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Doenças mentais: como a genética pode ajudar no diagnóstico e no tratamento

Por: UOL

8 de fevereiro de 2022

Doenças mentais: como a genética pode ajudar no diagnóstico e no tratamento

Logo de cara, vou usar o exemplo dos cardiologistas, a fim de que você entenda a história que tenho para contar. Sem querer diminuir o mérito desses especialistas, eles sabem de cor e salteado a sequência de eventos que levam a pessoa a infartar. Também ficam de olho em substâncias que são verdadeiros sinais de alerta no sangue. E, quando o infarto acontece, exames de imagem são capazes de revelar com nitidez a coronária entupida. Não há muito espaço para a dúvida.

Mas, se algo aperta o peito ou acelera os seus batimentos porque a mente está sofrendo, a gente se depara com um tremendo desafio da Medicina. Pois em outro campo, o da psiquiatria, não há imagem da cabeça, nem exame de sangue que seja capaz de dizer por que alguém não está bem ou se tem esse e não aquele outro problema. Até porque a ciência ainda mal conhece a origem dos transtornos psiquiátricos.

 

O diagnóstico e, depois, a avaliação para checar se o modo de tratar está dando certo são feitos na base da observação atenta do comportamento. É, sem dúvida, uma arte. E, sim, há muito estudo por trás."No entanto, desse jeito, a detecção de qual seria o problema exato corre o risco de ser tardia", observa a biomédica Síntia Belangero, professora do Departamento de Morfologia e Genética da Unifesp (Universidade Federal de São Paulo), onde coordena o Laboratório de Neurociências Integrativas.

Lá, também, ela está à frente de grupo que realiza pesquisas em uma área fascinante, a da genética psiquiátrica, que busca justamente entender como os genes que herdamos participam do desenvolvimento das doenças mentais e influenciam na resposta ao tratamento. Foi sobre isso a sua apresentação na última terça, dia 1.º, no II Fórum de Pesquisa Translacional, promovido pelo Sírio-Libanês Ensino e Pesquisa, em São Paulo.

As causas das doenças mentais são, de fato, tremendamente complexas. Envolvem diversos genes que interagem entre si para complicar de vez. Ainda assim, a origem nunca está totalmente neles. Tampouco a responsabilidade é apenas do ambiente em que aquele sujeito vive, com todas as pedras em que tropeça na trajetória da vida.

"Os problemas mentais são resultado de uma combinação", explica a professora Síntia. "Em algumas doenças, a genética pesa mais, como é o caso da esquizofrenia. Em outras, o fator ambiental é maior do que o genético, como na depressão", compara.

Os primeiros estudos para entender o grau de importância de um componente e de outro foram realizados com gêmeos — irmãos que, afinal de contas, compartilhavam a mesma bagagem genética. Eles serviram para calcular a herdabilidade, isto é, o índice que mede, em uma escala de zero a 100, qual seria o nível de contribuição da genética em cada transtorno.

"Se a gente pegar a esquizofrenia, de acordo com esses estudos com gêmeos, a herdabilidade seria de 80%", conta Síntia. "Isso significa que apenas 20% viriam da contribuição ambiental."

Uma letra alterada já faz toda a diferença entre nós

Hoje, porém, existem muitas outras formas de você estimar a herdabilidade genética. Uma delas, mais moderna, é olhar para os chamados SNPs (os geneticistas pronunciam esta sigla assim, "snips").

Para compreender o que são, você precisa lembrar que o conjunto do material genético, ou genoma, guardado no núcleo de cada uma de suas células, é no fundo uma sequência de letras.

Talvez se espante, mas naquela analogia de que o tal genoma seria um livro com a receita da vida, eu e você, a celebridade e o ilustre desconhecido, quem está aqui no Brasil e quem está lá do outro lado do mundo, todos nós somos praticamente iguais.

Isso porque, atenção, 99,5% das nossas sequências de letras são idênticas, sem tirar nem pôr. Apenas 0,5% determina a nossa diversidade. Essa porção ínfima garante a gama características físicas e de personalidade que vemos por aí.

"Por sua vez, no jargão da genética, essas diferenças nos genes são conhecidas por polimorfismos ou variantes", ensina a professora. "E o tipo mais abundante são os tais SNPs."

A sigla, em inglês, é de "single nucleotide polimorphisms". Single, ou "única", porque é de fato uma única, umazinha só letra trocada em determinada posição do genoma, em vez de duas ou mais naquele trecho.

Nas investigações da genética psiquiátrica, os estudos fazem uma varredura — a genotipagem —, ficando de olho apenas em 1 milhão de SNPs, já que são pontos onde já se espera a troca de uma letra. E, desse modo, os geneticistas encontram alguns padrões.

"Consigo reparar que, em determinado ponto do genoma, uma letra — vamos imaginar um "T", por exemplo — é mais frequente em pessoas com depressão, se a gente compara com quem não tem esse problema", exemplifica a geneticista.

Não quer dizer que essa letra "T" cause por si só a doença, mas que está associada aos quadros depressivos. Logo, podemos até imaginar que ela, quando é achada bem ali, indicaria que aquela pessoa teria um maior risco de cair deprimida.

O interessante é que, de acordo com os SNPs, a herdabilidade da esquizofrenia seria perto dos 30%. O que causa estranheza, porque nos estudos com gêmeos se falava em 80%, certo? "Há explicações para isso", diz a professora. "Uma delas é que o nosso genoma não e feito só de SNPs", pondera.

Mas os SNPs podem, sim, nos contar muito sobre as bases genéticas do déficit de atenção, do autismo, dos transtornos de ansiedade, da esquizofrenia e de muitos outros problemas.

Por exemplo, em um artigo de 2019, publicado pelo Consórcio Mundial de Genética Psiquiátrica do qual o grupo da Unifesp faz parte, Síntia Belangero e seus colegas demonstraram que algumas doenças psiquiátricas compartilham SNPs, isto é, carregam as mesmíssimas alterações em boa parte das sequências. É o que se nota com a esquizofrenia e o transtorno bipolar. Ou com os transtornos compulsivos entre si. Digamos que são problemas geneticamente mais próximos.

"Isso nos ajuda a entender por que uma pessoa com depressão também pode ser diagnosticada com ansiedade", diz a professora. Ou seja, na prática, as doenças podem conviver.

Uma curiosidade é que essas variantes genéticas relacionadas aos problemas psiquiátricos não se repetem nas doenças neurológicas, como o Alzheimer e o Parkinson. Apesar de tudo acontecer no cérebro, a genética aponta que a mente, sob certo pode de vista, é um universo à parte.

Conhecer para prevenir

Não é para agora, avisa a professora, mas esperança é que, um dia, os achados da genética psiquiátrica ajudem não só a antecipar um diagnóstico certeiro — já que, em algumas condições, ele é difícil e nebuloso — como possam contribuir para a prevenção, quando a ciência compreender muito mais o diálogo dos nossos genes com o ambiente.

"Conhecendo bem os fatores genéticos e como eles interagem com determinadas situações e atitudes, talvez seja possível tomar cuidados específicos para evitar que uma doença mental evolua", imagina a geneticista.

Ela fala da esquizofrenia. Nela, muitos fatores ambientais que já foram decifrados. "O maior deles é o uso da maconha", diz. Ou seja, independentemente de discussões sobre legalização ou qualquer controvérsia, a Cannabis é muito contra-indicada para quem já carrega aquelas SNPs que são frequentes nos quadros esquizofrênicos.

Outro exemplo está em um artigo publicado pelo grupo da professora, que se baseou em dados de crianças e adolescentes acompanhados pelos pesquisadores há mais de dez anos. Ali, fica claro o seguinte: maus tratos na infância têm um alto impacto na expressão de alguns genes relacionados a sintomas da depressão, especialmente em meninos.

Em mais um estudo apresentado no evento do Sírio Libanês, a pesquisadora Letícia Spindola, do mesmo grupo da Unifesp, observou crianças que passaram por eventos adversos, como uma mudança indesejada de escola, a morte de uma pessoa querida ou um problema grave de saúde. Essas três situações também provocaram alterações na expressão dos genes relacionados a sintomas psiquiátricos.

Na contrapartida, há o que protege a nossa mente. A pesquisadora Carolina Muniz de Araújo, aluna de Síntia Belangero na Unifesp, acaba de publicar um trabalho realizado em parceria com cientistas da Universidade Yale, nos Estados Unidos, em que se debruçou sobre informações genéticas de centenas de milhares de pessoas que, de acordo com as trocas de letrinhas em seu DNA, apresentavam tendência à síndrome do estresse pós-traumático.

Pela avaliação do questionário respondido por elas, o que faz diferença significativa para esse problema não se manifestar ou, ao menos, não se manifestar com tanta força na idade adulta diante de situações que poderiam ser traumatizantes foi a percepção de terem recebido amor na infância. Para você ver que, às vezes, até os nossos genes se dobram com uma dose de afeto.

https://www.uol.com.br/vivabem/colunas/lucia-helena/2022/02/03/doencas-mentais-como-a-genetica-pode-ajudar-no-diagnostico-e-no-tratamento.htm

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