionado se aspectos como convívio familiar, habilidades sociais, tipos de brinquedos poderia estar, de algum modo, influenciando o desenvolvimento motor normal do lactente. O presente ensaio teórico teve como objetivo desenvolver uma reflexão sobre a abordagem dos sistemas dinâmicos e a sua contribuição para a avaliação do desenvolvimento motor. Buscou discutir o papel da avaliação do desenvolvimento motor e as novas perspectivas com a visão dinâmica deste aspecto do desenvolvimento do bebê. Analisou desde os conceitos teóricos da abordagem e sua implicação prática. 

Introdução

A forma e o padrão das mudanças no desenvolvimento motor de um lactente, associando os achados a bases teóricas, busca contribuir com programas de prevenção primária e secundária, como por exemplo, os programas de triagem. Compreendendo as mudanças do desenvolvimento motor normal, entenderemos com precisão o ponto limítrofe entre comportamentos motores que caracterizam as diferenças próprias de um indivíduo e os comportamentos que caracterizam situações patológicas no organismo ou no ambiente a que este indivíduo está inserido. A partir destas informações é possível estabelecer práticas educativas específicas para a necessidade do lactente, respeitando as características próprias do mesmo, seja a respeito do seu organismo, ou da realidade do ambiente no qual ele convive. Este programa de práticas educativas seria o que a literatura de reabilitação denomina como estimulação precoce. A Abordagem dos Sistemas Dinâmicos tem contribuído teoricamente para o conhecimento do desenvolvimento motor normal. A visão da influência decisiva que o ambiente e a tarefas exercem sobre a aquisição de habilidades motoras comprovou a necessidade de investigação a cerca da situação familiar, estrutura residencial e mesmo formação acadêmica não só dos pais, mas de todos que compartilham do dia-a-dia do lactente. Uma avaliação mais ampla e com maior envolvimento familiar é importante para a correta interpretação dos resultados. Desta forma, ampliamos a visão terapêutica, possibilitando não apenas a intervenção nos aspectos motores do desenvolvimento infantil, mas também as possibilidades de independência funcional e relacionamentos sociais que este aspecto motor oportuniza, apresentando-se tal visão de relevância social e terapêutica. Oliveira (2004) conduziu um estudo identificando que as transformações urbanas ocorridas na cidade determinaram novos usos aos espaços, comprometendo o desenvolvimento motor, social e perceptivo. Santos (2001) e Lopes (2003) evidenciaram que a influência de práticas maternas interfere na aquisição de habilidades motoras. Zamberlan (2002) evidenciou que as práticas maternas também influenciam o desenvolvimento social do lactente. Portanto, o desenvolvimento motor, social e perpectivos, citados nos trabalhos constituem sistemas que são possíveis de sofrerem alterações pelo ambiente. A realidade da rotina nas grandes cidades oferece para os lactentes menores espaços físicos de exploração. Esta rotina afeta o desenvolvimento motor, isto é, novas exigências são impostas ao desenvolvimento do lactente.

Desenvolvimento

Quando elementos de um sistema trabalham juntos, certos comportamentos ou propriedades que emergem não podem ser preditos a partir de elementos separados. Um novo comportamento é construído dependente do input de todas as contribuições do sistema. Bernstein (1967, apud PIPER & DARRAH, 1994) transmitiu para o movimento humano estas considerações físicas. Através de seus estudos em neurofisiologia, o autor observou que as articulações e os músculos nunca trabalham isoladamente, mas sim em padrões coordenados. Bernstein postulou que o cérebro controla grupos musculares melhor do que unidades musculares. Ele sugeriu que a sinergia muscular por si só é capaz, de forma autônoma, de modificar um movimento independente de, ou pelo menos não totalmente controlado por centros superiores do sistema nervoso central, ou seja, um grupo de músculos, ossos e tendões podem modular um comportamento motor sem receber instruções do córtex cerebral. A abordagem dos sistemas dinâmicos foi desenvolvida a partir de uma estrutura funcional. Dentro desta estrutura, o comportamento por si só pode afetar e modificar o resultado do comportamento. Este modelo teórico exemplifica um sistema feed-forward que é autocorrigido, ou seja, todos os fatores que contribuem para o comportamento motor são importantes e exercem uma influência no resultado. Nesta visão, o postulado que nós aprendemos na formação acadêmica sobre “monopólio” que a maturação do sistema nervoso central exerce sobre a aquisição de habilidades motoras não é real. O nível maturacional do sistema nervoso central é reconhecido como um importante componente para o sucesso de uma aquisição motora, mas não é o único fator. Por exemplo, para um lactente realizar o movimento de alcance de um objeto, além do comportamento motor, influencia no movimento, o estado emocional do lactente, o grau de motivação, o cognitivo, a postura do tronco, a força muscular e as alavancas biomecânicas. A forma, o tamanho e o peso do objeto também determinam como a habilidade motora será executada. As propriedades do objeto representam parte da tarefa e representam informações críticas em determinar o tipo de preensão que o lactente escolherá; a posição dos braços para garantir estabilidade; e a trajetória do alcance. Todos estes componentes são exigidos para o alcance de um objeto. Cada fator contribui para o padrão de movimento que o lactente utilizará para pegar o objeto. Uma mudança em qualquer um dos fatores poderá modificar a estratégia motora utilizada para alcançar e pegar. Os comportamentos motores são um produto da contribuição de todos os subsistemas; inclusive pela tarefa. O mesmo comportamento motor pode ser executado em mais de uma forma, dependendo das restrições impostas pela tarefa. No alcance, por exemplo, as características físicas do objeto fornecem as restrições da tarefa e ajudam a determinar as estratégias motoras para o movimento de alcance e preensão empregados pelo lactente. Portanto, a tarefa surge como um componente integral do sistema. O sistema exibe auto-organização. Bernstein (1967, apud PIPER & DARRAH, 1994) afirmou que todos os comportamentos motores não são dirigidos de forma intrínseca pelo sistema nervoso central no formato feedback. Existem outros mecanismos que modulam os comportamentos motores. Estes mecanismos se dividem em mecanismos de controle motor horizontal e mecanismos de controle vertical, este constituído pelas vias nervosas que se finalizam no córtex cerebral. Os mecanismos de controle motor vertical oferecem instruções mínimas para regular ou iniciar as capacidades do sistema, mas a harmonia e as correções do movimento podem ser realizadas pelos mecanismos de controle horizontal, por exemplo, grupos musculares, articulações, ligamentos. Os subsistemas podem desenvolver-se com a ausência de sincronismo. Os fatores que influenciam e modificam o comportamento motor podem não desenvolver-se no mesmo ritmo. Como resultado, qualquer fator pode tornar-se “ritmo-limitante”, prevenindo o sistema de gerar um comportamento motor específico. O sistema motor, as estruturas físicas do lactente, o ambiente e a tarefa contribuem para um eventual comportamento motor, independente do córtex cerebral. O sistema é auto-regulador e exerce limites no repertório motor. Portanto, quais são os fatores ou as restrições que ou limitam ou modificam os comportamentos motores? Segundo Newell (1985), identificamos três diferentes níveis de restrições. Embora eles sejam discutidos separadamente, eles não devem ser vistos como autônomos, porque é a interação entre eles que produzem comportamentos. As restrições orgânicas constituem as limitações impostas no comportamento motor pelas características físicas e neurológicas do lactente. As restrições ambientais implicam a gravidade como seu membro mais óbvio. A gravidade tem um impacto no desenvolvimento do lactente desde o nascimento, e todos os momentos durante o primeiro ano de vida envolvem grande controle antigravitacional. Outro importante membro desta restrição é a prática do cuidador, bem como a disposição de estímulos dentro da residência ou mesmo do local onde o lactente convive. As restrições da tarefa constituem as restrições do comportamento motor impostas pela natureza da atividade ou exercício. A abordagem dos sistemas dinâmicos representa um modelo holístico. O desenvolvimento motor observado a partir desta visão é um produto de suas interações. O sistema motor é capaz de modificar autonomicamente as habilidades motoras, dependendo das restrições impostas por todos os sistemas e cada nível de função.

A avaliação motora do desenvolvimento infantil implica a avaliação de um processo evolutivo do comportamento motor ao longo do tempo. Geralmente, é desenvolvida para atender dois objetivos: (1) identificar e classificar ou (2) programar intervenção. Baseia-se não apenas nas informações físicas de certos parâmetros, tal como força muscular e tônus, amplitude de movimento e coordenação, mas também implica entender a lesão e o processo patológico. Como resultado do conceito teórico neuromaturacional, as avaliações do desenvolvimento motor restringem-se a avaliar os desvios do movimento resultados de lesões fisiológicas específicas ou biomecânicas. Além disso, as avaliações baseadas no modelo neuromaturacional freqüentemente enfatizam a avaliação de habilidades pontuais, específicas de certo período de tempo. Entretanto, as habilidades motoras do desenvolvimento infantil não são estáticas, em qualquer período de tempo, representam um momento no estágio de um complexo processo de evolução. As habilidades motoras individuais isoladas são insignificantes e apenas ganham importância porque oferecem valiosas informações sobre o todo do desenvolvimento motor infantil. Por esta razão, a avaliação motora do desenvolvimento infantil deve reconhecer a natureza dinâmica das habilidades motoras. A abordagem dos sistemas dinâmicos contribui para que uma avaliação motora do desenvolvimento infantil não seja baseada apenas em um modelo clínico. Na prática, muitas vezes somos solicitados a avaliar um lactente de risco conhecido por apresentar alguma lesão específica do sistema nervoso central e que desafia as expectativas e desenvolve um repertório normal de movimentos (VOHR et al, 1989). A visão dinâmica identifica os atributos positivos de movimento do lactente. Trata-se de não apenas conhecer as deficiências ou limitações do desempenho motor, mas principalmente o que o lactente é capaz de fazer. Portanto, a avaliação motora do desenvolvimento infantil mudou de paradigma devido ao conceito teórico da abordagem dos sistemas dinâmicos, enfatizando o processo mais do que o resultado, ignorando as lesões clínicas e os diagnósticos, deixando de “rotular” o lactente, e identificando os atributos positivos mais do que os desvios do movimento.      

Considerações finais

A maioria das avaliações tem sido baseada na teoria neuromaturacional do desenvolvimento, que, anunciada por McGraw (1945) e Gesell (1945), não apenas tem fornecido o conceito teórico para muitas das avaliações, mas também tem determinado o conteúdo dos itens específicos. Por exemplo, muitos instrumentos de avaliação enfatizam a avaliação de reflexos que estão presentes no início da infância e desaparecem com a maturação, buscando identificar os lactentes que ou apresentam reflexos anormais ou que retém reflexos primitivos além da idade. Estas avaliações são baseadas na teoria que o desenvolvimento motor inicia sob o controle dos níveis subcorticais, e apenas com a maturação do córtex cerebral é que este assume o papel do desenvolvimento motor. Outros instrumentos têm sido baseados em teorias que afirmam o progresso céfalo-caudal do desenvolvimento motor e que a seqüência da progressão é previsível e invariável. Estes instrumentos priorizam a aquisição de marcos motores específicos com pequeno envolvimento dos componentes motores essenciais de cada marco (FOLIO & FEWELL, 1983). Com a crescente evidência que o constructo teórico neuromaturacional seja limitado para explicar todos os detalhes e os vários aspectos do desenvolvimento motor, surgiu o interesse na abordagem dos sistemas dinâmicos. Este novo constructo teórico, segundo Heriza, o sistema nervoso central é apenas um subsistema de muitos que dinamicamente interagem para produzir um movimento, sugerindo uma revisão ou uma nova abordagem da avaliação do desenvolvimento motor infantil (apud, PIPER & DARRAH, 1994). A abordagem dos sistemas dinâmicos oferece um sentido diferente para o conceito de desenvolvimento motor e, conseqüentemente, para a avaliação motora. A visão do comportamento motor isolado e o desdobramento de padrões predeterminados do sistema nervoso central foram substituídos por uma perspectiva de comportamento motor que parece ser conseqüência de uma cooperação dinâmica de muitos subsistemas em um contexto de tarefa específica. A adoção da abordagem dos sistemas dinâmicos como a base da avaliação do desenvolvimento motor infantil é atrativa porque não apenas alteraria nossa abordagem de avaliação, mas também permitira-nos reter certos aspectos para nossas orientações familiares.

Referências Bibliográficas

FOLIO, M.R., FEWELL, R.R. Peabody developmental motor scales and activity cards: a manual. Teaching Resources, 1983.

LOPES, V.B. Desenvolvimento motor de bebês segundo a Alberta Infant Motor Scale. São Carlos: UFSCar, 2003.

McGraw, M.B. The neuromuscular maturation of the human infant. New York: Macmillan, 1945.

NEWELL, K.M. Constraints on the development of coordination. In: Wade, M.G.; Whiting, H.T.A. Motor development in children: aspects of coordination and control. Bonston: Martin Nighoff, 1986, 341-360.

OLIVEIRA, C.M.A. A formação da criança nas cidades. Pediatria. n. 3, Rio de Janeiro, v. 26, 2004, 172-178.

PIPER, M.C.; DARRAH, J. Motor assessment of the developing infant. USA: W. B. Sannders Company, 1994.

SANTOS, D.C.C.; GABBARD, C.; GONÇALVES, V.M.G. Motor development during the first 6 months: the case of Brazilian infants. Infant and Child Development. n. 9, USA, issue 3, September, 2000, 161-166.

VOHR, B. R.; GARCIA-COLL, C.; MAYFIELD, S. et al. Neurologic and developmental status related to the evolution of visual-motor abnormalities from birth to 2 years of age in preterm infants with intraventricular hemorrhage. Journal Pediatric. n. 115, USA, 1989, 296-302.
ZAMBERLAN, M.A.T. Interação mãe-criança: enfoques teóricos e implicações decorrentes de estudos empíricos. Estudos de Psicologia, n. 2, Natal, v. 7, 2002, 399-406.