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Londrina, 29 a 31 de outubro de 2007 – ISBN 978-85-99643-11-2
AS PRÁTICAS DE NORMALIZAÇÃO DO INDIVÍDUO SURDO E A CONSTITUIÇÃO
DA SURDEZ COMO ANORMALIDADE
Keila Cardoso Teixeira
Aproprio-me do termo “orelhas em locação”, encontrado no livro História da
sexualidade: a vontade de saber, para definir o modo como vejo todas essas práticas
clínicas, reabilitadoras em que as orelhas dos surdos são colocadas em locação para
que sejam inventados procedimentos que ofereçam a estes sujeitos uma aparente e
apaziguadora normalidade. Esse outro que eu olho e digo que é diferente me constitui
na minha normalidade. Esse outro interpela a minha normalidade.
Em seu estudo sobre Os Anormais, Foucault (2001) ressalta como esses
discursos atuavam em busca da ordem. Se antes eram engendrados para a reclusão
ou o extermínio, agora são destinados à normalização. De uma certa maneira, os
especialistas são responsáveis em determinar quem deve viver ou morrer. Foucault
pontua em toda a sua obra que não são substituições de algo para outro, de um pior
para um melhor, e sim desdobramentos de elementos que se dão nas entre cenas.
Ao tomarmos como referência os relatos de Foucault acerca do tratamento
dado aos indivíduos com peste e lepra, pode-se observar como se efetivaram estas
substituições nos dispositivos de controle. Se no caso da lepra as pessoas eram
colocadas distantes da cidade com o intuito de manter a cidade pura, posteriormente
com a peste eram demarcados os locais que em que havia pessoas com lepra e os
cuidados que se deveria ter, tratando-se, portanto, de um policiamento.
Esse policiamento minucioso faz parte do que Foucault chamou de disciplina,
em que são necessários a organização do espaço, o controle do tempo, uma
vigilância e um registro contínuo para que se consiga estabelecer um certo
conhecimento (saber) sobre esses indivíduos.
Trata-se, ao contrário, de uma série de diferenças sutis, e constantemente observadas, entre os
indivíduos que estão doentes e os que não estão. Individualização, por conseguinte divisão e
subdivisão do poder, que chega a atingir o grão fino da individualidade. (FOUCAULT, 2001, p.57)
Assim retomamos o conceito de Foucault do poder como positivo, no sentido
de verificar como se desencadeiam outras formas de saber e poder e constatar o que
tínhamos na lepra como forma negativa de poder, excluindo; na peste ganha um
sentido positivo, incluindo, observando, criando saberes. Se antes estava ligado ao
desconhecimento, passou a ser um acúmulo de saber, o crescimento do saber.
Foucault salienta que nesse período, a Idade Clássica ou século XVIII,
(...) Passou-se de uma tecnologia do poder que expulsa, que exclui, que bane, que marginaliza,
que reprime, a um poder que é enfim um poder positivo, um poder que fabrica, um poder que
observa, um poder que sabe e um poder que se multiplica a partir de seus próprios efeitos.
(FOUCAULT, 2001, p. 60)
A norma, para Foucault (2001) tem uma função positiva, de intervenção,de
transformação, porque carrega em sim dois princípios: um de qualificação e outro de
correção. Desse modo, sua função não é excluir, rejeitar, mas ao contrário, ela
descreve, qualifica, classifica e determina como se deve operar no processo de
correção, de mudança.
Se, inicialmente os anormais eram levados para fora da cidade no sentido e
não contaminar, isso também pode ser visto historicamente na trajetória da educação
dos surdos, por exemplo as iniciativas com Graham Bell que era totalmente contra o
casamento de surdos e tomava atitudes junto ao governo americano propondo
medidas eugenistas que impedissem a criação da raça surda, para evitar mais surdos
e que se continuasse desenvolvendo “essa” comunicação, referindo-se à língua de
sinais. (SOUZA, apud LANE, 1989)
Da escola especial à inclusão escolar, passando pela classe especial e sala de
recursos, encontramos na educação e na pedagogia, a utilização destes dispositivos
para o esquadrinhamento destes indivíduos.
(...) consideramos que o normal para a espécie humana é ouvir e falar, os surdos, seja como se
queiram narrar, serão sempre uma diversidade, subconjuntos de pontos na superfície de um
gráfico que gradua diferenças audiométricas – uma diferença para menos nos valores pontuados
pela curva do sino. (SOUZA e GALLO, 2002, p.41).
Ao constituir a genealogia do poder, Foucault (1998a) argumenta que o poder
não se esgota na negatividade e afirma a existência de um traço positivo no poder,
dizendo que ao mesmo tempo em que produz opressão, produz resistência. Um
exemplo disso é o modo como a burguesia ao mesmo tempo em que se aproveitava
do poder real, desenvolveu um sistema de direito que lhe permitia o desenvolvimento
local. Com isso, até o século XVIII, a burguesia instalou uma forma de poder que se
apresentava como discurso, como linguagem e que era o vocabulário do direito.
Se o biopoder permite a emergência do racismo de Estado, que leva a exclusão do diferente ao
limite de sua eliminação pela morte, também é certo que a biopolítica permite a criação de
novas ferramentas e instrumentos de luta, de novas armas que podem agenciar a eclosão das
diferenças. Tudo depende de como se faz uso dos poderes e contrapoderes. Em lugar de
cairmos no imobilismo de temer uma sociedade de controle (...) podemos assumir a perspectiva
do exercício de contrapoderes, de fazer emergir novas possibilidades. (SOUZA e GALLO, 2002,
p. 59).
Não existe, para Foucault, um poder concentrado, confinado em lugares
específicos ou na negatividade. O poder encontra-se disperso no tecido social e é
responsável por uma série de agenciamentos de significação que poderíamos chamar
poderes múltiplos ou contra-poderes que se entrelaçam na macroestrutura social. E é
assim que o poder produz efeitos – positivos – no nível do desejo e do saber. É,
portanto, a partir de um poder sobre o corpo que se constituiu um saber fisiológico,
orgânico e por fim acadêmico (Gallo, 1997).
Essa lógica cruel permanece enquanto as crianças surdas não se encontram com um adulto.
Elas têm necessidade dessa identificação com os adultos, uma necessidade crucial. É preciso
convencer todos os pais de crianças surdas e colocá-las em contato, o mais rápido possível,
com adultos surdos, desde o nascimento. É preciso que os dois mundos se entrelacem, aquele
do barulho e o outro, do silêncio. O desenvolvimento psicológico da criança surda se fará mais
rapidamente e vem melhor. Ela se construirá longe daquela solidão angustiante de ser única no
mundo, sem idéias construtivas e sem futuro.(LABORIT, 1994, p.49)
No risco de operar sob os códigos e regras do saber e do poder, elas
constituem os modos irredutíveis de subjetivação.
(...) a escola é o lugar do som, mas um som que muitas vezes aponta para o silêncio que ali é imposto
ou, pelo menos, exigido. A escola não silencia porque, como lugar do som, seu silêncio é denunciador,
é produtor de sentido. (EIZIRIK e COMERLATO, 1995, p.14)
Chego à escola, lugar em que me inscrevo. Tento explicitar deste lugar o papel
que a escola ganha na vida desses sujeitos e como por meio da escola se opera a
constituição do sujeito surdo. Tento captar nestas práticas de assujeitamento, as
condições nas quais ocorre, os condicionantes históricos nos quais alunos/as se
inscreve, nos quais está inscrita sua fala e nos quais também eu me inscrevo.
Para Veiga-Neto (2001), a escola é o “locus”, o lugar, em que se manifesta de
maneira contundente a relação poder-saber na sociedade moderna. A escola tornou-se o lugar de pautar a diferença. Por isso quisemos abordar neste processo de
constituição do surdo e da surdez como deficiência, a escolarização e a instituição
escolar.
Focalizar a escola significa admitir que ela compõe os espaços sociais
freqüentados pelo sujeito surdo. Seja como escola especial, sala especial, sob o título
de integração ou inclusão; estando lá ou sendo excluído dela, a escola (instituição) e a
pedagogia (ciência) participam do assujeitamento do indivíduo surdo. É na escola
ainda que estes indivíduos se narram e se constituem sujeitos.
A escola se transforma na Modernidade em lugar principal e até mesmo
privilegiado, porque é ao mesmo tempo um lugar onde o saber se forma e o lugar
também da própria normalização.
(...) um lugar atraente para implementar mudanças sobre essa lógica social, que se pretendam
necessárias, seja no plano político, cultural ou econômico. ...É preciso ter sempre claro que
mesmo aquilo que parece ocorrer apenas no âmbito escolar pode ter – e, quase sempre, tem –
ligações sutis e poderosas com práticas (discursivas e não-discursivas) que extravasam a
própria escola. (VEIGA-NETO, 2001, p.24)
O depoimento explicita que esse privilégio dado à instituição escolar é pela sua
capacidade de instituir e de ser ela mesma instituinte, revelando que em nossa
sociedade a escola é o “(…) lugar em que as palavras e as ações se inscrevem,
desde a desordem, em novas ordens, de saber, de poder, de querer, de poder, de
gostar, de procurar, de sonhar, de sofrer.” (EIZIRIK e COMERLATO, 1995, p.114)
A escola é este lugar onde estamos um bom tempo de nossas vidas e no qual
passamos por dispositivos, pelas estratégias e táticas de assujeitamento, de
individualização. Mas se onde há poder, há resistência, a professora fala, eu não
entendo mas copio o que não sei. Porque sei que não precisa saber, basta encontrar a
palavra igual e responder. E no tempo em que nos informa, ela nos de-forma e se torna
referência para muitas coisas, essas muitas coisas seriam “o que excede à escola” e
que nomeamos conhecimento, saber.
Ao dizer dos lugares que desempenham papel central no processo de
individualização dentro da multiplicidade, Foucault (2000) salienta que a escola,
através do exame, controla seus alunos não somente no contexto didático-pedagógico,
mas sobretudo no aspecto político pois o exame acaba por constituir-se na tecnologia
mesma da transmissão do saber.
Para Gallo (1997), o nascimento da ciência da educação - a Pedagogia -
deveu-se ao advento da tecnologia dos exames, que permitiu a ordenação dos alunos
por meio da quantificação do processo de aprendizagem. As tecnologias
individualizantes, utilizadas na escola, são uma verdadeira anatomia política que
subjetiva as relações de poder nela vigentes.
Hoje, o governo brasileiro vem participando de um debate mundial que
pressupõe “a educação das pessoas portadoras de deficiência” e a partir da
Conferência de Salamanca, realizada em 1994, o país tem avançado na formulação de
políticas que contemplem as diretrizes apontadas nesse documento.1 Tais diretrizes
têm se configurado na política educacional de inclusão2. Essa política inverte a lógica
da integração, propondo que a escola se transforme e não mais que o aluno se adapte
a ela. A inclusão, como é postulada hoje, não abrange somente os nomeados como
deficientes e sim aqueles excluídos do sistema escolar. Portanto, estas escolas
inclusivas devem garantir a presença de todos, construindo uma educação que
considere as diferenças, as necessidades de cada um de seus alunos.
Ressaltamos, contudo, que na alteração de uma ordem política e econômica
que condiciona a aprovação desta proposta, está implicada uma correlação de forças,
um exercício de contrapoderes que foi modificando a realidade da integração. Não
estão aqui os dominados e lá os que dominam.
Veiga-Neto (2001), entende a escolarização como uma operação de
ordenamento, aproximação-estranhamento, ancorada na díade normal-anormal. Ao
discutir as políticas de inclusão escolar no campo da Educação, o autor aponta a
ambigüidade existente nessas políticas:
(...) De modo mais específico, quero fazer algumas reflexões de fundo sobre o caráter ambíguo
que tais políticas podem assumir, particularmente quando se trata de decidir se os anormais -
divididos nas cada vez mais numerosas categorias que a Modernidade tem incansável e
incessantemente inventado: os sindrômicos, deficientes e psicopatas (em todas as suas
variadas tipologias), os surdos, os cegos, os aleijados, os rebeldes, os poucos inteligentes, os
estranhos, os “outros”, o refugo enfim – podem, ou mesmo devem, ser misturados, nas escolas,
com os normais – cada vez mais parecidos com nós mesmos e, bem por isso, cada vez mais
especiais, melhores, mais raros... (VEIGA-NETO, 2001 p.23).
Nas dificuldades enfrentadas com tais políticas de inclusão, além da resistência
por parte de alguns educadores, Veiga-Neto (2001) salienta também rumores
encontrados tanto nos discursos sobre os que devem ser incluídos como nos discursos
sobre a surdez e suas práticas. Se de um lado, há a polarização dos que dizem estar a
favor ou contra a inclusão, de outro lado há aqueles que adotam a política da
diversidade.
Entretanto, ao transformar a diferença em diversidade (diversidade sempre
considerada a partir do normal), não se evidencia o fato de que os surdos não são
variáveis do ouvinte, e sim mais um dos tantos sujeitos que povoam esse tecido social.
(...) o discurso em favor da igualdade pode vir a ser tão colonialista quanto o discurso em favor
da diferença, quando falta uma análise crítica do valor e da profundidade de diversidade.
(GNERRE, 1998, p.107)
1 Algumas referências da legislação:
BRASIL. Declaração de Salamanca e linhas de ação sobre necessidades educativas
especiais. Brasília: CORDE, l994.
Plano decenal de educação para todos. Brasília: MEC, l993.
Política Nacional de Educação Especial. Brasília: MEC/SEESP, l994.
Lei de Diretrizes e Bases da Educação Brasileira-9394/96. Brasília: Diário oficial, 1996.
Reafirmamos, por isso, nosso propósito em discutir as escolhas feitas
historicamente na forma de discurso sobre a surdez e o surdo, reportando-nos também
agora ao lugar de quem sempre foi narrado, nesse momento narrando-se, tornando-se
autor de sua própria história e não mais co-autor ou colaborador. Isto talvez nos
evidencie o quanto são incertos os discursos que compõem a história desses sujeitos,
as escolhas feitas para significar essa diferença, as representações de verdade na
história da educação dos surdos e que foram fruto de relações construídas social e
discursivamente.
Os surdos estão na sala muitas vezes sem serem vistos e mesmo sendo vistos
não são “olhados”, não são parte, estão ali somente para aprender a conviver conosco
- ouvintes, normais. O que temos como resultado são surdos adultos que passaram
pelos bancos escolares, muitos não chegaram a terminar o ensino médio, mas estão
aí num movimento de resistência e adaptação a essas práticas de ensino. Mesmo
percebendo que esse local não os acolhe efetivamente permanecem lá num intuito de
incomodar e estabelecendo estratégias de permanência nesse local.
O que enraíza nossos discursos (da integração, da inclusão, da diversidade, da
diferença) são os dispositivos que definem o sujeito pela falta e não pela
singularidade. Vivemos numa discursividade marcada pelo não-ser, não-consegue-fazer, não-sabe e por isso “as diferenças dentro de uma cultura devem ser definidas
como diferenças políticas – e não simplesmente como diferenças formais, textuais
ou lingüísticas”.(SKLIAR, 1999, p.23), mesmo que para isso a comunidade que
reivindica tal diferença tenha que recorrer metodologicamente a estes instrumentos, a
estas táticas - dispositivos de poder como afirma Foucault.
Nem perguntas, nem respostas, devolvo-lhes minha inquietação. Como aquela
provocada em mim desde que me envolvi com a educação de sujeitos surdos. E que
ainda se mantém porque a realidade tem evidenciado que na inclusão o aluno também
precisa adaptar-se. Não é só na integração. O que alterou então? Ou são apenas
novos desdobramentos do discurso?
O que altera é a existência de uma possibilidade para retirar esses sujeitos do
discurso da educação especial e encará-la como diferença construída historicamente,
politicamente e culturalmente. Reconhecer que a apropriação do mundo para
determinada comunidade se dá em outra língua e se constitui numa alteridade.
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