http://www.psiquiatriainfantil.com.br/congressos/uel2007/284.htm |
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Londrina, 29 a 31 de outubro de 2007 – ISBN 978-85-99643-11-2
PRINCÍPIOS EDUCIONAIS DE VIGOTSKI E AS BORBOLETAS DE ZAGORSKI.
Mestranda: Josefa Fátima de Sena Freitas (UEM)
Orientadora: Profa. Dra. Nerli Nonato Ribeiro.
"Ser feliz.. Ter autonomia de pensamento e ações. Ser humano. Apoiar a nós
mesmos e a nosso semelhante. Ser forte. Ter sucesso. Orgulho de sermos como
somos. Observarmos com razão todas as coisas sem perdermos a ternura. Tudo
isso e muito mais é totalmente possível com inteligência, fé e determinação". Alex
Garcia - Presidente AGAPASM / Especialista em Educação Especial / Portador de
Surdocegueira.
RESUMO
O presente artigo trata de uma análise do documentário: As Borboletas de Zagorski, elaborado pela BBC de
Londres em 1963. Os sujeitos do documentário eram crianças surdo-cegas, delas destacamos as falas da
protagonista Natacha e a analisamos sob os aspectos da teoria histórico-cultural. Nosso objetivo centrou-se em
dois aspectos: o primeiro consistiu em identificar os princípios educacionais apresentados na ação dos membros
do lar. E, o segundo, transcrever a fala de Natacha para analisarmos alguns conceitos psicológicos da deficiência
e de sua superação.
PALAVRAS CHAVE: Princípios educacionais, linguagem, professores.
O objetivo deste estudo é apresentar algumas análises com base realizadas no documentário (1963) “As
Borboletas de Zagorski”, que privilegia princípios educacionais desenvolvidos por Vigotski (1993). Dentre eles
destacam-se as preocupações de que a aprendizagem promove o desenvolvimento e que os conhecimentos são
construídos em um ambiente que é histórico e essencialmente social.
Este documentário foi produzido em 1963, pela BBC de Londres. Neles, apresenta experiências
desenvolvidas na cidade de Moscou capital da Rússia, local das experiências de Vigotski. Trata-se do Instituto de
Defectologia de Moscou, uma entidade científica que realiza pesquisas em todas as áreas de deficiência e, ao
mesmo tempo, desenvolve métodos de ensino especiais para a educação de deficientes. Os instrumentos
utilizados são adaptados no sentido de preparar o aluno para se comunicarem entre si e socialmente. Ele possui
uma norma inquebrável: "Jamais fazer um julgamento final, referente à deficiência de uma criança". A cada
visita da criança, ela é examinada como se nunca se nunca houvesse sido.
O documentário segue à risca a tese que defendeu Vigotski em seus estudos: a linguagem é poder e, por
meio dela, o aluno organiza o seu pensamento e se insere no mundo dos conhecimentos científicos. Outro ponto
importante apresentado pelo documentário é a necessidade de analisar as questões delicadas e os desafios
apresentados na educação da pessoa com deficiência auditiva associada à deficiência visual – surdo-cegueira e,
outras deficiências. Desafia os professores a assumirem a responsabilidade em promover a socialização desses
alunos, desenvolvendo sua comunicação para que os mesmos possam, como a lagarta, sair do casulo,
transformarem-se em borboletas, e, com a sua beleza própria, atingir a liberdade, o imenso espaço que é a vida.
O processo de avaliação nessa instituição é realizado por uma equipe de multiprofissionais e não
possuem objetivos apenas de identificar e medir a deficiência, mas sua extensão está voltada a descobrir formas
de superá-las. No transcorrer da avaliação, o processo de ensino não pára enquanto testam, os orientadores vão
mediando a aprendizagem do aluno corrigindo os erros, oferecendo dicas, mediando e informando como o aluno
poderia resolver o problema sem dar a resposta pronta. O Instituto emprega os métodos de ensino do grande
psicólogo russo Vigotski, desenvolvidos há mais de sessenta anos. Sua ênfase está na zona do desenvolvimento
próximo. Nesse sentido, seguem Vigotski ao defender: "crianças com deficiência devem ter todos os sentidos
remanescentes permanentemente estimulados de modo a compreender o mundo".
Os Transformadores
Na abertura do filme,aparece a expressão: "Os Transformadores", para explicar o processo de mudança
que os alunos com surdo-cegueira e outras deficiências percorrem ao ser inseridos na proposta educacional do
Lar de Zagorski. Transformadores porque as suas limitações são superadas por instrumentos adaptativos, que
passam a considerar ou promover a superação pelo estabelecimento das vias colaterais de desenvolvimento.
Conforme Oliveira (1993, p.56) coloca, é importante despertar para novas possibilidades:
Podemos pensar, por exemplo, num indivíduo que vive num grupo cultural isolado
que não dispõe de um sistema de escrita. Se continuar isolado nesse meio cultural
que desconhece a escrita, esse indivíduo jamais será alfabetizado. Isto é, só o
processo de aprendizado da leitura e da escrita (desencadeado num determinado
ambiente sócio-cultural onde isso é possível) é que poderia despertar os processos
de desenvolvimento internos do indivíduo que permitiam a aquisição da leitura e da
escrita.
Os alunos que residem no Instituto de Zagorski são denominados de "borboletas", essa expressão está
ligada, por elos fortes, à citação escolhida por nós de Oliveira (1993), quando coloca a importância do ensino na
vida dos seres humanos e as transformações que pode estimular no indivíduo para busca de seus ideais. Nosso
entendimento sobre a expressão empregada é o de apresentar os caminhos que esses alunos irão percorrer no
transcorrer de sua vida e, assim, descrever suas metamorfoses. As mudanças educacionais que essas crianças e
adolescentes vivenciam representam a na busca da saída do isolamento por meio de instrumentos educacionais
alternativos que os levam a encontrar o mundo letrado.
Oliveira (1993, p.57) em seus estudos, sintetiza, muito bem o triplé que orienta essa transformação:
Em Vygotsky, justamente por sua ênfase nos processos sócio-históricos, a idéia de
aprendizado inclui a interdependência dos indivíduos envolvidos no processo. O
termo que ele utiliza em russo (obuchenie) significa algo como “processo de
ensino-aprendizagem”, incluindo sempre aquele que aprende, aquele que ensina e
a relação entre as pessoas.
Transformadores, nome empregado para apresentar os caminhos percorridos por cada aluno dentro do
Lar, as conquistas obtidas por cada um ao receber o ensino necessário à superação de sua dificuldade.
Transformadores porque saíram do isolamento e adquiriram independência, tornaram-se profissionais, outros,
mesmo inseridos dentro do lar, fizeram amigos, passaram-se comunicar-se com os familiares e visitantes.
Os Princípios da Escola de Zagorski
O efeito fundamental que encontramos no desenvolvimento agravado pela
deficiência é o duplo papel que desempenha a insuficiência orgânica no processo
desse desenvolvimento e da formação da personalidade da criança. Por um lado, à
deficiência é o oposto: a limitação, a debilidade, a diminuição do desenvolvimento,
e, por outro lado, precisamente porque cria dificuldade, estimula um avanço
elevado e intensificado. A tese central da deficiência atual é a seguinte: toda
deficiência cria estímulos para elaborar uma compensação. Por isso o estudo
dinâmico da criança deficiente não pode limitar-se a determinar o nível de
gravidade da deficiência, mas que inclui obrigatoriamente a consideração dos
processos compensatórios, ou substitutivos, sobre estruturados e nivelados no
desenvolvimento e na conduta da criança. (VIGOTSKI,1997, p. 14, tradução
nossa).
Iniciamos com a citação de Vigotski sobre a importância de buscar instrumentos adaptativos que
venham a contribuir com a pessoa deficiente a na superação das dificuldades impostas pela própria deficiência.
Novas formas de comunicação ocorrem em Zagorski com a linguagem manual, na busca da superação dos
problemas orgânicos. Como os alunos cegos e surdos não têm como fazerem uso da linguagem pelos meios
convencionais, são habilitados na linguagem alternativa, que lhes permite comunicar-se com o mundo.
O dia em Zagorski começa com atividades de comunicação por meio do alfabeto manual com uma só
mão. Aos alunos que apresentam resíduos visuais, a sinalização é realizada no ar a uma pequena distância. Para
os alunos com cegueira total, a atividade é desenvolvida unicamente por meio de toque na mão da pessoa, ou seja,
a linguagem própria dos surdos-cegos, que são movimentos de LIBRAS na mão do aluno para que o mesmo
possa sentir os movimentos e ler as palavras. Essa comunicação não é apenas utilizada no interior de Zagorski, há
um trabalho desenvolvido pelos professores do Instituto que envolve atividades extra-classe com passeios e
horários de assembléia onde os alunos trocam informações.
A comunicação dentro do lar é poder, é interagir com o mundo, visto que ela permite revelar às pessoas
os nossos sentimentos e os conhecimentos adquiridos em nossas experiências. Assim, identificamos o primeiro
princípio de Vigotski empregado no Lar de Zagorski, os alunos aprendem, desde sua chegada ao lar, a linguagem
manual para que os hábitos de comunicação ocorram constantemente. A linguagem manual se faz por
treinamento em que a criança aprende, por meio da imitação dos gestos dos adultos, os movimentos necessários a
comunicação.
Conforme os estudos de Luria (1986: p.202):
Graças à linguagem, o sujeito pode penetrar na profundidade das coisas, sair dos
limites da impressão imediata, organizar seu comportamento dirigido a uma
finalidade, descobrir os enlaces e as relações complexas que são inatingíveis para a
percepção imediata, transmitir a informação a outro homem, o que constitui um
poderoso estímulo para o desenvolvimento mental, pela transmissão acumulada ao
longo de muitas gerações.
Luria (1986) considera a linguagem e sua função reguladora como a capacidade de influenciar e
modificar o comportamento dos homens. Uma criança ou uma pessoa com surdez que faz uso da linguagem
acompanhada de gestos indicadores, que norteiam sua ação no meio ambiente, reorganiza a atenção e separa um
objeto desejado dos outros objetos. A conseqüência dessa primeira fase da linguagem é o desenvolvimento da
atenção da criança que deixa de se subordinar aos modelos apresentados pelo adulto e começa a organizar seu
pensamento sobre uma base social.
Concordamos com o autor sobre a estruturação do pensamento com base na linguagem e acreditamos
que o mesmo processo ocorre com os alunos do Lar Zagorski ao iniciarem a aprendizagem da linguagem manual.
A nossa experiência com alunos inseridos na Linguagem Brasileira de Sinais (LIBRAS) mostra
concordância com as idéias de Luria (1986) sobre a importância da linguagem para estruturar o pensamento por
meio da ajuda de outra pessoa mais experiente. Vigotski (1989b), em seus estudos sobre o pensamento e a
linguagem, defende a tese que a relação do homem com o mundo não é uma relação direta, mas uma relação
mediada por meio de instrumentos e signos.
Outro princípio defendido por Vigotski (1989b) está na aprendizagem da criança com deficiência. De
acordo com o estudioso, ela segue os mesmos caminhos da criança sem deficiência e, até mesmo as crianças
mais graves podem aprender, os conteúdos acadêmicos e sociais, desde que recebam o ensino adequado às suas
necessidades. Seguindo a fala do próprio documentário, “a existência de um plano social que irá determinar a
qualidade do desenvolvimento e a intervenção pedagógica interferindo sobre o desenvolvimento”.
Em resposta à questão por nós analisada, é possível compreender, pelo posicionamento de nosso autor,
que o ensino tem papel fundamental no desenvolvimento do psiquismo do indivíduo com deficiência. Por isso, ele
deve ser enfocado individual e coletivamente, feitas mediações diretas e indiretas e diferenciadas por
metodologias adequadas e conteúdos organizados, promovidos por meio do processo avaliativo diagnóstico
dinâmico e de caráter científico. O ensino e a mediação só têm um caminho a seguir: ter finalidade de ensino e
orientar o aluno a desenvolver-se cognitivamente por meio do pensar sobre: Como? Por quê? Para quê? devemos
aprender determinado conteúdo.
Para atender ao ensino conforme a Teoria Histórico-Cultural defende, encontramos outro princípio
apresentado no documentário que é a formação de professores. De acordo com o mesmo, estes ocupam uma
posição especial na União Soviética, sendo treinados em defectologia e disciplinas acadêmicas. Recebem 25% a
mais que os professores que atendem a alunos de ensino básico e estão capacitados a trabalharem na teoria de
Vigotski para ajudarem seus alunos a sobreviverem no mundo exterior..
Entendemos que a formação desses professores vincula-se à prática pedagógica em direção a entender
o homem como um ser social e histórico, que transforma o meio e é por ele transformado. Este estabelece
relações com o mundo, servindo-se de mediações presentes nele e no seu grupo sociocultural. O homem constrói
sua individualidade a partir da interação com o outro e na escola o professor tem a função de ensinar, ensinar
conteúdos voltados aos conceitos científicos.
Conforme Vázquez, apud Saviani 1999, p.82).
Entre a teoria e a atividade prática transformadora se insere um trabalho de
educação das consciências, de organização dos meios materiais e planos concretos
de ação; tudo isso como passagem indispensável para desenvolver ações reais,
efetivas. Nesse sentido, uma teoria é prática na medida em que materializa, através
de uma série de mediações, o que antes só existia idealmente, como conhecimento
da realidade ou antecipação ideal de sua transformação.
Acreditamos que a formação dos professores de Zagorski esteja em consonância com o pensamento de
Vázquez, o qual defende que sua mediação promova no aluno um processo mental que possibilite análise e
compreensão mais ampla e crítica da realidade, determinando uma nova maneira de pensar, de entender e julgar
os fatos, as idéias. Ainda de acordo com Tuleski (2002, p.93). "Construir uma psicologia compatível com as
transformações históricas implicava em abandonar o determinismo biológico e fazer do homem sujeito dessas
transformações", aspecto fundamental da teoria vigotskiana com base marxista.
As experiências relatadas no documentário envolvem desafios e questões delicadas que o professor que
atua na educação especial enfrenta em seu cotidiano e propõe a compreensão do ato de ensinar como parte
integrante do trabalho educativo. Saviani (1999, p.17) acerca desta questão, explica que
[...] o trabalho educativo é o ato de produzir, direta e intencionalmente, em cada
indivíduo singular, a humanidade que é produzida histórica e coletivamente pelo
conjunto dos homens. Assim, o objeto da educação diz respeito, de um lado, à
identificação dos elementos culturais que precisam ser assimilados pelos indivíduos
da espécie humana para que eles se tornem humanos e, de outro lado e
concomitantemente, à descoberta das formas mais adequadas para atingir esse
objetivo.
Nesse aspecto, entendemos que o trabalho educativo alcança sua finalidade quando cada indivíduo
apropria-se da humanidade produzida histórica e coletivamente, ou seja, quando ele, sujeito social, apropria-se dos
elementos culturais necessários à sua formação como ser humano.
No instituto de Defectologia de Moscou, conforme citamos anteriormente, os professores partem de
pressupostos vigotskianos para empreender o processo pedagógico, tomando como referência, em muitas
situações, o conceito de desenvolvimento proximal. Duarte (2000, p.25) coloca que Vigotski, ao apresentar o
conceito de zona de desenvolvimento próximo, pressupõe a compreensão das relações entre o ensino e o
desenvolvimento intelectual na idade escolar – “ele inicia mostrando que ao analisar o desenvolvimento de uma
criança é necessário não se deter naquilo que já amadureceu, também é preciso captar aquilo que ainda está em
processo de formação”.
Diante da colocação feita por Duarte, podemos identificar outros princípios da escola de Vigotski em
Zagorski, como a mediação, conforme discutida anteriormente. O mais importante, em nossa opinião, que consta
na obra Fundamentos da defectologia (1963), refere-se à proposição de Vigotski quando este afirma que a
educação da criança com deficiência não deve basear-se na deficiência da mesma, mas nos instrumentos
adaptativos que podem ajudá-la a superar as barreiras. Assim, a criança pode aprender com as orientações de
uma pessoa mais experiente. A criança pode fazer amanhã sozinha a que faz hoje com a ajuda de um adulto ou
de outra criança mais experiente, porque "o seu nível de aprendizagem é caracterizado por aquilo que ela
consegue fazer de forma independente e por aquilo que ela consegue fazer com a ajuda de outras pessoas"
(DUARTE, 2000, p.96).
Outro princípio da escola de Vigotski, identificado no documentário “As Borboletas de Zagorski”,
refere-se ao processo de avaliação, apontado por Barroco e Facci (2004, p. 38)
No processo de avaliação, o professor deve fiar-se na proposição de Vigotski de
que o grau de desenvolvimento cultural do aluno se expressa não só pelo
conhecimento por ele adquirido, mas pode ser analisado considerando-se sua
capacidade de usar objetos em seu mundo externo e, principalmente, pela
capacidade de usar racionalmente seu próprio processo psicológico.
A forma mais justa de entender a educação, conforme Vigotski (1997) defende, a educação que passa à
frente do desenvolvimento, vai além e insere o indivíduo no contexto sócio-histórico.
Natacha a deficiência, o silêncio e a superação.
Havia uma trepitação constante em meus ouvidos e o mundo parecia muito
estranho, diferente do que era antes da doença e era atormentada por imagem
estranha totalmente desconhecida. Eu estava sempre nervosa e assustada, pois não
entendia o mundo em que estava acostumada. Meu corpo parou de me obedecer e
ele me levava para onde não queria ir. Meus olhos viam coisas que na verdade não
estava lá e quando tentava reagir às imagens que imaginava estar vendo e ouvindo
meus movimentos nunca eram adequados. As pessoas em minha volta achavam
que estava ficando louca. O meu comportamento era estranho que ninguém
conseguia compreender as minhas verdadeiras intenções. Eu percebi horrorizada
que eu estava verdadeiramente ficando louca. (Documentário, 1963, Transcrição
nossa).
As palavras de Natacha mostram o lado emocional de uma pessoa ao se ver, de repente, frente a uma
nova deficiência. Natacha fala de sua dor, de seu desequilíbrio de suas emoções ao adquirir mais uma deficiência.
O documentário As Borboletas de Zagorski está enriquecido com a presença de várias crianças
e
adolescentes com suas histórias reais de transformações, mas nos limitaremos apenas a uma delas que freqüentou
o Lar Zagorski – Natacha. Nossa protagonista coloca que é seguidora do pensamento de Vigotski por considerar
que sua história de vida espelha a teoria do filósofo que acreditou na pessoa com deficiência e dedicou parte de
seus estudos em buscar forma de ajudá-las a superar suas limitações.
Natacha chegou ao Instituto de Zagorski aos treze anos de idade i foi educada conforme os pressupostos
teóricos de Vigotski. Sua deficiência visual ocorreu na infância e sua linguagem oral é parecida com a fala de um
"passarinho", seqüela de uma doença que danificou suas cordas vocais aos nove anos de idade. Hoje, ela tem a
formação e profissão de psicóloga, filósofa e mãe, sendo considerada um produto notável da escola de Zagorski.
Natacha descreve sua chegada a Zagorski e o conflito emocional ao ser inserida no programa de ensino.
Foi nessas condições com o corpo desobediente, olhos e ouvidos que me
enganavam com perspectiva do mundo errada e confusa que fui levada a Moscou
com treze anos de idade. Foi ai que conheci as pessoas que começaram a me
ensinar. A princípio, eu não entendia o que elas queriam de mim, porque eu estava
tentando ouvi-las e vê-las como antes. Em vez disso, elas me obrigaram a
compreender através do alfabeto manual. Foi um processo surpreendente para mim
e para outras crianças, para nós, parecia uma brincadeira. Eu não compreendia e
continuava pensando em ouvir com os meus ouvidos e ver com os meus olhos o
que eles tentavam me mostrar. Esse foi o primeiro estado de educação em que eu
compreendi que não só poderia ver com meus olhos, mas também com minhas
mãos. Que poderia não só ouvir com os meus ouvidos, mas também com as minhas
mãos. A partir desse momento, a ordem entrou no meu mundo. (Documentário,
1963, transcrição nossa).
A transcrição dessa fala de Natacha tem como objetivo compreender o processo doloroso e complexo
por que passa uma pessoa ao ser inserida em uma nova forma de educação, dentro de um ambiente social
estranho e desconhecido, em que a sua defesa é se manter pelos laços de sua cultura.
Damos seqüência à fala de Natacha e à
revelação de seu estado psicológico ao continuar descrevendo
sua chegada ao Lar de Zagorski e a nova realidade educacional e social. "É claro que em Zagorski eu me senti
mais livre e feliz do que em casa. Eu podia me comunicar com as crianças, professores e equipe que trabalham
lá" (Transcrição nossa). Observam-se, na fala de Natacha, dois pontos importantes: a liberdade e a comunicação
para se expressar, é a descoberta mágica da comunicação de ser compreendida e poder expressar os seus
sentimentos aos outros. Comunicação esta que a fez sair do isolamento, reestruturando-se psicologicamente,
descobrindo a liberdade de poder participar.
Sob perspectiva de sair do isolamento e encontrar a comunicação, lembramos de Vigotski (1993) quando
defende a idéia de contínua interação entre as mutáveis condições sociais e a base biológica do comportamento
humano. Nas estruturas orgânicas, determinadas pela maturação, formam-se novas funções mentais, dependendo
da natureza das experiências sociais às quais as crianças se acham expostas.
Assim, Natacha se estrutura psicologicamente e, como indivíduo social e, consegue buscar horizontes
profissionais. Ela descreve sua opção pelo curso de psicologia infantil.
Escolhi o curso de especialização em psicologia infantil porque eu queria ajudar
crianças da mesma situação da qual eu escapei. Eu achava que, quando eu
entendesse o misterioso processo da psicologia humana, seria capaz de ajudar as
crianças de Zagorski a evitar o período amargo e doloroso pelo qual eu tive que
passar na minha educação (Documentário, 1963, transcrição nossa).
Vigotski (apud Barroco e Facci, 2004, p. 37) nos colocam:
Construir todo processo educativo seguindo tendências naturais de super
compensação, significa não atenuar as dificuldades que derivam do defeito, senão
estabelecer todas as forças para compensá-los, estabelecer somente tais tarefas e
fazê-lo em tal ordem, que correspondam à graduação do processo de formação de
toda a personalidade sob um novo ângulo.
Natacha é um exemplo desta transformação, uma vez que, além de se constituir profissional, percebe-se sua preocupação
com o destino das crianças de Zagorski, destacando que elas tenham um semelhante ao seu.
A esse respeito, Vigotski (1993, p.93), ao se interessar em compreender a generalidade do significado
social e individual da condição da cegueira, coloca:
Cegueira não é meramente a ausência da visão; a cegueira causa uma total
reestruturação de todo o organismo e de toda a personalidade. A cegueira, criando
uma nova e única matriz da personalidade, traz à vida nova força; criatividade
muda tendências normais das funções e organicamente refaz e forma a mente do
indivíduo. Portanto, cegueira não é da manifestação das habilidades, um adicional,
uma força.
É evidente que Vigotski analisa a cegueira baseada na pessoa que nasceu
cega e, para ele, essa pessoa não tem a noção do que é cegueira a não ser por
parâmetros sociais. O autor coloca que a ciência pouco fez em relação à análise
da personalidade do cego. A história de Natacha está relacionada à surdez e à
cegueira, mas os aspectos psicológicos se aproximam e por isso pontuamos
essa citação de Vigotski.
Vigotski (1997) coloca que a aquisição da linguagem pela criança modifica suas funções superiores: dá
a ela forma definitiva de pensamento, possibilita o aparecimento da imaginação, o uso da memória e o
planejamento da ação. Nesse sentido, a linguagem adquire uma função central no desenvolvimento cognitivo,
reorganiza os processos que nele estão em andamento como percebemos na fala de Natacha quando coloca: “[...]
a partir desse momento, a ordem entrou no meu mundo”.
Não poderíamos deixar de citar a fala de Natacha a respeito das ações atuais do Instituto de Zagorski
(DOCUMENTÁRIO, 1963). Ela pontua sua forma positiva de medir a extensão da perda da criança, é feita
detalhadamente, mas entende o trabalho planejado por Vigotski está sendo esquecido, assim como, suas
“sagradas palavras”: "Você pode superar as mais graves deficiências, seja de que natureza for, pela aplicação de
todas as técnicas físicas e psicológicas de compensação, de forma que a criança possa ir à escola, desenvolver e
crescer em meio às pessoas normais". (DOCUMENTÁRIO, 1963, transcrição nossa).
Não iremos nos ater aos posicionamentos de Natacha quanto às ações do Instituto nos tempos atuais,
mesmo porque os nossos conhecimentos não permitirIa tal empreitada. O nosso objetivo está na sua citação
quando usa as palavras de Vigotski e citamos Souza (2004, p.43) esclarecer esta frase:
O autor propõe a criação de instrumentos culturais especiais, adaptados à estrutura
psicológica da criança deficiente. Estes sistemas auxiliares cumprem a mesma
função e tem como base um mecanismo fisiológico diferente. Neste sentido, a
escola especial tem diante de si a tarefa de criar formas de trabalho que respondam
às peculiaridades de seus educandos, impondo não à adaptação a deficiência, mas
a superação da mesma.
Em sua análise, Natacha pontua que os estudos de Vigotski foram transformados, primeiro, em Filosofia
e, depois, em Método de Ensino. Ela enfatiza que Vigotski afirmou que "as crianças deficientes não deveriam ser
abordadas por meio da deficiência, em vez disso, deveriam ser ensinadas a desenvolverem seus sentidos ao ponto
deles serem usados para compensar o que foi perdido”. (DOCUMENTÁRIO, 1963, transcrição nossa).
Natacha, no documentário, relata o princípio de Vigotski de que "toda criança pode ser alcançada e
eventualmente transformada, e é por isso que todas as crianças recebem de Zagorski um programa de ensino
totalmente individualizado".
Duarte (2001) coloca que a formação do indivíduo se dá sempre dentro de um processo educativo e,
para se tornar um indivíduo, o homem precisa se apropriar dos resultados da evolução histórica, tornando
individualizados esses resultados. Assim, o aluno com deficiência conseguirá, por meio da mediação das
abstrações, compreenderem a realidade da qual faz parte.
Para concluirmos, gostaríamos de frisar que consideramos nossa análise apenas uma pequena
contribuição no entendimento dos princípios da escola de Vigotski, apresentado no documentário As Borboletas de
Zagorski. Outros pontos poderão ser analisados, e gostaríamos de finalizar com as últimas palavras de Natacha:
A União Soviética está politicamente confusa e empobrecida. A geração atual
enfrenta um futuro incerto que perdeu as suas promessas. Não há dinheiro para
mandar tais estudantes para as Universidades. Na União Soviética, a filosofia de
que toda criança pode ser transformada pelo tipo correto de ensino está lutando para
sobreviver, mas no Ocidente ela ainda precisa ser descoberta (DOCUMENTÁRIO,
1963, transcrição nossa).
Queremos frisar que, aqui no Brasil, também existe a preocupação com os alunos da Educação
Especial, sentimos que os princípios educacionais de Vigotski estão esquecidos ou melho, não sei se foram
esquecidos ou se nem mesmo chegaram até o ensino especial, mesmo sendo uma esperança da qualidade no
ensino das pessoas com deficiência. Se compreendermos o que Vigotski nos propõe como uma educação social,
dando espaço para o ensino, para a mediação do professor junto à zona do desenvolvimento próximo de seu aluno,
podemos ajudar a pessoa com deficiência em sua história cultural para que a mesma possa avançar sobre os
limites e estabelecer diferentes possibilidades para suas funções psicológicas superiores. Entendermos o homem
como sujeito em desenvolvimento, alguém que nunca está acabado, pronto e, por não possuir todas as
experiências, estar sempre em processo para transformar, internalizar conhecimentos por meio da mediação
social, das trocas com o outro mais experiente. O dia em que isso for possível, o homem não precisará mais
inventar paradigmas para a educação especial, sejam eles no sentido de exclusão, terá atingido o seu verdadeiro
sentido “a educação necessária ao atendimento da pessoa com deficiência”.
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