http://www.psiquiatriainfantil.com.br/congressos/uel2007/280.htm


Londrina, 29 a 31 de outubro de 2007 – ISBN 978-85-99643-11-2

O BRINCAR E A MEDIAÇÃO: REFLEXÕES SOBRE O BRINCAR DA CRIANÇA SURDOCEGA PRÉ-LINGÜÍSTICA
Marcia Maurilio Souza,
Assistente Social, Especialista em Educação de Pessoas Deficientes Sensoriais e Deficientes Múltiplas Sensoriais, Mestranda da Universidade de São Paulo, Faculdade de Educação.
AHIMSA – Associação Educacional Para a Múltipla Deficiência


RESUMO

Este trabalho mostra a importância do brincar para o desenvolvimento da criança, sua aquisição de linguagem e comunicação. Para a criança surdocega pré-lingüística este brincar deve ser mediado pelas pessoas que o cercam, para que haja o brincar efetivo e ele seja um instrumento de sua aprendizagem. A família precisa ser capacitada para ser o principal mediador para a criança surdocega, entendendo a importância do brincar e do brinquedo para o seu desenvolvimento global.
Palavras Chaves: surdocego, família, linguagem, comunicação, brincar e brinquedo.

INTRODUÇÃO
Neste trabalho refletiremos sobre a importância do brincar e do brinquedo para o desenvolvimento da criança, dando ênfase à aquisição da linguagem e levando-se em conta a necessidade do mediador como facilitador deste processo. 
Nosso enfoque será a criança surdocega pré-lingüística, para a qual é primordial a intervenção do mediador para que ocorra sua interação com as pessoas e o mundo ao seu redor. Somente com a facilitação do mediador a criança surdocega terá sucesso no processo de aquisição de linguagem e desenvolvimento de sua comunicação. No brincar, o mediador terá um papel importante motivando a criança surdocega para a descoberta de materiais e brincadeiras diferentes.
Este trabalho procurará demonstrar a importância da participação efetiva da família, sendo esta preparada e orientada para esta participação, os benefícios e o aproveitamento que a criança surdocega tem quando a família entende a necessidade do brincar e do brinquedo para o desenvolvimento do seu filho surdocego.

METODOLOGIA
-     Observação de uma criança surdocega em um momento de recreação livre na AHIMSA – Associação Educacional para Múltipla Deficiência Sensorial.
-     Análise do filme realizado durante a recreação
-     Entrevista com o profissional que atende a criança observada.

RESULTADO
1          O BRINCAR E O BRINQUEDO: a importância para o desenvolvimento infantil
A aquisição de linguagem: a mediação e o brincar
Vamos iniciar nossas reflexões apresentando as teorias de Froebel que nos diz que o adulto é o mediador para a criança no processo de aquisição de linguagem, ele nomeia e dá significado a objetos e ações. A mãe brinca com a criança e nomeia a ação, os locais, dando condições para a criança entender o fenômeno e sua denominação. Outro ponto importante para Froebel é o sentimento de pertencimento que a criança deve ter em relação à comunidade e isto deve iniciar-se na família, somente com este sentimento a criança consegue desenvolver plenamente sua linguagem. (KISHIMOTO, 2007)
Gostaríamos de considerar a relação mãe-filho, segundo Verden-Zöller (2004, p. 137) “entendendo que a maternidade é uma relação permanente de cuidado que um adulto adota com uma criança”. Isto é, todo adulto que seja o mediador do mundo para a criança terá este papel de “maternagem”.
A mãe, segundo Froebel interage com a criança pequena todo o tempo, durante o cuidado pessoal, trocas de roupa, banho, a alimentação, nomeando as partes do corpo e isto auxilia o “desenvolvimento da linguagem e a consciência de si e das partes de seu corpo”. (KISHIMOTO, 2007, p. 47)
Nesta linha de pensamento Verden-Zöller (2004, p. 146) afirma que “o bebê encontra sua mãe na brincadeira antes de começar a viver na linguagem. Todavia, a mãe humana pode encontrar o bebê na linguagem e no brincar, pois já está na linguagem quando começam as conversações que constituem o seu bebê.”
As primeiras formas de comunicação da criança são gestos e expressões faciais, assim como o choro e o riso, e suas intencionalidades são interpretadas pela mãe que já possui a linguagem. Estas respostas que a mãe dará a estas expressões que com o tempo e sua consistência se transformará em comunicação.
Froebel menciona também, as brincadeiras interativas, que seriam aquelas de esconder objetos, e perguntar a criança onde está, esperar que ela procure, dar a resposta e a afirmação do acerto ou erro vem do adulto como feedback. “O brincar envolve o clima interativo e prazeroso com situações marcadas por uma pergunta, uma resposta e um feedback”. (KISHIMOTO, 2007, p. 51)
Esta dinâmica de minha vez sua vez, é uma das bases da linguagem, além da formação de conceitos de lugar, nomes de objetos e ações. As brincadeiras interativas trazem todas estas possibilidades de aquisição e ampliação da linguagem. Bruner também se refere ao jogo como “uma forma de caracterizar o diálogo, com papéis, turnos de pegar iniciar e responder” (KISHIMOTO, 2007).
Outro momento importante das brincadeiras é quando estas se dão com a utilização de objetos ou brinquedos. A criança observa e interage com o objeto, o adulto nomeia o movimento, por exemplo “rolar a bola” e a ação “pegar a bola”, que leva ao “brincar-palavra” a que Froebel se refere. A criança adquire o saber-fazer nas ações, compreende o fenômeno e a sua denominação e a aquisição da linguagem o acompanha. (KISHIMOTO, 2007)
Confirmando Froebel, Vigotsky (1998) afirma que a criança começa a dar significado às coisas, a partir de sua ação sobre o objeto, que é o que dará as propriedades dos objetos. Esta ação sobre o objeto dará à criança as experiências necessárias para a formação do conhecimento.
Em relação à mediação, Vigotsky (1998) ressalta a importância do outro social no desenvolvimento, através da ênfase que dá aos processos sócio-históricos. Nesta visão, os indivíduos têm uma interelação ou interdependência, sendo assim, os adultos do grupo social a que a criança pertence devem propiciar situações de aprendizado, pois será através da interelação adulto-criança-meio social que se dará o seu desenvolvimento.
Vigotsky (1984) nos fala em dois níveis de desenvolvimento, o nível de desenvolvimento mental real da criança e o nível de desenvolvimento proximal. Quando avaliamos estes dois níveis podemos determinar o estado de desenvolvimento mental dela. Isto é, o que a criança consegue fazer hoje com ajuda, por imitação, demonstra que ela conseguirá fazer sozinha no futuro.
Em relação ao brinquedo e a zona de desenvolvimento proximal, Vigotsky (1984, p.122) afirma que “no brinquedo, a criança sempre se comporta além do seu comportamento habitual de sua idade, além de seu comportamento diário; no brinquedo é como se ela fosse maior do que é na realidade”.

2          O BRINCAR E A CRIANÇA SURDOCEGA PRÉ-LINGUISTICA –  A importância da mediação
A mediação é o principal instrumento para o desenvolvimento emocional e social, da comunicação e aquisição da linguagem da criança surdocega.
Os membros da família da criança surdocega deveriam ser os primeiros mediadores do mundo para ela, mas geralmente isto não ocorre, porque ninguém está preparado para receber uma criança surdocega e as dificuldades são enormes. O que deveria acontecer naturalmente, no caso da família da criança surdocega, necessita ser aprendido. Como na maioria dos casos o diagnóstico acontece tardiamente ou de forma errônea, as crianças surdocegas perdem um tempo de vida precioso sem os estímulos apropriados para o seu desenvolvimento, porque esta família não está preparada para educar este filho surdocego. (ARAOZ, 1999), (SAMANIEGO & MUNHOZ, 2004).
Segundo MacInnes & Treffy (1993), o primeiro passo para motivar a  criança surdocega para sair de dentro de si e começar a interagir com as pessoas e o ambiente é o mediador estabelecer um vínculo emocional com ela. Quando a criança ainda é pequena, este mediador será sua mãe, pai ou o cuidador.
Como refletimos anteriormente, como a família muitas vezes se desestrutura e não consegue desempenhar este papel e este processo, muitas vezes, começa a ocorrer tardiamente, nestes casos o mediador poderá ser um profissional da área da educação, mas ao mesmo tempo a família deverá ser orientada e capacitada para também fazer o papel de mediadora em seu lar e na comunidade, geralmente um dos membros da família estará mais próximo da criança e este deverá receber todas as informações necessárias para desempenhar este papel.
Este vínculo emocional entre a criança e o mediador se estabelecerá através do contato físico. Segundo Van Dijk (1965), este é o nível do afeto, está baseado no amor, neste nível cria-se uma relação de confiança entre a criança e o mediador. Através deste vínculo o mediador proverá motivação para que a criança surdocega interaja com o meio ambiente e as pessoas.
McInnes & Treffy (1993) nos coloca que após o mediador estabelecer os laços emocionais com a criança surdocega e ela tolerar interagir, o mediador deve continuar reforçando estes laços e ir adicionando outras ações como, facilitar e prover a necessidade da criança utilizar os resíduos auditivos e visuais e integrar estas sensações, além de estimular a comunicação da criança; outra ação é a de proporcionar a criança experiências em que ela tenha sucesso e assim o mediador irá fazê-la sentir-se capaz, melhorando assim sua auto-estima e motivação.
Outro fator importante para a aprendizagem da criança surdocega é a criação de um ambiente reativo, levando em consideração seu estilo de aprendizagem; neste modelo de ambiente reativo o mediador irá prover à criança surdocega experiências que ela realize sozinha com sucesso ou que a sua realização seja facilitada, é o “fazer com e não o fazer por ela”, ou seja, que ela consiga resolver problemas. Este ambiente deve ser totalmente conhecido pela criança em um processo que pode ser longo, pelas suas dificuldades de interação que são dificultadas pelas deficiências visuais e auditivas e o mediador terá o papel de facilitador, utilizando a comunicação com ênfase no diálogo; a criança deve com o tempo ter o controle do ambiente tomando as suas decisões. Sem a intervenção direta do mediador a criança surdocega não conseguirá interagir com o seu ambiente.  (McINNES & TREFFY, 1993)
Estas atividades que serão realizadas no ambiente de aprendizagem reativo devem ser apropriadas à idade da criança, neste sentido as brincadeiras e brinquedos devem ser brincadeiras obrigatórias no dia-a-dia da criança surdocega.

Como o mediador pode facilitar o brincar para a criança surdocega
Já vimos que o brincar é uma das melhores formas da criança desenvolver suas habilidades, lingüísticas, motoras, sócio-emocionais e cognitivas. Através da brincadeira se “aprende que pode controlar o ambiente e a ser mais competente com os objetos e as pessoas do seu ambiente”. (NUNES, 2001, p. 143)
Trôster e Brambring (1994,      APUD NUNES 2001, p. 144) realizaram uma pesquisa de como a deficiência visual influencia no brincar da criança, e nos apresentam a seguinte conclusão sobre o resultado da pesquisa, “a criança prefere brincar sozinha e com materiais com possibilidade de serem explorados auditiva e tatilmente. A exploração tátil dos artigos de vida diária e seus ambientes e a produção de sons fazem parte dos seus comportamentos típicos”.
Em se tratando de crianças surdocegas com cegueira total e resíduos auditivos podemos dizer que os resultados desta pesquisa são aplicáveis, porque as crianças surdocegas com estas características terão comportamentos muito parecidos com os de uma criança deficiente visual. A exploração tátil e auditiva dos objetos fará parte de seus comportamentos típicos.
Todavia, precisamos sempre estar atentos e observar como a criança recebe e processa a informação, qual é seu sentido de preferência ou sentidos de preferência, auditivo, tátil, visual, olfativo, cinestésico ou a combinação de dois ou mais. (GRUPO BRASIL, 2002)
Nunes (2001) nos coloca alguns aspectos que devemos levar em consideração para que a criança surdocega possa realmente brincar. A autora nos fala dos aspectos que envolvem a interação, ou o desejo de brincar que deve vir do interior da criança, ela deve ter possibilidades de fazer escolhas, mas somente poderá fazer estas escolhas se conhecer as possibilidades. No caso das crianças surdocegas estas possibilidades devem ser oferecidas pelo mediador, caso contrário a criança não terá acesso a elas incidentalmente. O brincar também deve proporcionar momentos de experiências significativas em que a criança seja o mais ativa possível no processo.
O mediador deve observar a criança surdocega, seus gostos e preferências e como ela responde aos objetos e às pessoas, deste ponto de partida o mediador irá proporcionar as experiências sensoriais adequadas a ela.
O brincar com o próprio corpo é um momento de grande importância para a criança surdocega, inventar jogos com as mãos, como: “tuas mãos, minhas mãos”, “vou te pegar” e outros. Aproveitar os momentos de troca de roupas e banho para brincar com as partes do corpo dando a ela a experiência de conhecer seu próprio corpo. (McINNES & TREFFY, 1993).
As crianças surdocegas devem ter oportunidades de brincar com materiais diversos e poderem explorar livremente estes materiais. Deve-se oferecer brinquedos com materiais que lhes sejam interessantes sensorialmente, de acordo com sua forma de exploração sensorial preferencial, como falamos anteriormente.
Neste momento o mediador tem papel fundamental, porque ele quem irá prover a criança à oportunidade de reconhecer o objeto, entender sua função e avaliar o resultado de sua intenção de utilizá-lo. O mediador deve oportunizar um modelo de utilização para que a criança possa comparar seus esforços. (McINNES & TREFFY, 1993)
Outro aspecto importante que Nunes (2001) ressalta é o tempo que deve ser dado para a criança surdocega explorar e ter as experiências, cada criança tem seu tempo e ele deve ser respeitado. Outro ponto importante é a necessidade de sempre variar o conteúdo e o contexto do brinquedo e da brincadeira.
Em relação à utilização de objetos e brinquedos McInnes & Treffy (1993) nos faz as seguintes afirmações, que as crianças surdocegas têm a tendência de se auto-estimularem com os objetos e brinquedos e não realmente interagirem com eles. A criança surdocega necessita entender a função que os objetos têm no mundo real para que possa realmente brincar de forma imaginativa com uma boneca, caminhão ou casa de bonecas. Ela “não pode imitar e ampliar seus horizontes com atividades de que desconhece sua existência”. (p. 17)
Neste sentido Vigotsky (1984) afirma que no brincar a pouco de imaginário, que a imaginação é a memória em ação do que já foi vivido. “É uma situação imaginária, mas é compreensível somente à luz de uma situação real que, de fato, tenha acontecido” (p. 123). Por isso a importância da criança surdocega ter conhecimento da função real dos objetos / brinquedos para que possa brincar, imitando o real.

3       REFLEXÕES SOBRE OBSERVAÇÕES DO BRINCAR DE UMA CRIANÇA SURDOCEGA
Gostaríamos de fazer algumas considerações sobre observações que realizamos a título de pesquisa para realização deste trabalho de crianças surdocegas em momentos de brincadeiras na AHIMSA – Associação Educacional para a Múltipla Deficiência, faremos uma análise das observações à luz das teorias expostas neste trabalho.
Um grupo de crianças participou de um momento de recreação livre, com diversos tipos de brinquedos disponíveis em cantos da sala, havia também música no ambiente. Os mediadores estavam em menor número em relação às crianças e não atuavam em todos os momentos, deixando as crianças explorarem sozinhas os brinquedos, sendo que algumas por suas dificuldades motoras necessitavam da mediação permanente para manipulação dos brinquedos.Devemos informar que esta foi a primeira experiência com este tipo de dinâmica com as crianças observadas, portanto uma experiência nova para as crianças e os mediadores.
Nesta atividade as crianças estavam soltas e livres para buscarem dentro de suas possibilidades os brinquedos e brincarem com eles da maneira que desejavam. Dentro deste grupo gostaríamos de dar atenção especial a uma das crianças, que chamarei de C., ele tem 8 anos, é uma criança surdocega (com baixa visão e resíduos auditivos) que tem boa mobilidade para buscar os brinquedos que estavam disponíveis pela sala e nenhuma dificuldade motora para manipulá-los e explorá-los.
C. se mostrou interessado por vários brinquedos, pegava-os e manipulava-os, como por exemplo, uma bexiga, garrafas de refrigerantes com objetos dentro que faziam barulhos diferentes, a tampa plástica de uma das caixas de brinquedos, entre outros. Observamos que ele manipulava todos os objetos da mesma forma, balançando-os acima de sua cabeça contra a luz quando eram pequenos ou ajoelhado no chão com o objeto a sua frente, balançava seu corpo em direção a eles.
C. se envolvia pouco tempo com o brinquedo e logo estava em busca de outro e outro. Em muitos momentos procurava um dos mediadores e entregava o brinquedo para ele, para que pudesse balançá-lo para ele (ex. as garrafas) e balançava seu corpo e mãos acompanhando o movimento.
Quando o mediador ofereceu a ele um carrinho para brincar, não brincou como outras crianças de sua idade o faria, empurrando-o pelo chão ou puxando-o, balanço-o também como fazia com os outros objetos, mesmo quando o mediador movimentou o carrinho no chão mostrando a ele como fazia não deu importância e não imitou a brincadeira.
C. se interessou em certo momento pela música e aproximou-se do aparelho para mexer, primeiro nas caixas acústicas e depois brincou com o fio do aparelho, mas puxou-o até que se soltasse da parede, quando a música parou de tocar percebeu que algo errado havia acontecido e tocou a caixa para sentir a vibração do som que não havia mais.
Um dos mediadores o convidou para dançar e colocou-o em pé, porque quase o tempo todo ele se arrastou pelo chão, de mãos dadas com o mediador ele dançou durante algum tempo e desfrutou da brincadeira, inclusive neste momento o mediador aproveitou para motivá-lo a interagir com outra criança que dançava também.
Podemos analisar o brincar de C. tendo como base a “Escala de Envolvimento da Criança” (Laevers, 1994) que caracteriza o envolvimento no brincar através de alguns indicadores como: concentração, energia, complexidade e criatividade, expressão e postura, persistência, precisão, tempo de reação, linguagem e satisfação durante o ato de brincar.
Queremos levar em consideração alguns aspectos da escala tendo em conta as características específicas da criança surdocega pré-lingüística. Tendo em vista os brinquedos utilizados por C. durante as atividades de brincar observadas gostaríamos de analisar os seguintes indicadores, a concentração que leva em consideração a atenção da criança em relação à atividade; a persistência, que leva em consideração a concentração na atividade, a criança não abandona facilmente o que está fazendo e não abandona a atividade que lhe dá prazer, não se distraindo com o que acontece à sua volta; e a complexidade e criatividade, que leva em consideração o quanto a criança se dedica a um comportamento mais complexo, demonstra suas melhores competências e dá um toque pessoal ao que faz. (LAEVERS, 1994)
A primeira vista, analisando leigamente, poderíamos dizer que C. é uma criança que brinca, que interage com os brinquedos e objetos e até mesmo com outras pessoas durante a brincadeira. Mas quando analisamos mais profundamente, observando as filmagens que foram realizadas e tendo em vista a Escala de Envolvimento da Criança como citamos anteriormente, podemos dizer que C. manipula os objetos / brinquedos todos da mesma forma, indistintamente, sem distinguir suas funções e a “maneira correta” de brincar com eles. Parecia muito envolvido com a bexiga, no entanto teve a mesma ação com os outros brinquedos e objetos, denotando o seu “não brincar”. Poderíamos afirmar que C. apenas se auto-estimula com os brinquedos.
C. estava “brincando” com a bexiga, ela movia-se pelo chão por sua leveza, quando neste mover-se C. se aproximava de outro objeto / brinquedo ele a abandonava e iniciava a “brincadeira” com o outro brinquedo, abandonando o primeiro e assim por diante. Sua concentração e persistência na atividade eram muito pequenas, se distraia facilmente com outros estímulos e trocava de atividade muito facilmente.
Em relação ao aspecto complexidade e criatividade, C. não demonstrou em nenhum momento estes aspectos em seu brincar, pois brincava com todos os objetos / brinquedos da mesma forma e quando lhe foi oferecido o carrinho para brincar, não o utilizou de forma adequada.
Demonstrando a necessidade de mediação, C. é um exemplo desta necessidade, primeiro porque busca o mediador para estar com ele na brincadeira, usando-o a princípio para fazer movimentar os objetos, depois porque precisa aprender a brincar de forma adequada com os diferentes brinquedos. Estas ações de auto-estimulação que repetia constantemente podem cessar se um mediador dar início a um programa com atividades de brincadeiras significativas para C. como já refletimos anteriormente com as afirmações de McInnes & Treffy (1993) e Nunes (2001).
Em entrevista com a professora de C. ela nos colocou que ele necessita de um ambiente mais quieto e com menos estímulos, nestes ambientes se mostra mais atento ao que realiza. A professora também relatou que C. é uma criança que é pouco estimulada com brincadeiras em sua casa, porque convive somente com pessoas adultas sem a presença de irmãos, primos ou outras crianças, que pudessem interagir com ele e estimular um brincar mais próximo do brincar da criança “normal”.

DISCUSSÃO
Analisando as observações e o relato podemos refletir sobre a necessidade de um ambiente reativo de aprendizagem no momento da brincadeira. Quando vamos organizar momentos de recreação, os mediadores precisam ter em mente as preferências de aprendizagem da criança surdocega, para organizar um ambiente agradável para ela.
A proposta destes momentos de recreação na AHIMSA é de estimular o brincar livre da criança surdocega. A experiência foi válida, porque foi a primeira e serviu como base de análise para a organização dos próximos momentos de recreação. Neste caso as crianças estavam divididas em um grupo por idade, entre 5 e 8 anos. A formação dos grupos necessitará nas próximas oportunidades ter em vista também o ambiente reativo apropriado para a criança, formando assim grupos que se aproximem em suas preferências de aprendizagem, assim como o tempo de recreação, que ao nosso ver não poderá ultrapassar uma hora de atividades, para não se tornar cansativo para as crianças.
Outro ponto importante que deve ser levado em consideração é a necessidade da família ser orientada em relação ao brincar de seus filhos surdocegos. A família de C. precisará ser orientada neste aspecto, em como brincar e proporcionar brincadeiras significativas a ele em sua casa, através da demonstração para esta família da necessidade que C. tem de ter momentos de brincadeiras organizadas e mediadas. Como estes momentos proporcionarão uma aprendizagem ao nível de melhoria de comunicação, interação com outras pessoas, adultas e crianças.
Geralmente as famílias sentem-se muito inseguras em relação ao processo de educação de seu filho surdocego e em relação ao brincar não é diferente, o brincar mãe-filho, o brincar com os irmãos e tantas outras oportunidades de brincar não são oportunizadas para esta criança. Por isso a necessidade desta família ser capacitada e preparada para lidar com seu filho em todos os momentos, conhecendo verdadeiramente as necessidades desta criança e seu processo de aprendizagem.
A mediação é outro fator primordial para o brincar da criança surdocega. As pessoas da família poderão ser verdadeiramente os mediadores do mundo para a criança surdocega, introduzindo-a no mundo através das brincadeiras mais simples, corporais a princípio e com os objetos de sua preferência, apresentando histórias com objetos reais, brinquedos, sinais táteis e tantos outros recursos que podem ser usados nestes momentos lúdicos.

REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS
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McINNES, J. M., TREFFY, J. A., Guia para o desenvolvimento da criança surdocega. Título Original:  Deaf-blind infants and children – A developmental guide. Tradução: Mary Inês R. M.. Revisão: Laura L.M. Anccilotto. 2007. Toronto: University of Toronto Press.1993.
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