http://www.psiquiatriainfantil.com.br/congressos/uel2007/220.htm


Londrina, 29 a 31 de outubro de 2007 – ISBN 978-85-99643-11-2

A CONSOLIDAÇÃO DO SISTEMA EDUCACIONAL INCLUSIVO NO MUNICÍPIO DE FEIRA DE SANTANA – BA
Ana Paula de Oliveira Moraes Soto – Secretaria Municipal da Educação de Feira de Santana
Márcia Torres Néri Soares - Secretaria Municipal da Educação de Feira de Santana


RESUMO

A perspectiva de  colocar todos na escola, é sem dúvida uma iniciativa importante na consecução de políticas educacionais oficiais porém, esse direito nem sempre vem respaldado do conceito de educação plena, significativa, justa e participativa, ao contrário, em sua maioria, caracteriza-se em tentativas de generalização que só discutem educação a partir de uma determinada parcela da população. Nesse contexto, embora os discursos contemplem a questão das diferenças e do respeito ao outro, as ações, tanto das políticas públicas como de objetivações curriculares não têm considerado as implicações sociais que envolvem o ato educativo, constituído de diferentes saberes. Diante dessa premissa muitas ações/decisões tomadas no interior das políticas  educacionais se constituem em tentativas de contribuir à proposta da educação inclusiva, sendo este um constante desafio visto que, muitas são as dificuldades da escola em favorecer a aprendizagem de todos os alunos. Nessa perspectiva, este trabalho objetiva apresentar o que a rede municipal de ensino de Feira de Santana vem propondo em relação às políticas públicas direcionadas a efetivação de um sistema educacional inclusivo.



Atualmente, muitas são as discussões que dizem respeito à escola inclusiva, tanto no âmbito da legislação brasileira e internacional quanto das práticas pedagógicas que vêm consolidando-se no cenário educacional. Sabe-se que o desenvolvimento dessas práticas percorre caminhos variados já que os conteúdos acerca da educação  inclusiva nem sempre permeam as formações docentes, sendo esse um tema mais recente, e é no convívio junto às pessoas com necessidades educacionais especiais (n.e.e.) que almeja-se aprender a conviver com as diferenças.
Partindo dessa premissa, muitas ações/decisões tomadas no interior da gestão educacional se constituem em tentativas de contribuir à proposta da educação inclusiva, sendo este um constante desafio visto que, muitas são as dificuldades docentes em favorecer a aprendizagem de todos os alunos e agora tendo em suas turmas alunos com n.e.e  essas dificuldades se evidenciam acrescidas do despreparo para lidar com as particularidades destes. Nesse contexto, “vivemos um momento na educação em que coexiste a incapacidade da escola para ensinar todos os seus alunos e a presença de fato de alunos com deficiência, que são estranhos para ela” (FERREIRA, 2004, p. 37).
Essas reflexões alertam para a complexidade na construção do processo educacional inclusivo, afinal como afirma Cláudio Roberto Baptista (2006, p. 171), “a ocorrência de ações exitosas nos processos educacionais inclusivos depende, em grande medida, da mudança de atitude e da concepção em relação ao atendimento educacional dos alunos com necessidades educacionais especiais”.
Além das referências legais,  a educação inclusiva se constitui em meio aos saberes docentes, suas representações acerca da diversidade, na aceitação de alunos com n.e.e. e principalmente na utilização de mecanismos para contemplar as suas especificidades. Assim, compreende-se as adequações curriculares, no que se refere aos instrumentos de avaliação e planejamento utilizados pelos professores, como indispensáveis na garantia,  não apenas da inserção, mas, sobretudo na  permanência desses alunos com equiparação de oportunidades.
 Sabendo dos princípios hegemônicos evidenciados em muitas práticas pedagógicas, considera-se como de fundamental importância desenvolver políticas públicas voltadas para o reconhecimento à diversidade,  afinal

o sistema educacional brasileiro precisa considerar esses elementos como essenciais na formação das crianças e jovens, pois a escola enquanto  espaço plural e diverso, necessita construir  pressupostos teóricos que reconheçam e dialoguem com a diversidade cultural presente na sociedade, enriquecendo assim, o cotidiano escolar formando cidadãos atuantes e cientes do seu papel social, indivíduos que têm por princípio o respeito às diferenças e compreendam que a humanidade é diversa. (NASCIMENTO, 2006, p. 37)

Nesse sentido, o desenvolvimento de políticas públicas tanto em nível macro – através  de ações do Ministério da Educação – MEC , quanto em nível local, mediante ações das Secretarias Estaduais e Municipais de Educação, tem se constituído como passos significativos de uma gestão que favoreça em seus múltiplos aspectos a efetivação desse processo. Em meio a essas ações, o Programa Educação Inclusiva: Direito à Diversidade tem se destacado pelo apoio dado aos municípios de todo o Brasil na construção de seus sistemas inclusivos. Vale ressaltar que:

Um processo de gestão que seja democrático e que objetive a construção da cidadania brasileira não é um processo mecânico e sem compromissos. Ele só existirá na medida em que forem desenvolvidas a autonomia e a participação de todos, num clima e numa estrutura organizacional compatíveis com essa prática visando a  emancipação. (BORDIGNON e GRACINDO, 2004, p. 169)

Por isso, pretende-se  socializar um pouco das experiências trilhadas pela Secretaria Municipal da Educação de Feira de Santana – através  da Divisão de Ensino Especial1 no tocante aos seus desejos e desafios, caminhos inusitados para a solidificação desse tão almejado sistema.
1  Nomenclatura utilizada pela Secretaria Municipal da Educação de Feira de Santana para definir a constituição dos departamentos que a compõe.

Um pouco da nossa experiência

Antes de falar das experiências desenvolvidas pelo Grupo da Divisão de Ensino Especial do Município de Feira de Santana, e por entender que a subjetividade é permeada por uma gama de valores, crenças e entendimentos intrínsecos a nossa personalidade, faremos alusão aos  nossos estranhamentos frente a  proposta inclusiva.
Conta-se que havia um malfeitor que morava numa floresta e chamava-se Procusto. Procusto, personagem muito cruel, mandou fazer uma cama que tinha exatamente as medidas do seu próprio corpo, nem um milímetro a mais, nem a menos. Quando capturava uma pessoa na estrada ele amarrava-a na cama. Se a pessoa fosse maior do que esta, ele cortava fora o que sobrava. Se fosse menor ele a esticava até caber naquela medida. Procusto foi morto pelo herói  Teseu, o mesmo que depois matou o Minotauro.
Através dessa ilustração da mitologia grega percebemos  as dificuldades que  encontramos na forma de perceber o outro do ponto de vista social  e histórico. Esse  mito relembrado por BAGNO (1998, p. 53), representa a intolerância diante do outro. Pode-se afirmar que o “espírito de Procusto” esteve presente em várias etapas da história da humanidade e por vezes circunda os olhares e atitudes dirigidas às pessoas como n.e.e ainda na atualidade.
A forma de conceber o outro, diz respeito as nossas próprias dificuldades em conviver com as diferenças, em querer moldá-lo de acordo com aquilo que socialmente convencionou-se  como normal e aceitável. Por isso, incluir significa também desconstruir as barreiras e os preconceitos enraizados em nós mesmos.
Essas reflexões e ainda  o desconhecimento de muitas questões acerca da educação especial, impulsionaram o Grupo, em 20012, a buscar sua  formação  com o objetivo de discutir elementos subsidiários a proposta inclusiva e implantar no município redes de apoio favoráveis às condições de acessibilidade, organização do atendimento a alunos com n.e.e e formação docente que envolvesse acima de tudo, mudanças atitudinais.
2  A Divisão de Ensino Especial já existia no organograma da Secretaria Municipal da Educação, porém, só em 2001 ela é implementada.
Do investimento em nossa própria formação, algo que continuamos consolidando a cada dia e de todo envolvimento pessoal na superação de nossas próprias limitações na forma de conceber o outro, é que desenvolvemos o nosso trabalho sempre (re) dimensionando-o de acordo com a nossa realidade.
É  justamente nesse lócus privilegiado de interações, trabalhando no interior  de uma Secretaria Municipal da Educação, que recebemos na condição de órgão governamental, atribuições direcionadas a luta pelo reconhecimento da diversidade. Vale destacar que a rede municipal de ensino de Feira de Santana conta hoje com aproximadamente dois mil professores, distribuídos em 214 escolas, atendendo a um número de 58.795 alunos.
 Certamente esta é uma responsabilidade por demais complexa, pois como afirma KASSAR (2004, p. 60): “o desafio que se apresenta é a construção de uma escola que propicie uma mesma qualidade, que se revele na igualdade de oportunidades, sem demagogia, sem paternalismo e com responsabilidade”.
E, nessa perspectiva de rompimentos com as barreiras não apenas físicas mas também atitudinais, de cunho assistencialistas, dirigidas às pessoas com deficiência, que acabaram por se cristalizar mundialmente e por isso são sentidas também no âmbito local e mais especificamente educacional, é que nos lançamos ao desafio constante de contribuir com a visão prospectiva desses seres.

Uma história. Tantas histórias
A grande rotatividade de pessoas que solicitam encaminhamentos/intervenções da Secretaria acaba se constituindo em um universo significativo e imensuravelmente enriquecedor em nossas práticas.
Dessa forma, elencamos inicialmente algumas vozes dos que, em contato com o nosso Grupo dão pistas de como se constitui o nosso trabalho. Relatos como os que vamos citar enche-nos de coragem na busca incessante pelas alternativas viáveis na condução do processo educativo daqueles que apresentam alguma deficiência, além de reafirmar nossa grande responsabilidade na condição de órgão gestor  desse processo.
Iniciamos com a fala de alguns pais, para nós,  bastante expressivas:
- Eu não quero a minha filha na Escola só por estar
Depoimento de mãe de aluna com a Síndrome de Rubinstein-Taybi, matriculada na 3ª série do ensino fundamental de uma escola regular do nosso município, avaliando a trajetória de sua filha e solicitando da Secretaria alguma intervenção.
Nessa escola foram desenvolvidas atividades de acompanhamento junto à professora da turma, que conseguiu fazer mediações favoráveis ao seu processo de alfabetização, tendo a aluna sido alfabetizada ao final do ano letivo.
- Ela não fala não. Ela só fala em casa, a voz dela é muito grossa. Ela é assim mesmo. Se chegar uma visita em casa e ficar muito tempo ela não sai do quarto os menino diz que ela é doida.(sic)
Relato de mãe de aluna matriculada em uma escola regular do município de Feira de Santana, na 1ª série do ensino fundamental, com idade de 17 anos. Aluna que, segundo relatos da mãe e dos professores da escola, não falava, não interagia, nem participava das atividades propostas. Comportamento que acabou se naturalizando a ponto da jovem não levantar da carteira nem mesmo para pegar a sua própria merenda.
Após o suporte pedagógico dado à professora e do encaminhamento da aluna para avaliação e acompanhamento psicopedagógico, a jovem que antes não falava passou a fazer os contatos com a secretaria por telefone para o  agendamento de suas atividades.
Os breves relatos apresentados são capazes de revitalizar as nossas ações, mesmo em meio aos constantes dilemas a que somos submetidos, pois ainda que de forma incipiente começamos a vislumbrar algumas experiências pois como afirma Maria Elisa Caputo Ferreira: 

A inclusão de todos na escola independentemente do seu talento ou deficiência, reverte-se em benefícios para os alunos, para os professores e para a sociedade em geral. O contato das crianças entre si reforça atitudes positivas, ajudando-as a aprenderem a ser sensíveis, a compreender, respeitar, e crescer, convivendo com as diferenças e as semelhanças individuais entre seus pares. Todas as crianças, sem distinção, podem beneficiar-se das experiências obtidas no ambiente educacional. (FERREIRA, 2003, p. 124)

Sem dúvida, poder participar, acompanhar esse processo é motivo de enriquecimento de muitas práticas agora dizimadas através do PROEI , curso idealizado pelo Grupo com o objetivo de fornecer subsídios teórico-práticos acerca da educação inclusiva e também de problematizar as muitas experiências dos professores envolvidos.
Outra experiência que foi proporcionada pela colaboração do MEC, através do Plano de Trabalho Anual- PTA de Educação Especial são as ações de adaptação física das escolas, bem como aquisição de equipamentos e recursos didático-pedagógicos. Nesse aspecto, estamos sempre conscientizando os diretores das escolas para que declarem a existência de alunos com deficiência no Censo Escolar e estejam atentos para os prazos e exigências demandadas pelo Ministério da Educação.
A Sala de Recursos Multifuncionais, apesar do pouco tempo de funcionamento e de algumas intercorrências estruturais, já se constitui em um espaço de interação de experiências de aprendizagens significativas. Pelos relatos dos professores que lá atuam é estimulante ver  o interesse dos alunos pelas atividades, principalmente as que envolvem os recursos tecnológicos e poder identificar os avanços que já se revelam ainda que timidamente.
Dessas e de outras experiências que temos estabelecido na luta pela equiparação de oportunidades a todas as pessoas independentemente de suas características, abstraímos um singular envolvimento que nos mobiliza mesmo em meio às adversidades caracterizadas pelas dificuldades no estabelecimento de parcerias, a inexistência de uma equipe multidisciplinar e ainda a dimensão da rede municipal, que como já dissemos é bastante significativa.
Outro ponto que temos que descortinar junto aos envolvidos no processo educacional  é a falta de entendimento sobre o caráter transversal da educação especial e as dúvidas sobre o que de fato se configura o aluno com deficiência já que, muitas vezes vítimas de um processo perverso, intitulado por alguns teóricos como “déficits de ensinagem”, avolumam-se as listas de alunos rotulados  principalmente como deficientes mentais.
Estaria o espírito de Procusto ainda presente em nossas práticas? Estaríamos distantes de nos constituir partícipes de práticas realmente inclusivas?
É no mínimo delicado tentar responder a qualquer dessas perguntas. Sem querer sublimá-las gostaríamos de levantar outros questionamentos para nós igualmente importantes. Como perceber um ex-aluno de instituição especializada, com Síndrome de Down,  que ao freqüentar a escola regular, passa a dormir durante toda a noite, algo que antes não acontecia, com o caderno embaixo do travesseiro e uma felicidade irradiante por participar de uma “nova escola” e lá aprender coisas que ainda desconhecia? Como ignorar os crescimentos que alunos ditos normais têm desfrutado ao receber em suas salas alunos com alguma deficiência, constituindo-se dessa forma, como seres humanos incomparavelmente melhores? Como não ouvir as vozes dos que tiveram historicamente os seus direitos negados? E mais, como não aprender com os relatos dos professores, à exemplo, dos realizados durante os seminários decorrentes do Programa Educação Inclusiva: direito à diversidade, que pontuam o investimento na formação continuada e nas práticas pedagógicas voltadas para o respeito e sobretudo o reconhecimento das diferenças?
Certamente, o herói Teseu livrou-nos do personagem, mas as suas atitudes por vezes povoam as nossas dificuldades em conviver com essas diferenças. Contudo, começamos a desconstruí-lo em nossas próprias representações e por sabermos da responsabilidade que temos como educadores no processo de formação de seres humanos tenham eles n.e.e. ou não, estamos a cada dia cônscios de nossas responsabilidades e principalmente dos nossos incontáveis desafios.
Essa é, portanto, uma história de luta e não poderia ser de outra forma já que fomentamos discussões e ações voltadas para o alcance de muitos excluídos. Nesse contexto, sensibilidade, envolvimento, participação, respeito são palavras de ordem e esta luta, a nossa luta, é de fato coletiva, o que pressupõe decisões, organizações e também mudanças nas políticas públicas, que como vimos, começam a descortinar-se.
Por tudo isso, reafirmamos mais uma vez o nosso compromisso e as crenças nas possibilidades infinitas do ser, ao passo em que nos compreendemos no interior dessa mudança, afinal:
O pequeno, o cotidiano, cada dia, cada aluno, cada aula, cada escola, cada professor, cada professora não estão sozinhos em suas ações e não podem estar. Somos parte de um planeta que é construído e destruído por ações de cada um de nós e por nós todos juntos. Somos agora, mas outros já foram e estão incorporados em nós. Outros virão para se apropriarem de nossas idéias e ações. (PADILHA, 2004, p.118)

REFERÊNCIAS
BAGNO, Marcos. Pesquisa na Escola: o que e como se faz. São Paulo: Edições Loyola, 1998.

BAPTISTA,  Cláudio Roberto (org). Inclusão e Escolarização: múltiplas perspectivas. Porto Alegre: Mediação, 2006.

BORDIGNON, Genuíno e GRACINDO, Regina V. Gestão da Educação: o município e a escola. In: FERREIRA, Naura Syria Carapeto, AGUIAR, Márcia Ângela da S. Gestão da Educação: impasses, perspectivas e compromissos. São Paulo: Cortez, 2004.

KASSAR, Maria de C. M. Matrículas de crianças com necessidades educacionais especiais na escola regular: do que e de quem se fala? In: GÓES, Maria Cecília Rafael de; LAPLANE, Adriana Lia Friszman de (orgs). Políticas de Educação Inclusiva. Campinas: Autores Associados, 2004.

LIMA, Maria Nazaré Mota de (org). Escola Plural: a diversidade está na sala. São Paulo: Cortez, 2006.

PADILHA, Anna Maria L. O que fazer para não excluir Davi, Hilda e Diogo. In: GÓES, Maria Cecília Rafael de; LAPLANE, Adriana Lia Friszman de (orgs). Políticas de Educação Inclusiva. Campinas: Autores Associados, 2004.

RIBEIRO, Maria Luisa Sprovieri; BAUMEL, Roseli Cecília Rocha de (org). Educação Especial: do querer ao fazer. São Paulo: Avercamp, 2003.