http://www.psiquiatriainfantil.com.br/congressos/uel2007/272.htm


Londrina, 29 a 31 de outubro de 2007 – ISBN 978-85-99643-11-2

A INTERAÇÃO SOCIAL  NO PROCESSO DE DESENVOLVIMENTO  DO MENINO SELVAGEM DE AVEYRON
Lucyanne Cecília Dias
Nerli Nonato Ribeiro Mori
Dóris de Jesus Lucas Moya
Lucília Vernaschi de Oliveira
Elsa Midori Shimazaki
Edilene Cunha Martinez
Programa de Pós-Graduação em Educação da Universidade Estadual de Maringá-PR.


RESUMO

Este trabalho tem por objetivo analisar a obra “O garoto selvagem” (L’ Enfant Sauvage), filme de François Truffaut, baseado em fatos reais que ocorreram nos fins do século XVIII. Trata-se da história de um garoto com idade entre 12 e 15 anos, encontrado na floresta de Aveyron, na França, em 1797. Com hábitos selvagens, ele parecia surdo e mudo, emitindo apenas alguns grunhidos. Levado para o Instituto Nacional de Surdos-Mudos, em Paris e após uma tentativa fracassada de usar para com ele o método pautado na língua de sinais, ele foi considerado irrecuperável. Todavia um médico-residente chamado Jean Itard interessou-se pelo caso e, partindo do princípio que o comportamento do menino era conseqüência da privação de contato social, propôs ao governo francês um projeto de reeducação daquele que ele veio a chamar de Victor. A análise da história de Victor e do trabalho com ele realizado está pautada em estudos de autores da Teoria Histórico-Cultural, especialmente aqueles acerca do processo de humanização por meio do trabalho e da interação social.

Palavras-chave: Teoria Histórico-cultural, garoto selvagem, processo de humanização.

I-INTRODUÇÃO


O filme L’Enfant Sauvage d’Aveyron ou O Menino Selvagem de Aveyron, de François Truffaut, baseado num caso verídico, relata a história de uma criança  que foi capturada em uma floresta da França, em1797; tendo vivido afastado da sua espécie, apresentava hábitos selvagens e  aparentava surdez. Após a primeira captura, ele foge, mas um ano depois, provavelmente devido ao inverno rigoroso, se aproxima da casa de um tintureiro, é entregue às autoridades e transferido para uma instituição destinada a doentes indigentes. Em seguida, foi enviado para a Escola Central de Rodez, onde um médico chamado Bonnaterre o examinou e escreveu um primeiro relatório sobre o menino.

Em seguida o menino foi levado para o Instituto Nacional de surdos em Paris. Após as tentativas fracassadas, este foi considerado irrecuperável.  Todavia, o jovem médico Itard se interessou pelo caso que, ao contrário, considerou ser possível recuperar o atraso provocado não por inferioridade congênita, mas partindo do princípio que o comportamento do menino era conseqüência da privação social, propôs ao governo francês um projeto de reeducação daquele que veio a se chamar de Victor.

Para provar a veracidade das suas razões, Itard pediu a tutela desta criança. Assim, na sua casa em Batignoles e com a ajuda de Mme Guérin, sua governanta, passou a desenvolver com ele atividades voltadas para o desenvolvimento sensorial, interação social, desenvolvimento de sensibilidade, ampliação do campo mental, criação de necessidade e emprego da palavra.

O início de sua adolescência é marcado pelo isolamento social, impossibilitando seu desenvolvimento humano, principalmente no que se refere ao processo de humanização ou da formação das funções psicológicas superiores. Conforme pressupostos da Teoria Histórico-Cultural, é fundamental que aborda a importância da interação social, do coletivo e da mediação no processo de apropriação do conhecimento elaborado historicamente pela humanidade. Segundo Rubinstein (1973), a consciência humana na sua relação com a “actividade” prática comum, o homem é um ser social, sua atividade é social e sua consciência também é social e forma-se na relação com o próximo.

Nesse momento buscaremos compreender a atividade humana do adulto, ou seja, o trabalho, já que o surgimento desta atividade foi condição necessária para a emancipação do homem, e para isso, recuaremos na história a fim de encontrar as premissas desta atividade, para posteriormente, analisar o percurso histórico do desenvolvimento psíquico do homem. Segundo Engels (1982), o trabalho criou o homem e toda riqueza humana provém dele. Um marco importante no processo de hominização foi à necessidade de uso das mãos por um grupo de macacos. Inicialmente as mãos eram usadas para se pendurarem em árvores; gradativamente eles também deixaram de utilizar as mãos para caminhar no chão e começaram a se tornar cada vez mais eretos.

O desenvolvimento do trabalho foi à condição fundamental para a humanização do homem, acarretando a transformação e a hominização do cérebro, dos órgãos da atividade externa e dos órgãos do sentido, paralelamente ao trabalho e decorrente dele há também a linguagem. O trabalho conduziu a necessidade de produção e uso de instrumentos, desenvolvendo-se também enquanto atividade coletiva o uso dos signos, tendo a linguagem como principal e fundamental. Para Leontiev (1978), o processo de hominização se deve ao trabalho, pois a ação do homem sobre a natureza a modifica e este é modificado por ela, em processo dialético, causando uma modificação na estrutura física e psíquica do homem.

No processo de humanização, a linguagem ocupa papel de destaque, tendo como primeira função a comunicação, a troca entre os membros de uma mesma espécie; a segunda função é a do pensamento generalizante. Podemos considerar que a linguagem nasce da necessidade de comunicação, junto com as ações e depois é internalizada, é um instrumento de expressão e compreensão entre os homens. Segundo Luria (1990), a linguagem é considerada o instrumento mais importante de desenvolvimento da consciência, pois penetra em todos os campos da atividade consciente do homem, sua principal função na formação da consciência é tornar possível o processo de abstração e generalização, sem a qual seria impossível adquirir a experiência das gerações anteriores, ao mesmo tempo é a base do pensamento; permite a reorganização da percepção e da memória, possibilitando uma reflexão mais complexa em torno dos objetos.
  O processo de desenvolvimento e transformação dos indivíduos ocorre ao longo de toda sua vida, é resultado da interação entre os quatros planos genéticos. Afirma Vygotsky (2000), a filogênese refere-se à história da espécie humana, define limites e possibilidades do desenvolvimento, ou seja, são as capacidades biológicas próprias do psiquismo humano, a exemplo é um ser bípede, que anda mais não voa, possui coordenação motora fina. A ontogênese diz respeito à seqüência de atividades do desenvolvimento natural e biológico da espécie, ou seja, nasce, cresce, reproduz e morre, é durante esse processo de desenvolvimento que o indivíduo apropria-se dos conhecimentos produzidos pela humanidade. A sociogênese refere às diferentes formas culturais que interferem no funcionamento psicológico do indivíduo, servindo de alargamento das potencialidades humanas, enquanto a microgênese está relacionada a história particular de cada fenômeno psicológico, destacando a singularidade e  a heterogeneidade  de cada indivíduo.
A apropriação da cultura humana dá origem às formas especiais de conduta, modificam a atividade das funções psicológicas superiores e cria novos níveis de desenvolvimento humano. Segundo Leontiev (1978), a formação das funções psicológicas superiores, tipicamente humanas, ocorre por meio do processo de apropriação dos bens culturais e materiais, é na ontogênese, que os indivíduos precisam apropriar-se dos significados das gerações passadas, essa apropriação o fazem tornar humanos, diferenciando-se dos demais animais.
De acordo com Vygotsky (1998), cada função psicológica aparece duas vezes: primeiramente no nível social, no interpsicológico e mais tarde internalizadas, denominado intrapsicológico. Inicialmente ocorre entre as pessoas, portanto antes do conhecimento ser individual é social, como função coletiva, como forma de colaboração e interação com o meio social. O autor esclarece que no desenvolvimento psíquico do homem há a primazia do princípio social sobre o princípio natural-biológico.
Em acerca do problema da periodização do desenvolvimento psíquico na idade infantil, Elkonin (1969) discute a complexa questão da divisão do desenvolvimento infantil em períodos de acordo com a faixa etária, afirma que não existe um desenvolvimento de infância universal, único e natural. Esse processo não pode ser isolado assepticamente da criança na sociedade e do reflexo desta nas necessidades da criança, em seus motivos, e em seu desenvolvimento intelectual.
De acordo com a Teoria Histórico-Cultural essa periodização do desenvolvimento cultural do ser humano se estrutura a partir da substituição de uma atividade concebida pelos adultos. Essa atividade coletivamente pensada como apropriada a determinado período da ontogênese denomina-se atividade rectora ou organizadora do comportamento. E como não poderia ser de outra forma, a atividade organizadora do comportamento da criança, pensada pela sociedade para cada idade específica, movimenta e desencadeia os processos de transformação psíquica do sujeito.

II – O desenvolvimento e a educação de Victor

O filme, além do mérito de tornar conhecido o trabalho empreendido por Itard, é de uma beleza ímpar. Como explica Banks-Leite e Galvão (2000), os aposentos mostrados no filme lembram os interiores holandeses pintados por Vermeer; as cenas, muitas filmadas no próprio Instituto de Surdos-Mudos onde viveu Victor, são acompanhadas da música de Vivaldi e o clima é de intensa beleza e poesia.

Com relação ao desenvolvimento do garoto selvagem antes e após a mediação de Itard, os fatos apresentados evidenciam o papel fundamental do convívio entre os homens; é pela interação e apropriação dos bens culturais que se desenvolve o psiquismo humano. O curso histórico do desenvolvimento humano é condicionado tanto pelas relações humanas como pelas circunstâncias concretas em que essas relações se realizam.

É por meio da interação social e pela comunicação que a criança se apropria de forma ativa dos objetos humanos com os quais reproduz as ações humanas. É por meio de sua ação e em dependência das pessoas que ela está em contato, que é constituído e modificado o seu modo de vida, ou seja, de acordo com a posição real que a criança ocupa em suas relações sociais. 
A partir da análise da obra é possível compreender que no processo geral de desenvolvimento mental há duas linhas qualitativamente diferentes, ambas diferem em relação a sua origem: de um lado os fatores elementares de origem biológica, de outro as funções psíquicas superiores, de origem social. É do entrelaçamento dessas duas linhas que emerge a história do comportamento da criança.
            Assim, podemos considerar que o desenvolvimento incompleto das funções elementares é conseqüência de um defeito de origem biológica, portanto sua eliminação é algo praticamente impossível, e ao considerarmos que o desenvolvimento psíquico é determinado pela apropriação das formas históricas sociais e culturais, torna-se evidente que as possibilidades de desenvolvimento dependem da inserção da criança na atividade coletiva e da mediação, ou seja, oferecer condições adequadas e ajustadas às necessidades especiais da criança, privilegiando as potencialidades e não as dificuldades.  
  Outro aspecto fundamental pelo qual chamamos a atenção na obra O menino selvagem, relaciona-se à plasticidade do cérebro. Mesmo que a criança apresente atraso em seu desenvolvimento mental, por meio de estímulos externos e da mediação, sua capacidade de desenvolvimento cognitivo é ampliada, ou seja, estimular o órgão sem deficiência para que haja a compensação de uma deficiência de origem biológica, portanto ressaltamos a importância dos aspectos culturais e sociais no processo de desenvolvimento do psiquismo humano. Esse conceito é válido tanto para as crianças normais quanto para as crianças com necessidades educativas especiais.
Ao analisarmos a inserção do menino selvagem ao convívio social, convida-nos a superarmos as concepções naturalizantes do ser humano, ou abordar o desenvolvimento psicológico como um processo de adaptação da criança ao mundo dos objetos e das pessoas.  Essa superação torna-se possível ao compreendermos o psiquismo humano como algo que se desenvolve por meio da interação do indivíduo na cultura e nas relações sociais, implica reconhecer e compreender a relação da criança com a sociedade construída historicamente a partir das necessidades do homem.

REFERêNCIAS

BANKS-LEITE, L.; GALVÃ0, I. A educação de um selvagem: as experiências pedagógicas de Jean Itard. São Paulo: Cortez, 2000.

ENGELS, F. O papel do trabalho na transformação do macaco em homem. São Paulo: Global, 1982.

ELKONIN, D. Desarrollo psíquico del niño desde el nacimiento hasta el ingreso en la escuela. In: Psicologia. México: Editorial Grijalbo, 1969.

LEONTIEV, Alexis. O desenvolvimento do psiquismo. Lisboa: Horizonte Universitário, 1978.
LURIA, A. R. Generalização e abstração. In: Desenvolvimento cognitivo. 2ª ed. São Paulo: Ícone, 1990.
RUBINSTEIN. S. L. A linguagem. In: Princípios de psicologia geral. 2ª ed. Lisboa: Estampa, 1973.
VYGOTSKY, L. S. A Formação Social da Mente. São Paulo: Martins Fontes, 1998.
VYGOTSKY, L. S. A Construção do Pensamento e da Linguagem. São Paulo: Martins Fontes, 2000.
VYGOTSKY, L. S. A coletividade como fator de desenvolvimento psíquico da criança: Fundamentos de defectologia.  Moscú: Visor, 1997. (Obras escolhidas V).