http://www.psiquiatriainfantil.com.br/congressos/uel2007/282.htm |
|
Londrina, 29 a 31 de outubro de 2007 – ISBN 978-85-99643-11-2
O TRABALHADOR COM DEFICIÊNCIA FÍSICA NA ÁREA DE ASSENTAMENTO
RURAL
Izaura Maria de Andrade da Silva - UFMG1
1 Bolsista internacional da Fundação Ford e doutoranda na linha de pesquisa de políticas educacionais da
Faculdade de educação da UFMG
RESUMO
O presente artigo aborda alguns resultados de uma pesquisa realizada na área rural com o objetivo
de conhecer as condições de trabalho, educação, saúde e mobilidade dos trabalhadores com
deficiência física na área de assentamento do Abiai, e a análise que esses trabalhadores fazem de
sua situação. Neste texto são focalizadas as condições de trabalho das pessoas com deficiência
física na área rural e suas interpretações sobre essa realidade. A coleta de dados realizou-se através
da observação participante, entrevistas e pesquisa documental. Os resultados da pesquisa
mostraram que para pessoa com deficiência física vivenciar de forma mais plena seu status de
trabalhador é necessário o acesso à habilitação/reabilitação, que inclui educação básica e
profissional, assistência à saúde, órteses e próteses adequadas à área rural, transportes que
garantam a locomoção de todos; instrumentos e tecnologias de trabalho que possibilitem a atuação
nas atividades agropecuárias e o reconhecimento de serviços já desenvolvidos por esses
trabalhadores, através de organização de cooperativas ou de contratação pelos poderes públicos.
Introdução
O presente artigo aborda alguns resultados de uma pesquisa realizada na área rural sobre
trabalhadores com deficiência física, especificamente nos assentamentos ligados aos movimentos de
trabalhadores do campo. São focalizadas informações e discussões relacionadas às condições de
trabalho das pessoas com deficiência física na área rural e suas interpretações sobre essa realidade.
O estudo está fundamentado na concepção de trabalho como práxis social. Trabalho como um
conjunto de ações, que é desenvolvida pelo ser humano para transformar a natureza, a sociedade,
os outros homens e a si próprios com o objetivo de produzir as condições necessárias para sua
existência. (KUENZER, 2001) Ao transformar a natureza, o ser humano transforma a si mesmo e
se organiza em sociedade, em vista de suas mais diferentes necessidades, que vão da sobrevivência
até a criação artística, cultural e científica. É na recriação de si mesmo e do seu mundo que dá
significado à sua ação e ao seu pensamento. Desde a mais tenra idade até o final da vida, esse
processo é experienciado pelo indivíduo em intensidades diferentes. Trabalhar, poder contribuir
para a transformação da natureza, da sociedade e de si próprio é um direito e um dever de todos; é
uma fonte de realização pessoal. A incapacidade gerada pela deficiência pode impedir o individuo
de executar determinadas atividades laborativas, mas não o invalida como ser criador de si mesmo e
de seu mundo. Além do mais, a maioria das incapacidades que o ser humano pode ter não é
decorrente da deficiência, mas é gerada pela falta de acesso à habilitação/reabilitação, à educação
básica e profissional; decorrentes também de costumes, valores e expectativas sociais
preconceituosas. Além dos objetivos intelectuais de conhecer aspectos da realidade objetiva e
subjetiva dos trabalhadores com deficiência física, foram definidos objetivos educacionais e sociais,
integrando o papel da pesquisa com o da extensão e para tal, foi contatado um grupo que
desenvolvia um trabalho educacional e de assistência à saúde, na área de assentamento do Abiai, e
exposto os objetivos de pesquisa e minha proposta de contribuir com as atividades de extensão,
especialmente na orientação sobre direitos e encaminhamentos das pessoas com deficiência para
os serviços disponíveis.
Metodologia
A pesquisa foi realizada com pessoas com deficiência física e familiares que residiam nos Projetos
de Assentamento Nova Vida, Teixeirinha e Primeiro de Março, ligados ao Movimento dos
Trabalhadores Rurais Sem Terra (MST) e nos Projetos de Assentamento Apasa e Sede Velha,
ligados à Comissão Pastoral da Terra (CPT), município de Pitimbu, no litoral sul da Paraíba,
Nordeste do Brasil.
No início, projetei investigar os acampamentos e Assentamentos do MST na Paraíba, mas esbarrei
na dificuldade de acesso. Na época, eram nove núcleos espalhados pelo litoral, brejo e sertão do
Estado. Também entendi que uma amostragem menor facilitaria o aprofundamento da questão
estudada. Decidi-me por cinco projetos de assentamentos da área do Abiai, situados no Litoral Sul
do Estado. Além de estarem localizados na mesma microrregião, outro motivo da escolha foi a
existência de um grupo universitário de extensão de assistência à saúde, que atuava na área. Fato
que viabilizou a observação participante e a realização de objetivos educacionais e sociais. Integrei
a equipe de extensão, que era formada por profissionais da área de saúde e educação, articulados
pela Pró-reitoria de Assuntos Comunitários da Universidade Federal da Paraíba e pela
Coordenação de Saúde do Movimento dos Trabalhadores Rurais Sem Terra da Paraíba. Esta
equipe, acompanhada pelos trabalhadores do Programa de Agentes Comunitários de Saúde do
Abiai, visitou semanalmente os assentamentos e realizou várias atividades entre março e outubro de
1999, dentre as quais se destacam: reuniões de planejamentos e avaliação com a comunidade visita
domiciliar; consultas médicas; realização de quatro encontros de formação em saúde, com temas
propostos pela comunidade
As atividades voltadas exclusivamente para as pessoas com deficiência consistiram em visita
domiciliar, orientação e encaminhamento para serviços disponíveis de atendimento, consultas
médicas2, avaliação fisioterapêutica3 com elaboração de parecer funcional e laudos atestando a
deficiência. Os laudos fazem parte da documentação necessária para a aquisição do benefício da
previdência e da carteira intermunicipal, garantindo à pessoa com deficiência o trânsito gratuito em
ônibus do Estado. Nos encontros de formação com os dirigentes e as comissões de saúde e
educação, realizados nos assentamentos, foram repassados e discutidos os resultados parciais da
pesquisa.
2 As consultas foram realizadas pela Drª Gláucia Maria de Luna Ieno, integrante da equipe de extensão.
3 O parecer funcional foi colaboração da fisioterapeuta Kátia Suely Queiroz S. Ribeiro.
O primeiro passo da pesquisa foi identificar as pessoas com deficiencia fisica nos assentamentos,
com o apoio dos agentes comunitários de saúde. Nessas regiões, foram identificadas dez pessoas
com deficiência física, sendo que três delas eram crianças menores de cinco anos. Estas foram
incluídas nas atividades de extensão, mas não foram consideradas na pesquisa, porque o enfoque
estava no trabalhador.
Tendo como base o objetivo de conhecer a realidade objetiva e subjetiva dos trabalhadores com
deficiencia fisica na área de assentamento utilizamos técnicas e instrumentos da pesquisa qualitativa:
Observação participante, entrevistas e, pesquisa documental em relatórios e diagnosticos
elaborados pelos tecnicos do INCRA referentes aos projetos de Assentamento estudados, e
também, nos dados relativos às pessoas com deficiencia no Brasil e na Paraíba do censo
demográfico de 1991 do IBGE.
As entrevistas não estruturada permitiram que os trabalhadores com deficiência e seus familiares
discorressem livremente sobre diversos aspectos de seu cotidiano. A técnica utilizada, entrevista não
estruturada serviu, ao mesmo tempo, como procedimento de pesquisa e alternativa de formação.
Ela permitiu o desvendar de elementos do próprio sujeito da narração, que muitas vezes nunca havia
sido estimulado a expressar organizadamente seus pensamentos sobre determinadas questões de
seu cotidiano. De acordo com Cunha (1997), o entrevistado ao expor a experiência vivenciada por
ele mesmo, realiza uma auto analise, que lhe cria novas bases de compreensão de sua própria
prática. A narrativa provoca mudanças na forma como as pessoas compreendem a si próprias e aos
outros.
As narrativas dos trabalhadores com deficiênciae de seus familiares são a sua representação da
realidade e, como tal, estão prenhes de significados e reinterpretações. Elas “revelam as
mediações existentes entre universos macroscópicos de significação, objetivados por uma
sociedade, e os modos pelos quais estes universos são subjetivamente reais para os
indivíduos.” (BERGER, & LUCKMANN, 1985, p.109).
As técnicas utilizadas, buscaram, também, revelar aos trabalhadores com deficiência física e aos
seus familiares aquilo que para eles mesmos ainda estava obscuro em relação a sua realidade
subjetiva e objetiva. Buscaram, ainda, despertar nos familiares e dirigentes dos projetos de
assentamento a sensibilidade para as capacidades e também para dificuldades específicas dos
trabalhadores com deficiência.
Após a pesquisa de campo e a transcrição das entrevistas, li e reli o diário de campo e os relatos
dos trabalhadores, buscando classificar as idéias e agrupá-las em blocos temáticos, organizando
assim o esquema do texto. Nas transcrições, foram realizadas correções ortográficas e gramaticais
nas falas dos trabalhadores com deficiência; porém mantive alguns erros em relação à língua oficial,
para garantir a lógica do raciocínio dos entrevistados, insistindo, entretanto, em que nada há de
errado na sua forma de falar. É que existe uma forma oficial de escrever, que vale ser conhecida e,
quando necessário, seguida, se isto facilita a comunicação.
Resultados e discussão
O quadro abaixo permite visualizar que o grupo de trabalhadores entrevistados está na faixa etária
entre 17 a 44 anos. Os tipos de deficiências detectadas são de origem congênita (2) e adquiridas
(5). As deficiências adquiridas foram decorrentes de acidentes de trabalho (1), atropelamentos (1),
virose (2) e verminoses, especialmente a esquistossomose (2). O tempo de instalação da deficiência
varia de dois a vinte e um anos. O comprometimento da função física, desde uma monoplegia até
uma tetraplegia. Entre os entrevistados, apenas um é do sexo feminino.
Perfil dos trabalhadores com deficiência física na área do abiai
Nomes4
|
Idade
|
Educação
Escolar
|
Estado
Civil
|
Sexo
|
Trabalho
|
Tipo De
Deficiência5
|
Causas Da
Deficiência
|
Ricardo
|
04/05/77
22 anos
|
2ª série
atualmente não
estuda
|
Solteiro
|
M
|
Serviços
domésticos
|
Deformidade dos
membros
inferiores, que se
apresentam
encurtados,
semi-fletidos,
com os quadris
em rotação
interna, joelhos
vagos e os pés
em inversão.
|
Adquirida,
provavelmente, de
uma virose.
|
Antônio
|
06/02/80
19
anos
|
1ª série
|
Solteiro
|
M
|
Atua na casa
de farinha e
com conserto
de bicicleta
|
Portador de pé
torto congênito,
apresentando
deformidade
bilateral.
Hipotrofia nos
membros
inferiores
|
Hereditária –
congênita
|
Noel
|
17/04/55
44
anos
|
Semi-analfabeto
|
Separado
|
M
|
Trabalha no
roçado perto
de casa e
ajuda nas
atividades
domésticas
|
Portador de uma
seqüela de
fratura de fêmur,
na qual houve
redução óssea,
resultando no
encurtamento do
membro inferior
direito.
|
Adquirida devido a
acidente de trânsito
|
Silvio
|
10/12/81-17
anos
|
5ª série
|
Solteiro
|
M
|
Estuda e
ajuda nas
atividades
domésticas
|
Apresenta uma
paresia dos
membros
inferiores, com
déficit de
movimentação
mais acentuado
no membro
inferior direito.
|
Adquirida devido ao
alojamento do vírus
da
esquistossomose
na coluna
|
Jacó
|
21/12/66
32
anos
|
Analfabeto
|
Casado,
quatro
filhos
|
M
|
Atividades
domésticas
|
Apresenta uma
seqüela de lesão
do nervo
periférico do
membro superior
esquerdo
|
Adquirida
proveniente de
acidente de
trabalho
|
Júlia
|
07/03/78
21
anos
|
Semi-analfabeto
|
Casada
com dois
filhos
|
F
|
Atividades
Domésticas
|
Portadora de uma
paresia dos
membros
inferiores que lhe
ocasiona
lentidão, falta de
coordenação e
equilíbrio
|
Adquirida devido
ao alojamento do
vírus da
esquistossomose
na coluna
|
José
|
22
anos
|
Analfabeto
|
Solteiro
|
M
|
Não exerce
nenhuma
atividade
|
Portador de
paralisia cerebral
|
Congênita –
icterícia devido a
incompatibilidade
sanguínea com a
mãe
|
4 Os nomes são fictícios para resguardar a identidade dos entrevistados
5 Essas informações foram contribuições das avaliações realizadas pela médica Gláucia Maria de Luna Ieno,
integrante da equipe de extensão e da fisioterapeuta Kátia Suely Queiroz S. Ribeiro.
Os trabalhadores da área do Abiai lidam basicamente com a agricultura, com a criação de animais e
com a industrialização da raiz da mandioca, no processamento da farinha. Existe um número
reduzido de trabalhadores assalariados que são contratados pela associação e pela prefeitura para
prestarem serviço na área de educação e de assistência à saúde.
A terra nos assentamentos é dividida em parcelas e entregue ao titular da família. A terra é o meio
de produção e a fonte de renda para as famílias cadastradas. Dos sete trabalhadores com
deficiência identificados apenas um dono de uma parcela de terra, isto é parceleiro. As outras
pessoas com deficiência física são componentes de famílias cadastradas ou agregadas, mas todos
participaram da luta pela conquista da terra.
As pessoas com deficiência atuam em atividades domésticas na fabricação da farinha, no roçado
que fica no quintal da casa, mas não são reconhecidos e nem se reconhecem como trabalhadores,
pois, para eles, trabalho é aquele que é remunerado, fundamentado no equívoco de que trabalho é
sinônimo de emprego, não conseguem diferenciar o ser trabalhador de ser força de trabalho. Não
conseguem perceber, que, através de atividades como: cuidado com as crianças, arrumação da
casa, preparação dos alimentos, contribui para a sustentação coletiva da sua comunidade,
realizando um trabalho concreto.
O fato de não perceberem que o trabalho que exercem é essencial para manutenção e sustentação
da família e conseqüentemente da comunidade leva-os a se sentirem totalmente dependentes da
família. Isto gera um sentimento de vergonha. Na verdade, a relação não é de dependência, mas de
cooperação; só que a família, a comunidade e principalmente os trabalhadores com deficiência não
se percebem como membros do trabalhador coletivo nas diferentes formas de cooperação.
A predominância dos trabalhos realizados pelas pessoas com deficiência física está restrita ao
espaço privado da casa, do lar. A deficiência limita a vida do trabalhador ao espaço doméstico,
trabalhos manuais, repetitivos, caracterizados pela ausência de intercâmbio.
A maioria dos trabalhadores com deficiência física afirma não ter condição de trabalhar direto no
roçado, que gostaria de exercer outra atividade, que fosse mais apropriada à sua condição de
portador de deficiência, ser produtivo, útil e ter garantida a sobrevivência;
Na área de assentamento estudada, os instrumentos que os pequenos produtores utilizam para o
preparo do solo e o plantio é rústico: é enxada, enxadeco, foice e, eventualmente, o aluguel do
trator, que é um bem coletivo dos assentados. Os trabalhadores dos assentamentos não dispõem da
tecnologia e da maquinaria necessária, que garanta um trabalho com menos dispêndio de força física
e desgastes. Se o trabalhador com deficiência física na área de assentamentos dispusesse das
maquinarias e tecnologia que facilitassem o trabalho agropecuário e acesso à
habilitação/reabilitação, que inclui a educação básica e profissional, assistência a saúde e órteses e
próteses adequadas à área rural, transportes que garantissem a locomoção de todos, esse
trabalhador teria condição de cultivar suas parcelas de terra.
A agricultura, nos projetos de assentamento, não é a única forma de trabalho geradora de renda.
Existem outras que são essenciais para a sobrevivência da comunidade rural: são os serviços ligados
a reposições de energias físicas, intelectuais, espirituais, afetivas dos trabalhadores. Atividades tais
como: preparação dos alimentos, cuidado com a saúde, com a educação, com o transporte, com a
organização da comunidade, etc. Trabalhos que precisam ser reconhecidos e valorizados
socialmente, através de uma remuneração adequada. A implementação destas atividades abriria
campos de trabalho para os outros trabalhadores que não têm condição ou não estão interessados
em atuar diretamente na agricultura, inclusive algumas pessoas com deficiência.
Uma das alternativas seria a organizações dos trabalhadores em cooperativas de produção e/ou
serviço na área de assentamento, com vista a atender as necessidades da comunidade e não a
demanda do mercado. A produção e o serviço seriam destinados às creches, hospitais, escola, etc.
e teriam sua manutenção garantida através de convênios com os governos municipais, estadual e
federal.
É preciso também atuar no sentido de garantir algumas precondições básicas para o exercício do
trabalho da pessoa com deficiência, como interiorização dos atendimentos de habilitação e
reabilitação.
Referência Bibliográfica
ALMEIDA, M. R. Diagnóstico do PA Apasa. João Pessoa:
Mimeo, 1999.
ASSOCIAÇÃO DE COOPERAÇÃO AGRÍCOLA DO ESTADO DA PARAÍBA – ACA/PB.
Relatório Anual de Atividade, maio de 1998 a março de 1999. João Pessoa: Mimeo, 1999. 27p.
BERGER, Peter & LUCKMANN. A construção social da realidade.
6ª.ed. Petrópolis: Vozes,
1985. 247p.
CUNHA, Maria Isabel. CONTA-ME AGORA! as narrativas como alternativas pedagógicas na
pesquisa e no ensino. Rev. Faculdade de Educação. vol. 23 n. 1-2 São Paulo Jan./Dec. 1997.
KUENZER, Acácia (org.) Ensino médio:Construindo uma proposta para os que vivem do trabalho.
2º edição. São Paulo: Cortez, 2001
LUMIAR. Diagnóstico do PA Nova vida. João Pessoa:
Mimeo, 1997.
______. Diagnóstico do PA Primeiro de Março. João
Pessoa: Mimeo, 1997.
SILVA, Willian Dantas. Agroindústria nos Assentamentos de Reforma Agrária na Paraíba. João
Pessoa: Mimeo, S/D.
Silva, Izaura M. de Andrade. O Trabalhador com (d)eficiência física na área de
assentamento rural Dissertação (mestrado) UFPB/CE . João Pessoa, 2001.