Melanie Mendoza
15 de outubro de 2007
Melanie Mendoza
A PSICOPATOLOGIA DE KARL JASPERS:
AS BASES FILOSÓFICAS, O EXAME PSÍQUICO
E A PRÁTICA CLÍNICA
Trabalho apresentado à
Faculdade de Filosofia, Letras e Ciências Humanas
da Universidade de São Paulo
como requisito para aprovação na disciplina de
Epistemologia das Ciências Humanas (FLF0477)
Prof. Dr.Vladimir Pinheiro Safatle
São Paulo
2007
Karl Jaspers é freqüentemente evocado como paradigma da psiquiatria e psicopatologia no Século XX. Seu tratado de medicina e filosofia, “Psicopatologia Geral”, publicado pela primeira vez em 1913, utiliza a fenomenologia de Husserl e a psicologia compreensiva como as bases seguras para compreender a vivência psíquica mórbida. Na filosofia, área a qual se dedicou mais tarde, Jaspers integra os nomes da filosofia existencialista, aprofundando-se então em alguns temas que já eram colocados em seu trabalho anterior.
Julián Marías em seu “História da Filosofia” (2004) afirma que Jaspers “demonstrou uma preocupação moral constante, e se ocupou minuciosamente da responsabilidade da Alemanha, da defesa da liberdade e dos problemas históricos do nosso tempo.” (MARÍAS, 2004:486) Sobre o conjunto de sua vida e obra, Hannah Arent lhe dedica uma bela homenagem em um discurso proferido em 1958 onde afirma que o que Jaspers “representava [sob o regime do nacional-socialismo], quando totalmente isolado, não era a Alemanha, mas o que restara da humanitas [no sentido kantiano] na Alemanha.”(ARENDT, 1999:71)
Na filosofia existencialista coloca-se como crítico dos pensamentos de Heidegger e Sartre:
“na corrente do pensamento esclarecedor da existência, a partir de Kierkegaard e Nietzsche, Heidegger tentou criar uma moldura ideológica sólida, que qualificou como ‘ontologia fundamental’ e elaborou, ramificando-a, nos ‘existentialia’(em analogia com as categorias das objetividades existentes) (...) Não obstante o valor das explanações heideggerianas concretas, tenho para mim que, em princípio, sua tentativa é um erro filosófico. De fato Heidegger leva que o lê, não a que filosofe, mas a que descubra o esquema total do existir humano (...) O que nos interessa, todavia, é que aplicar essa ontologia da existência pode ter quando muito, o valor de teoria, ou de eventual construção para conexões compreensíveis particulares (...) As obras de autores que aplicam esta ontologia à psicopatologia parecem-me, decerto tocar, por sua vez, no que é filosoficamente essencial - tratando-o porém como objetificado, conhecido e descoberto, com o que a filosofia se perde sem que adquiramos conhecimento algum.” (JASPERS citado por FIGUEIREDO 1989:181)
O foco deste trabalho, no entanto, será apenas uma de suas obras, “Psicopatologia Geral”, nela aborda a psicopatologia como ciência pura e seus métodos de investigação da vida psíquica. Neste livro Jaspers deixou sua marca pessoal na história da psicologia e da psiquiatria afirmando que para entender o homem é preciso utilizar métodos da medicina somática e da filosofia:
“Para Jaspers a psicopatologia é uma ciência complexa: é uma ciência natural, destinada à explicação causal dos fenômenos psíquicos mediante os recursos e teorias acerca dos nexos extraconscientes que determinam esses fenômenos; e é ciência do espírito, voltada para a descrição das vivências subjetivas, para a interpretação das suas expressões objetivas e para a compreensão de seus nexos internos e significativos.” (FIGUEIREDO, 1989:180)
Para compreender a patologia mental, não é suficiente compreender o funcionamento cerebral, é preciso entender o próprio enfermo e seu mundo – Jaspers não deixa, contudo de discutir em seu livro o próprio conceito de enfermidade e como se dá a sua relação com contextos históricos e sociais. A preocupação epistemológica da fenomenologia parece perfeita para o seu projeto, conforme assinala Figueiredo:
“Com o uso do método fenomenológico Jaspers se propõe descrever as estruturas universais dos fenômenos subjetivos da vida psíquica mórbida, cuja gênese e interdependência serão depois explicadas e compreendidas.”(ibidem)
Muito embora, seu projeto seja o de estabelecer bases sólidas para a ciência psicopatológica[1], discute também a prática médica e a psicoterapia, e as relações entre o médico e o paciente: ambos devem ser entendidos como existências em seus mundos, estes são dados pelo que é captado por suas consciências. Mas para Jaspers essa é também uma relação assimétrica, e evoca o conceito freudiano de transferência, sem, no entanto, considerá-la como um dos fundamentos do tratamento, como ocorre na psicanálise.
Será sobre esses dois temas presentes em “Psicopatologia Geral” que trataremos nesse trabalho: a psicopatologia como campo de conhecimento e métodos de investigação da psique fundamentados em uma ciência do espírito, a filosofia fenomenológica, e as relações entre médico e paciente que são estabelecidas na psicoterapia, assim como uma breve discussão dessas relações em comparação ao modelo psicanalítico.
Conforme descreve Figueiredo (1989), as ciências compreensivas, herdeiras, sobretudo do romantismo alemão, ao rejeitarem o modelo cientificista tinham como desafio produzir, identificar e interpretar adequadamente uma verdade que desse conta da complexidade da experiência, sem contudo produzir uma ciência totalmente baseada na subjetividade. Tanto os estruturalismos como a fenomenologia, enquanto matrizes de pensamento psicológico representam respostas a esse desafio. O primeiro preocupa-se com o rigor metodológico enquanto a segunda “se preocupa essencialmente com o rigor epistemológico, promovendo a radicalização do projeto de análise crítica dos fundamentos das condições de possibilidade do conhecimento.”(FIGUEIREDO,1989:172)
Além dos pensadores gregos Husserl revela em seu “Méditations Cartésiennes” as influências recebidas de Descartes, mas sinaliza logo as diferenças conforme descreve Françoise Dastur:
“Na verdade, o problema de Husserl de modo algum é o de Descartes: ele não se pergunta se as coisas exteriores ao seu eu existem verdadeiramente - em nenhum momento ele duvida da existência do mundo exterior - mas como, na imanência, podemos conhecer o transcendente. Para Husserl a existência do mundo não é incerta como ela o é para Descartes, mas, sim, incompreensível. Eis por que não se trata para ele, de modo algum, de garantir a certeza da existência do mundo diante dos céticos, mas unicamente, compreender-lhe o sentido” (DASTUR citada por PENNA, 2001:37)
As evidências apodíticas às quais a filosofia de Husserl se atém são os atos da consciência intencional e seus objetos imanentes. Os fenômenos são entendidos como objetos da experiência possível. A fenomenologia será então uma ciência descritiva desses objetos, aos quais se chega através da intuição pura, numa apreensão imediata dos objetos ideais. (FIGUEIREDO,1989) Quando fundamenta as bases de sua psicopatologia, Jaspers demonstra a influência recebida de Husserl: logo na introdução de seu livro afirma que seu objeto é o acontecer psíquico consciente; quer saber o quê é e como se dá a experiência humana, deseja conhecer a dimensão das realidades anímicas. Como fenomenologia deixa claro que a utiliza no sentido da ‘psicologia descritiva de manifestações da consciência’, empregado por Husserl inicialmente, diferentemente da abordagem que este usou mais tarde, no sentido de ‘contemplação da essência’.
Assim como a fenomenologia busca elucidar as estruturas formais que organizam a experiência de acordo com os diferentes modos da consciência e das diversas regiões do ser (ibidem), Jaspers preocupa-se com o método de investigação de seu objeto e na comunicabilidade de conceitos, e portanto, diferentemente da psicopatologia descritiva de Kraepelin. Para ele o psicopatologista:
“busca conocer, caracterizar y analizar, pero no al hombre particular, sino al hombre en general(...)No quiere la interpretación afectiva o la empatía (Einfühlen) o la contemplación o visión en sí – esto sólo es para él material, cuyo rico desarrollo le es indispensable -, sino que busca lo expresable en conceptos, lo comunicable, lo que se puede exigir en reglas y se deja comprender en algunas relaciones” (JASPERS, 2006:7) [2]
Justifica sua abordagem filosófica recusando o dogma de que as enfermidades são enfermidades cerebrais. Seu campo não é a neurologia. A medicina somática é entendida como um método de elucidação dos mecanismos extraconscientes das patologias. Corpo e alma formam um todo indissolúvel para Japers, mas as causalidades físicas estão longe de explicar a totalidade da experiência humana. A psicopatologia persegue o psíquico até os limites da consciência, mas nesses limites não se pode encontrar absolutamente nenhum processo físico que corresponda diretamente às manifestações mais espantosas da vida psíquica mórbida.
Para Jaspers a fenomenologia tem como missão apresentar intuitivamente os estados psíquicos que experimentam de fato os enfermos, de considerar esses estados segundo suas condições de afinidade e semelhança, limitá-los e distinguí-los o mais estritamente possível e de aplicar-lhes termos precisos. Como material de investigação são utilizadas as autodescrições e confidências dos pacientes.
Um exemplo do resultado da aplicação de seu método é a sua definição de delírio, manifestação freqüente nas psicoses e esquizofrenias, que é ainda mantida e utilizada na psiquiatria atual, demonstrando o cuidado de Jaspers em delimitar, o mais precisamente possível, as manifestações da vida psíquica mórbida. Abaixo um trecho extraído do site Psiqweb, freqüentemente utilizado como referência por estudantes da área de saúde mental:
“Jaspers define o delírio com sendo um juízo patológicamente falseado e que deve, obrigatoriamente, apresentar três características: 1) Uma convicção subjetivamente irremovível e uma crença absolutamente inabalável com impossibilidade de se sujeitar às influências de quaisquer argumentações da lógica; 2) Um pensamento de conteúdo impenetrável e incompreensivo psicologicamente para o indivíduo normal; 3)Uma representação sem conteúdo de realidade, ou seja, que não se reduz à análise dos acontecimentos vivenciais.
Essa definição de Jaspers é de extremo valor na diferenciação entre sugestionabilidade e delírio, ou seja, diferenciar a pessoa que se considera possuída por entidade espiritual durante um culto religioso e um delírio.” (BALLONE, 2005)
Ao dar as indicações para aplicação de seu método, assinala que só o que existe realmente para a consciência deve ser analisado, deixando de lado todas as teorias recebidas, as construções psicológicas, as interpretações e apreciações. É preciso que o cientista se dirija apenas ao que pode ser estendido à sua existência real, ao que ele pode distinguir e descrever. Sobre isso desabafa: “Esta es una tarea difícil, según enseña la experiencia”(JASPERS, 2006:66) O entendimento mais profundo de um caso individual ensina, fenomenologicamente, o geral a respeito de inúmeros outros casos. Na fenomenologia importa, portanto exercitar a contemplação exata do que é experimentado pelos enfermos, para ser reconhecido o idêntico em outros casos.
Jaspers esclarece que a vida psíquica consciente não é, todavia, um aglomerado de fenômenos particulares isoláveis e sim um todo unitário em constante movimento e de onde, ao descrevê-los, destacamos características singulares. “Ese todo unitario es alterable por el estado de conciencia, en el que se encuentra de tanto en tanto el alma.”(JASPERS,2006:68) Disto resulta que: ao analisarmos os fenômenos, isolando-os, dois casos podem ser percebidos como idênticos, pois os fenômenos quando descritos são tornados mais puros e precisos do que são na realidade; e os fenômenos podem ocorrer de maneira diversa das descrições de acordo com os aspectos que tenham sido privilegiados.
A ciência pura de Jaspers além de orientar o pesquisador, dá as bases para o exame psíquico.
O método jasperiano de exame psíquico: psicologia do mundo
Para examinar o homem é preciso conceber um modelo de seu funcionamento, para isso Jaspers evoca uma concepção orgânica do conjunto homem e seu comportamento no mundo, devendo ser essa a fundamentação das análises particulares. A alma, a vivência interior, não são acessáveis externamente, portanto não são passíveis de nenhum exame direto, mas as suas produções podem ser percebidas. Ao explicar seu método evoca a “fisiognomia”[3] em Goethe que:
“deduce desde lo externo lo más interno. (...) Ambiente social, costumbres, posesiones, vestidos, todo lo modifica, todo lo envuelve. Penetrar hasta su fondo más intimo a través de esas envolturas, encontrar incluso en esas determinaciones extrañas puntos firmes desde los cuales se pueda concluir respecto de su esencia parece un extremo difícil, más aún imposible. Pero estemos tranquilos! Lo que rodea lo individuo no sólo actúa sobre él, él obra también a su vez sobre sí mismo, y en la medida en que se modifica, modifica de nuevo las cosas a su alrededor” (GOETHE citado por JASPERS,2006:313)
Ao ordenar os conceitos esclarece que é preciso distinguir e analisar cuidadosa e individualmente cada um desses elementos para construir um esboço da imagem do mundo do sujeito: 1) a conduta – entendida como atitude, os gestos, a maneira como agem individuo e ambiente-; 2) o modo de vida - maneira de atuar no mundo, a escolha dos caminhos, o conjunto da conduta, formação do ambiente e comportamento cotidiano regularmente repetido-; 3) e as ações - entendidas como os atos singulares, importantes e eficazes da atividade voluntária finalista em plena consciência de sentido.[4]
No exame psíquico de modelo jasperiano é preciso diferenciar o ambiente objetivo – sendo este tudo o que existe para o observador, inclusive aquele que não atua sobre o sujeito e é caracterizado pela sua neutralidade - e a imagem de mundo – o apreendido conscientemente pelo individuo a partir do mundo que o circunda. Mundo circundante e ambiente objetivo abarcam um conjunto maior de elementos do que o que é captado na imagem de mundo.
O mundo concreto do indivíduo sempre se realiza historicamente, e compreende o conjunto dos dados sociais e naturais. É partir desse material que o indivíduo constrói eventualmente sua imagem de mundo. Diferenciar a imagem de mundo patológica é a tarefa do psicopatologista. Mas como bem assinala Michel Foucault, em sua “História da loucura” de 1972, o conceito de normal e patológico não é um conceito puramente empírico. A fronteira entre loucura e razão é muito mais móvel do podem fazer crer as classificações psiquiátricas, para ele as ciências médicas positivas são, em parte, devedoras de um saber moral. Portanto, quando o médico ou cientista avalia as imagens de mundo patológicas em oposição a imagens de mundo normais no modelo jasperiano, pode-se objetar que o cuidado epistemológico dado pela fenomenologia não neutraliza o fato de que a divisão entre o mundo normal e anormal não é refratária a outros campos como o moral, o estético e o jurídico. Jaspers não se abstém de discutir o conceito de enfermidade na psiquiatria depois de fazer uma brevíssima análise histórico-social:
“Así fueron y son resumidas con el concepto de enfermo las realidades psíquicas más heterogéneas. ‘Enfermo’ es un concepto general de demérito, de falta de valor, que barca todos los deméritos posibles. La expresión ‘enfermo’ en su generalidad no dice absolutamente nada en el dominio psíquico, pues esta palabra abarca al idiota y lo genio, abarca a todos los individuos. Nada nos enseña la declaración de que un individuo está psíquicamente enfermo, sino sólo cuando oímos acerca de manifestaciones y procesos determinados, concretos, en su alma.” (JASPERS, 2006:863)
No entanto pretende encontrar um modelo psicopatológico que possa ser a-histórico, ou nas palavras de Jaspers, separar “la multiplicidad histórica de los mundos con sus metamorfosis en el proceso histórico espiritual y la diversisdad ahistórica de lo psicopatológicamente posible” (JASPERS, 2006:320) é a tarefa do psicopatologista.
Enumera então o que deve ser entendido como enfermidade: 1) processos somáticos; 2) acontecimentos graves que causam ruptura com a vida até então considerada sã; 3) desvios grandes em relação ao normal estatístico e visto como indesejados pelo afetado ou seu meio. E assinala algumas pistas que podem ser consideradas pontos de partida para o diagnóstico de uma morbidez: a percepção da enfermidade pelo paciente, ou seu sofrimento, ou ainda a completa ausência de consciência da morbidez de seu estado; para o observador, a incompreensibilidade, a ruptura radical das possibilidades de comunhão. Esses modelos de enfermidade e processos mórbidos permanecem até hoje na clínica psiquiátrica. No site Psiqweb encontramos a seguinte discussão acerca do diagnóstico psiquiátrico:
“Na prática, entretanto, podemos dizer que um tratamento psiquiátrico é pensado sempre que uma manifestação psíquica que incomoda o sistema sócio-cultural, a família ou faz sofrer o indivíduo(...) na questão do diagnóstico social da loucura, a unidade de observação é o ato [grifo do autor] do paciente” (BALLONE, 2005)
Na análise dos resultados particulares se pretende chegar a apreensão do mundo dos enfermos, ou seja, como experimentam a atuação da realidade que os rodeia e como se movem nessa realidade. Busca-se descobrir o que foi transformado no seu mundo, de onde o psicopatologista pode reconhecer apenas pistas[MM1] .
Jaspers considera normal o mundo que possui a objetividade de algo que vincula os indivíduos, de algo comum, onde os indivíduos se encontram; além disso, esse mundo é realizador, eleva, leva a vida a um desenvolvimento. O mundo anormal por outro lado é aquele em que: 1) a causa de sua origem é empiricamente conhecida; 2) separa no lugar de unir os indivíduos; 3) atua limitando progressivamente e não ampliando a experiência; 4) que foi perdido, ou conforme as palavras de Ideler citadas por Jaspers:“quando se perde o sentimento de posse segura de bens intelectuais e sensíveis” [5].
Na psicoterapia é o mundo do paciente - sua existência- que deve estar em comunhão com o mundo - e existência - do médico para que exista um trabalho no sentido da minimização do sofrimento.
Jaspers deixa clara a importância da prática da psicopatologia, ainda que tenha demonstrado uma predileção pelo campo ciência pura. Diz: “Hay que ayudar el enfermo (...) El saber en sí no es útil para nada” (JASPERS, 2006:871) Reconhece que a ciência sem aplicação é niilismo terapêutico, assim como a prática sem o embasamento teórico dado pela ciência é charlatanismo.
A prática é fonte de conhecimento não apenas quando atinge os resultados desejados, mas também através do inesperado, e é nesse momento que se corresponde com a ciência pura. A psicoterapia é colocada ora em oposição, ora em aliança com práticas chamadas por ele de exteriores, representadas por internações e alienações.
Ao discutir as determinações exteriores afirma que a clínica médica e a psicoterapia são influenciadas pelas condições de poder do Estado e da religião de cada época. Para Jaspers é preciso que o médico não seja escravo dessas instâncias. O Estado intervém alienando juridicamente e internando indivíduos, mas diferentemente de Foucault, Jaspers crê que a autoridade do médico se dá apenas pessoalmente no consultório. Ressalta, entretanto, o perigo de que a ciência possa converter-se em uma instituição encobridora e tranqüilizadora, se ela for plástica em relação à prática, tornando-se então um instrumento controlado convenientemente pelos interesses de outros campos, como o jurídico, cujos limites recebidos por ela, se isso ocorrer, seriam não da natureza do saber, mas do desejado.
A psicoterapia é definida como a tentativa de ajudar o doente por meio da comunhão psíquica, da investigação de sua interioridade até as últimas profundezas, com o intuito de encontrar os elementos que o levam por um caminho de cura, essa descrição nos remete, em parte, ao modelo psicanalítico como Freud o concebe em “Novas Conferências sobre a psicanálise” de 1933. O propósito terapêutico da psicanálise seria “fortalecer o ego, fazê-lo mais independente do superego, ampliar seu campo de percepção e expandir sua organização, de maneira a poder assenhorear-se de novas partes do id. Onde estava o id, ali estará o ego.”(FREUD, 2007:64) Se para Jaspers nas profundezas da interioridade pode estar o caminho da cura, para Freud é um trabalho de expansão do ego através da interpretação de elementos do inconsciente.
Jaspers afirma que o médico deve recusar uma visão parcial do paciente, é preciso se dirigir a ele como ser racional e não como objeto, é seu direito obter as informações sobre seu estado. A relação entre médico e paciente é em última instância uma “comunhão existencial”. “ Médico e enfermo son ambos seres humanos y como tales son compañeros de destino. El médico no es solamente técnico, ni autoridad, sino existencia para existencia, esencia humana perecedera con los otros” (JASPERS, 2006:879)
Avalia que no consultório há superioridade do primeiro em relação ao segundo, ainda que ambos tenham alcançado uma legítima comunhão. A superioridade, diz Jaspers, não deve derivar de uma superioridade física, sociológica ou psicológica, mas como a de “um investigador da natureza”. Evoca Weizsäcker “ Solo cuando la naturaleza en el médico es afectada por la enfermedad, infectada, excitada, espantada, sacudida(..)sólo en la medida en que eso ocurre, es posible su dominio por él.”[6] Para Jaspers o psicoterapeuta deve ser, ainda que inadvertidamente, um filósofo.É ao discutir essas relações que Jaspers evoca o conceito freudiano de transferência:
“ Una das relaciones de hombre a hombre, que es importante para el alienista, es la ‘transferencia’ descrita por Freud, de impulsos de veneración, de amor, pero también hostiles al médico. En el tratamiento psicoterapéutico esa transferencia es una ineludibilidad y un escollo peligroso, si no es reconocida y superada” (JASPERS, 2006:885)
Quando assinala a sua concordância como termo freudiano de transferência, é preciso que pesquisemos o sentido que Jaspers lhe atribui, pois dentro da psicanálise ele ganhou diferentes conotações: um deslocamento de desejos inconscientes (no sonho); de afetos (amor transferencial) e ligadas a imagos[7] parentais; ou na neurose de transferência, como um momento importante do tratamento psicanalítico e ao mesmo tempo como um obstáculo ao tratamento apresentando-se como compulsão a repetição[8]. Esses não são, contudo os sentidos que Jaspers parece querer empregar, provavelmente refere-se apenas a sentimentos positivos e negativos em relação ao psicoterapeuta dentro da prática clínica, não sendo neste caso, como vistos Freud, elementos essenciais, seja como aliados ou como obstáculos.
Para Jaspers o mais importante é a comunhão, para a Freud é a revivência dos afetos na cena psicanalítica. Enquanto para Freud os obstáculos impostos pela transferência precisam ser vencidos pelo analisando durante o processo psicanalítico, para Jaspers é um obstáculo imposto ao psicoterapeuta que não deve se deixar levar por um sentimento de superioridade que impeça uma relação de existência com existência.
Como último tema da comparação entre psicanálise e psicopalogia jasperiana é interessante ressaltar que enquanto a teoria freudiana é construída a partir da prática clínica, Jaspers constrói sua prática a partir dos pressupostos teóricos. Não é possível construir conhecimento psicanalítico longe da prática - em psicanálise é necessário se submeter à análise e atender durante a formação. No modelo de psicopatologia jasperiana, por outro lado, como afirma categoricamente o autor, o que se constrói na clínica é perícia psiquiátrica. Apenas em parte a clínica pode alimentar a ciência, provendo-lhe material para reflexão. O psicopatologista é antes de tudo um filósofo e não um clínico.[9]
A obra de Jaspers é abrangente e desenvolve praticamente todos os temas da área de psicopatologia presentes no seu tempo. Neste trabalho escolhemos apenas alguns tópicos que consideramos mais relevantes para um primeiro contato com a teoria jasperiana: as bases filosóficas para compreensão do mundo anormal e reflexões acerca da prática clínica.
O legado de Jaspers, senão atemporal, mostra-se extremamente longevo. Apesar das transformações que ocorreram na teoria e na prática psiquiátrica - motivadas pelas inovações nos exames de imagem e na bioquímica molecular- o modelo de diagnóstico e alguns elementos da relação entre o médico e o paciente psiquiátrico permanecem muito próximas do modelo médico atual na área, demonstrando que o cuidado epistemológico usado a partir dos pressupostos da fenomenologia deram grande fôlego às descobertas e metodologias jasperianas. Seu livro ainda é hoje uma rica fonte para a formação de profissionais da área de saúde mental por sua precisão, cuidado no diagnóstico e humanidade para com a pessoa que sofre.
Ainda que algumas vezes seu texto parece um tanto idealista quando pensamos em médicos ou psicoterapeutas atendendo em consultórios nas instituições de saúde, é interessante sermos lembrados da tarefa última que é entender a dinâmica e a estrutura psíquica do paciente, para isso é necessário entrar em contato com a realidade vivida por ele, conhecer sua imagem de mundo, pois em psicologia e psiquiatria sintomas são apenas uma pequena parte do mundo interno, e não necessariamente se relacionam com a patologia da mesma maneira como ocorre na medicina somática.
Finalizando com uma comparação entre Freud e Jaspers, analisando as origens da psicanálise e da psicologia compreensiva, podemos entender as razões que explicam em parte o fato da primeira destacar-se no campo da prática terapêutica enquanto a segunda destaca-se no campo das bases epistemológicas e do diagnóstico, pois os objetivos que tinham ao serem fundadas eram diferentes: Freud desejava explicar o que ocorria na clínica e Jaspers pretendia criar bases sólidas para uma psicopatologia que não fosse apenas descritiva.
Referências
ARENDT, H. Karl Jaspers: uma laudatio, in Homens em tempos sombrios, São Paulo: Companhia das Letras, 1999
BALLONE, G.J. Psiqweb - Portal de Psiquiatria, disponível em <http://virtualpsy.locaweb.com.br/index.php> acessado em 10 jun 2007
DASTUR, F. Réduction et Intersubjectivité, in Husserl, Collectif sous la diréction de Eliane Escoubas et Marc Richir, Grenoble J. Millon, 1989
FIGUEIREDO, L. C. M. Matrizes do Pensamento Psicológico, Petrópolis: Vozes, 1989
FOUCAULT, M. História da Loucura, São Paulo: Perspectiva, 2007
FREUD, S. A Dissecção da personalidade psíquica, in Novas Conferências Introdutórias sobre Psicanálise e outros trabalhos, São Paulo: Imago, 2006
HELD, K. Husserl et les Grecs , in Husserl, Collectif sous la diréction de Eliane Escoubas et Marc Richir, Grenoble J. Millon, 1989
JASPERS, K. Introdução ao Pensamento Filosófico, São Paulo: Cultrix, 2005
JASPERS, K Psicopatología General, México: Fondo de Cultura Económica, 2006
LAPLANCHE e PONTALIS. Vocabulário de Psicanálise. São Paulo: Martins Fontes, 2001.
LEGUIL, F. Lacan com e contra Jaspers, Capítulos da Psicanálise, no. 15 São Paulo, abr. 1991
MARÍAS, J. História da Filosofia, São Paulo: Martins Fontes, 2004
PENNA, A. G. Introdução Psicologia Fenomenológica, São Paulo: Imago, 2001
SAFATLE, V. Uma arqueologia do conceito de transferência Notas de aula do curso de Epistemologia das Ciências Humanas, ministrado na FFLCH-USP, São Paulo, 2007
[1] Jaspers distingue a psicopatologia da psiquiatria, enquanto a primeira é ciência pura, a segunda é perícia. O psiquiatra é uma personalidade vivente que analisa e atua, a ciência lhe serve apenas como meio auxiliar.
[2] As citações textuais de Jaspers serão mantidas no espanhol original da edição mexicana que serviu de referência para este trabalho.
[3] Jaspers não faz qualquer menção em seu texto sobre a fisiognomia no sentido de conhecer o caráter do indivíduo através de seus traços físicos.
[4] Ao destacar a interação entre indivíduo e ambiente o leitor pode ser remetido aos pressupostos do behaviorismo radical, devemos, no entanto, esclarecer que Jaspers não sugere que essa interação seja fator determinante na constituição do indivíduo, como advoga Skinner , mas apenas a maneira como o psicopatalogista pode acessar as vivências interiores do paciente.
[5] Para melhor ilustrar a classificação de mundos anormais no sentido jasperiano podemos citar como exemplo de patologias associadas a essa vivência psíquica mórbida na ordem em que foram descritas : 1)meningites com complicações neurológicas; 2) episódios maníacos em transtornos afetivo bipolar; 3) transtorno obsessivo compulsivo; 4) demência.
[6] Essa citação nos remete a uma das máximas do meio psicanalítico: “O analista só pode ir com o analisando até onde ele mesmo tenha ido”
[7] “Protótipo inconsciente que orienta seletivamente a forma como o sujeito apreende o outro; é elaborado a partir das primeiras relações intersubjetivas reais e fantasísticas com o meio familiar” (LAPLANCHE & PONTALIS, 2001:234)
[8] Tendência do sujeito a se colocar em situações, “repetindo assim experiências antigas sem se dar conta do protótipo”(ibidem)
[9] Ao colocar a duas teorias em contraponto somos levados a buscar em Jaspers citações suas sobre a psicanálise freudiana: em “Psicopatologia Geral”, Jaspers afirma que graças ao trabalho de Freud o psíquico tornou-se novamente visível, mas em seguida afirma “que nada no seu trabalho é essencialmente novo” , pois a psicologia de Freud seria na realidade psicologia compreensiva e não causal, uma vez o estudo das causas internas é na verdade compreensão(JASPERS,2006:600); em “Introdução ao pensamento filosófico” de 1965, mostra-se ainda mais crítico, afirmando que enquanto a filosofia elucida a situação concreta, “a psicanálise se desvia para o insensato existencial, que é a interpretação dos sonhos."(JASPERS,2005:91) Em “Lacan com e contra Jaspers” François Leguil aponta a influência do pensamento de Jaspers em Lacan: “a influência das posições metodológicas desenvolvidas na ‘Psicopatologia Geral’ sobre a tese ‘ Da Psicose paranóica em suas relações com a personalidade’ é certa e plenamente assumida”(LEGUIL, 1991), no entanto posteriormente, como sugere o título, Lacan voltou-se com grande força contra o pensamento jasperiano. O diálogo entre Jaspers e os psicanalistas mereceria um estudo à parte.
[MM1]Muitas dúvidas neste trecho referente `a pág 313 e 314