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Londrina, 29 a 31 de outubro de 2007 – ISBN 978-85-99643-11-2
CARACTERISTICAS DO DESENHO DE UM SUJEITO AUTISTA
Maria Fernanda Bagarollo (UNICAMP)
Ivone Panhoca (PUC-Campinas)
RESUMO
No desenvolvimento infantil o desenho é considerado forma de linguagem e precursor da escrita,
portanto fundamental para o processo de constituição humana e escolarização. Assim como as demais
funções do desenvolvimento, para a teoria histórico-cultural, o desenho é constituído a partir das
relações sociais. Os sujeitos autistas, por apresentarem peculiaridades em seu desenvolvimento e na
forma de se relacionar com os outros e com o mundo, podem constituir o desenho de maneira distinta
das outras crianças. Considerando isso, este trabalho teve por objetivo investigar as características do
desenho de uma criança autista. Para isso, foi tomado o processo e o produto de produção de oito
desenhos de uma criança autista de oito anos, inserida na rede regular de ensino. Os desenhos foram
produzidos a partir da contagem de histórias infantis. Como resultados destacamos três eixos temáticos,
o primeiro se refere a grafia, o segundo a significação dos desenhos e o terceiro o envolvimento da
linguagem oral durante a produção dos desenhos. As análises permitiram compreender que André
demonstra que a preocupação com o significado/representação/reprodução da história do desenho
sobrepõe a estética ou valorização da grafia. Além disso, percebe-se que as funções: linguagem verbal e
desenho não apresentam concordância com a idade cronológica e não seguem os movimentos e
características normalmente encontradas em crianças com desenvolvimento típico ou com deficiência
mental e avançam no decorrer das produções. Considerando isso, é importante destacar que o desenho
deve ganhar espaço na educação de sujeitos autistas na medida em que promove tanto a ampliação da
oralidade quanto se apresenta como uma possibilidade da criança refletir o mundo, as experiências
vivenciadas e a representação do real, podendo favorecer assim o uso da escrita.
Introdução
Para a teoria histórico-cultural, que tem em Vigotski (2000a) seu maior expoente, todas as funções
mentais superiores do homem são constituídas socialmente. Segundo este autor a criança nasce com
funções elementares como os reflexos, aparato sensorial e demais funções orgânicas, por exemplo, e a
partir do momento em que vai internalizando as relações sociais e a linguagem estas funções vão se
transformando em funções mentais superiores, sendo elas, por exemplo, a memória mediada, o
pensamento verbal, a imaginação, a linguagem racional etc.
Vigotski (2000a) destaca que as relações sociais promotoras de desenvolvimento são mediadas pela
linguagem, pelos instrumentos, ambos utilizados e, portanto, também mediados pelos outros que
participam destas relações. Em outras palavras, as interações sociais vivenciadas pelas crianças são
mediadas por sujeitos que utilizam linguagem e instrumentos da cultura. E é a partir do momento em que
a criança vai se apropriando do uso da linguagem, dos instrumentos e dos fazeres dos homens é que ela
vai se constituindo sujeito.
Ao considerar a linguagem como mediadora das relações sociais Vigotski (2000a) a destaca como
primordial dentre as demais funções do desenvolvimento mental. Para este autor não há conteúdo
cognitivo sem a linguagem, ou seja, ela é estruturante do comportamento e do funcionamento mental
humano, distinguindo o homem de outros animais.
Segundo esta perspectiva teórica a linguagem (signo) e, portanto, fala, desenho, escrita são mediadores
do comportamento e desenvolvimento do homem, podendo assim transformar/ sofisticar o
funcionamento mental humano.
Além disso, é importante destacar que o desenho, assim como o gesto e a brincadeira, permitem o
desenvolvimento da função simbólica mais complexa configurando-se então como precursores da
linguagem escrita (VIGOTSKI, 2000a; LURIA 2003).
Para Vigotski (2000a) o ponto de crítico da transformação dos rabiscos para os desenhos é a
descoberta da criança que seus rabiscos representam algo e para Luria (2003) a passagem do desenho
para escrita ocorre quando a criança começa a perceber que o desenho é um “meio para registro”
(LURIA, 2003. p.174)
O desenho, tal como as demais atividades tipicamente humanas, é constituído a partir das experiências
sociais, do modelo do desenho do outro, do próprio desenho, da mediação pela linguagem da própria
criança nos momentos de fala egocêntrica ou fala interior que normalmente acompanham a produção
gráfica e a fala do outro que observa a criança desenhar (FERREIRA, 2003).
A discussão no âmbito da psicologia soviética abarca tanto sujeitos com desenvolvimento típico como
aqueles que por alguma deficiência orgânica apresentam características peculiares no desenvolvimento,
tais quais sujeitos surdos, cegos, deficientes mentais, transtornos de comportamento (VIGOTSKI,
1989). Assim, as leis gerais do desenvolvimento também são válidas aos sujeitos autistas.
Desta forma, este trabalho buscou compreender modos de funcionamento de uma criança autista a
partir de um viés histórico-cultural.
O sujeito autista é tradicionalmente caracterizado pela medicina (DSM-IV TR, 2002),
educação(BAPTISTA, BOSA E COL., 2002) e demais áreas de investigação (KUPFER, 2001;
BAGAROLLO, 2005; SOUSA-MORATO E FERNANDES, 2006) como um indivíduo que
apresenta dificuldades ou impedimentos para as relações sociais, déficit de linguagem, ausência ou
escassez de atividade imaginativa e comportamentos estereotipados.
No entanto quando se pensa na pessoa autista como sendo passível de transformações pelas relações
sociais, a concepção muda e ela passa a ser entendida como uma criança com formas distintas de
perceber a realidade, de se comunicar, de fazer vínculo, de ser alfabetizada etc.
E esta diferença entre sujeitos com funcionamento típico e autistas traz conseqüências para o modo de
se relacionar, tratar, educar, escolarizar, enfim, assumir a diferença significa aceitar a necessidade de
conhece-la e de lidar com ela.
Como em todas as esferas do desenvolvimento, o desenho das crianças com alguma deficiência são
peculiares. Luria (2003) aponta que as crianças retardadas, nomenclatura utilizada na época para se
referir aos deficientes mentais, embora utilizem características plásticas no desenho mais avançadas que
as crianças normais, não conseguem entende-los como instrumentos de registro e memória.
No autismo os trabalhos científicos não são comuns, havendo escassas referencias especialmente a
alguns notáveis sujeitos com Síndrome de Savant variação do autismo que apresenta como
característica a presença de habilidades extraordinárias em alguma das áreas do desenvolvimento
(SACKS, 1995, REILY, 2001),.
Considerando estas possíveis peculiaridades, este trabalho teve como objetivo caracterizar e analisar os
desenhos de uma criança autista, a fim de discutir as diferenças na figuração deste sujeito e as
implicações para o processo de alfabetização.
Método
Coleta de Dados
Para cumprir os objetivos este estudo utilizou oito desenhos e as respectivas condições de produção de
uma criança autista. Os desenhos foram produzidos durante sessões de terapias fonoaudiológicas após
a leitura, contagem e exploração de livros de histórias infantis. As histórias contadas previamente aos
desenhos foram, respectivamente: João e os Feijões Mágicos, Polegarzinha (H.C. Anderson), A
pequena Vendedora de Fósforos (H.C. Anderson), Branca de Neve (Irmãos Grimm), Cinderela (H.C.
Anderson), e desenhos da história João e Maria (Irmãos Grimm) e Chapeuzinho Vermelho (Irmãos
Grimm). Todos os livros são da coleção de livros infantis No País das Maravilhas.
Método de análise
Os desenhos foram analisados a partir de uma abordagem microgenética (GÓES, 2000). Esta
perspectiva de análise entende os detalhes, as minúcias, os pormenores como reveladores dos
processos cognitivos, sociais e, portanto, da construção da subjetividade. Considerando este método
de análise, este estudo é caracterizado como qualitativo.
Para realização das análises será considerado que: “o objeto figurativo testemunha os objetos da
cultura da criança, constitui o lugar de encontro de forças ativas e é resultado de “recortes”
perceptivos da realidade que a criança conhece.” (FERREIRA, 2003. p. 59).
Sujeito
A criança autista deste estudo é do sexo masculino, tem 8 anos e foi diagnosticado como autista aos 3
anos por um psiquiatra que seguiu os critérios do CID-10 (1993). Neste estudo esta criança receberá o
nome fictício de André, a fim de preservar sua identidade.
André mora em uma cidade do interior do Estado de São Paulo, estuda desde 2002 em um colégio
particular de pequeno porte e realiza semanalmente terapias psicopedagógica e fonoaudiológica. Na
escola ele é acompanhado por uma auxiliar que o ajuda com as atividades acadêmicas e na adaptação
nas atividades sociais como festas, hora do lanche etc. Ele mora com a mãe e com o irmão e fica
durante o dia aos cuidados de uma babá.
Sobre suas características de linguagem é possível observar que ele compreende tudo que lhe é falado e
há dois anos vem intensificando a produção oral. Atualmente sua oralidade se caracteriza por palavras,
frases simples e alguns gestos como apontas e recusar algo. Normalmente estas formas de comunicação
são utilizadas de maneira contextualizada e com efetividade. Observa-se também o uso de vocalizações
ininteligíveis, choro, sorriso e formas de expressões corporais como pegar, mostrar, usar as mãos dos
outros para expressar desejos.
Com relação a seu modo de funcionar cognitivamente nota-se que André apresenta possibilidades de
uso de atenção voluntária permanecendo tempo longo em atividades como ouvir histórias; uso de
imaginação e (re) criação em momentos de montar maquetes/fazendinhas e usar demais brinquedos
como jogos, carrinhos etc. Além disso, ele demonstra interesse na maioria das atividades propostas.
Sobre a alfabetização André vem mostrando que identifica as letras, sabe juntá-las para escrever,
compreende que as histórias dos livros são contadas por escrita, sabe e se interessa em copiar palavras
e frases, vocaliza sons ininteligíveis enquanto acompanha com o dedo as frases dos livros demonstrando
desejo ou conhecimento de leitura.
André produz desenhos em diversos momentos do dia, figurando na maioria das vezes monstros. O ato
de desenhar para André pode ser interpretado como um comportamento estereotipado do autismo,
uma vez que ele desenha sempre os mesmos desenhos, várias vezes e não permite que seja
interrompido ficando irritado quando isso acontece.
Sobre o comportamento é possível verificar que André às vezes apresenta intolerância a recusa de
algum de seus desejos, ficando extremamente irritado, chorando, gritando e se atirando ao chão.
Devido a estes comportamentos e a agitação lhe foi receitado Risperidona (2 mg/dia). Após o uso do
medicamente ele se mostrou mais atento, receptivo e tolerante aos limites.
Resultados
O conjunto dos desenhos permitiu a identificação de três eixos temáticos para agrupar e analisar os
dados. O primeiro deles diz respeito aos modos de grafia utilizados, o segundo é relativo à significação
e o terceiro enfoca o envolvimento da linguagem oral com a produção gráfica.
Sobre a grafia foi possível observar que André faz uso preferencialmente de lápis de grafite, caneta ou
lápis de cor. Porém nota-se que o desenho inteiro é produzido com um único lápis ou caneta, não
havendo variação de cores conforme o que está sendo desenhado. Esta característica não foi notada no
desenho da Cinderela em que ele utilizou quatro cores (marrom, rosa, amarelo e preto), porém fez o
príncipe e a escada inteiros de rosa, a Cinderela e o sapato de amarelo, o castelo de marrom e algo
destacando o sapato em preto.
Foi possível perceber também que André não apaga quando erra, ele segue desenhando por cima dos
erros, quando os comete e no momento em que a ponta do lápis quebra, ele não se incomoda, pegando
outro lápis igual ou diferente e continuando a desenhar.
É importante destacar que em todos os momentos de produção eram oferecidos muitos lápis coloridos,
giz de cera, caneta hidrocor, borracha, apontador etc.
Durante a confecção dos desenhos foram realizadas intervenções a fim dele perceber a diferenciação
das cores e o uso de diversos lápis no desenho. Ele aceitou, pegou outros lápis, porém não varia
sozinho, desenha até que lhe seja apresentada outra cor.
Ainda com relação à grafia observou-se que André ocupa o espaço da folha de maneira adequada e
todo o papel, sobrepondo, muitas vezes, os desenhos. Algumas vezes ele desenha com a folha na
horizontal outras vezes com a folha na vertical.
Em alguns momentos, especialmente nos desenhos sobre a história da Branca de Neve, Polegarzinha e
João e o Pé de Feijão André desenha os monstros que são diariamente desenhados de maneira
estereotipada junto com os personagens da história.
A grafia da figura humana varia, sendo desenhada algumas vezes em formato de palito e outras não. É
significativo destacar que no primeiro desenho realizado, após a história do João e o Pé de Feijão,
André não desenha os personagens, apenas o cenário da história.
Com relação à significação possível de serem atribuídas aos desenhos nota-se que houve em todos os
desenhos a tentativa de representar a história contada anteriormente. Em geral suas figurações retratam
toda a história, incluindo movimentos presentes no texto. Por exemplo, o desenho sobre a história João
e os Feijões Mágicos André figurou uma casa no chão, uma árvore alta e um castelo em cima de
árvore, já no desenho da Branca de Neve ele fez ao centro da folha um castelo com uma bruxa e ao
canto da folha uma floresta com uma pequena casa. No desenho da Pequena Vendedora de Fósforos
ele desenhou o chão onde a menina que está vendendo fósforo está e ao alto uma senhora,
representando possivelmente a avó que vive no céu e veio para salvá-la. E no desenho da Cinderela ele
desenhou o castelo, uma escola, o príncipe do castelo, a Cinderela no pé da escada e o sapato ao meio
da escada.
E sobre o último eixo temático foi possível observar que André faz uso da oralidade durante seus
desenhos, expressando palavras presentes nas histórias. Isto foi sendo percebido no decorrer das
sessões, inicialmente ele permanecia calado enquanto desenhava, porém começou a tentar narrar as
histórias enquanto desenhava a partir da história da Branca de Neve, quando ele dizia repetidas vezes a
palavra “bruxa” e “castelo”. Já na história da Cinderela ele dizia “Cinderela correndo”, “o sapato”, o
“príncipe”.
Discussão
Com relação ao primeiro eixo temático é significativo destacar que André não se preocupa com a
representação gráfica de seus desenhos, característica esta distinta dos casos de autismo em que o
desenho é caracterizado por uma habilidade prodigiosa (SACKS, 1995; REILY, 2001), no entanto,
seus desenhos então, carregados de representações e significados presentes nas histórias. Este fato
pode demonstrar que embora André desenhe diversas vezes ao dia, não aceite ser interrompido durante
suas produções, ficando com olhar fixo no papel, seus desenhos não refletem mais um caráter
estereotipado, como inicialmente parecia.
Então, esta característica do desenho estereotipado parece não estar mais presente em seus desenhos,
tendo sido transformada durante as produções do desenhos, mediadas pela linguagem (do outros e dos
próprios desenhos).
Sobre as significações observa-se que os desenhos dele representam as histórias, os personagens, os
objetos permeados pela linguagem, pensamento, imaginação, no entanto, algumas das figurações têm
como base a imitação, não idêntica, das figuras presentes nos livros, isto fica evidenciado pelos
desenhos da História do João e Maria, no qual ele desenha a casa de doces. Entretanto, no primeiro
desenho embora ele imite a casa é importante destacar que ele o faz não de forma estereotipada, uma
vez que, durante a história ele demonstra gostar e estranhar a casa repetindo várias vezes as palavras
“doces, chocolates, balinhas”. Então, esta parte da história parece ter feito sentido a ele.
Já no segundo desenho ele retrata a bruxa segurando um pedaço de osso, representando a parte da
história em que a velinha/bruxa confere se João engordou pelo seu dedo e ele ao invés de permitir que a
bruxa examine seu dedo ele oferece a ela um osso. Neste desenho, é possível observar que André não
retratou a bruxa exatamente igual aquela representada na ilustração do livro, porém a fez no meio da
folha, sem pernas, e segurando um osso exatamente igual ao do livro. A bruxa que ele desenha é uma
representação cultural de bruxa (nariz grande com verruga e dois dentes).
Outro traço importante de ser observado no desenho de André é a representação do movimento da
história, é como se ele desenhasse a narrativa da história. Esta característica é normalmente notada em
desenhos de crianças mais velhas, uma vez que, as crianças pequenas figuram objetos e não palavras.
Este tipo de desenho de André é precedente da escrita, ou seja, trata-se de uma representação de
segunda ordem (VIGOTSKI, 2000a). Este fato demonstra que André está avançando no processo de
alfabetização.
O terceiro eixo temático permite afirmar que a fala apresentada por André tem papel importante na
produção do desenho. Esta fala é caracterizada por Vigotski (2000b) como uma forma de organização
do pensamento, um modo de estruturar e planejar as ações, mediar o próprio funcionamento cognitivo.
Para este autor esta fala é apresentada de maneira articulada durante o inicio do processo de
constituição de linguagem, sendo internalizada e se transformando em fala interior.Então, para Vigotski
(2000b) a fala egocêntrica não se limita a acompanhar as ações, mas também as orienta e permite
reflexões sobre as atividades.
Como foi possível observar a fala de André era composta por palavras relacionadas ao que estava
sendo produzido, isto ocorreu, pois fala egocêntrica não apresenta as mesmas características sintáticas
que a fala social, uma vez que é abreviada, composta por palavras soltas.
Desta forma, se pode dizer que André, embora tenha oito anos, está desenvolvendo a linguagem e ainda
precisa de palavras articuladas/fala egocêntrica durante a realização dos desenhos.
Considerando os resultados e análises do terceiro eixo acredita-se então, que André está vivenciando o
inicio do processo narrativo, exercitando a linguagem – tanto de forma egocêntrica quanto de forma
social – o que deve significar uma transformação profunda em seus modos de funcionamento cognitivo.
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