Artigos Científicos

A PREVENÇÃO JURÍDICA NA RELAÇÃO DO PROFISSIONAL DA SAÚDE COM O PACIENTE – RESPONSABILIDADE CIVIL

Rafael Medawar

28 de outubro de 2007

 

 

A PREVENÇÃO JURÍDICA NA RELAÇÃO DO PROFISSIONAL DA SAÚDE COM O PACIENTE – RESPONSABILIDADE CIVIL

 

 

 

Rafael Medawar – advogado

rafael@rmaf.adv.br

2157.4948

 

 

INTRODUÇÃO

 

 

Ao longo do século XX poucas áreas foram tão estudadas quanto a da saúde. O aumento do volume de informações, do número de profissionais e dos problemas cientificamente identificados culminaram na necessidade de especialização dos médicos e no desenvolvimento de ciências como odontologia, fisioterapia e enfermagem, entre outras.

 

No mesmo contexto de evolução científica, o surgimento de diversos meios eficientes de comunicação tornou acessível a todos, embora, quase sempre de modo incompleto e alarmista, o conhecimento que antes era restrito aos estudiosos.

 

Aliado a esse progresso, observa-se o surgimento de técnicas diagnósticas avançadíssimas, aparelhos e exames modernos capazes de identificar ou localizar problemas de forma antes inimaginável.

 

No campo do tratamento, novas técnicas, clínicas e cirúrgicas, ao lado da notória evolução da indústria farmacêutica, permitem amenizar sofrimentos e, por vezes, almejar a cura de males outrora irreversíveis.

 

Nasce a necessidade de dar atendimento, simultaneamente, rápido e eficaz, a um paciente cada vez mais informado, por um médico cada vez mais especializado.

 

 

A CONSULTA MÉDICA

 

 

As pressões exercidas pelas empresas seguradoras, pelos planos de saúde e até pelas políticas governamentais fazem com que a consulta médica seja encarada como um produto, seguindo regras mercadológicas, exigindo atribuições outrora de outras profissões e tirando da medicina a sua essência, prejudicando, assim, o vínculo antes existente entre profissional e paciente.

 

Contudo, em meio a todos os processos evolutivos da ciência, importante lembrar que o profissional consciente não mede esforços para evitar que a automatização dos aparelhos e os efeitos negativos decorrentes das pressões acima citadas sejam condutores da relação estabelecida com o paciente. O caráter humano é ainda um princípio basilar do sucesso de qualquer tratamento.

 

 

PANORAMA JURÍDICO

 

 

Em paralelo às mudanças em matéria de saúde, o panorama jurídico também sofreu importantes alterações. Se por um lado foram reconhecidos importantes direitos do cidadão (boa-fé, função social do contrato, legislação consumerista e responsabilidade civil), por outro surgem demandas sem qualquer embasamento científico ou dotadas de cunho oportunista, as quais visam, claramente, obter vantagens financeiras.

 

Tradicionalmente dedicado à ciência e às pessoas, o profissional da saúde, por todas as mudanças científicas e jurídicas, vem sendo alvo de crescentes questionamentos, o que tende a tornar tenso e “engessado” um ambiente de trabalho que necessita ser equilibrado e livre para que continue evoluindo.

 

A experiência tem demonstrado que o alarmismo que se vem fazendo em nome da chamada “segurança jurídica”, não tem colaborado em nada para o equilíbrio necessário ao desenvolvimento da ciência.

 

Como bem ilustra Miguel Kfouri Neto, em sua obra “Culpa Médica e  Ônus da Prova”, citando GENIVAL VELOSO DE FRANÇA:

 

“O pior de tudo é que as possibilidades de queixas, cada vez mais crescentes, começam a perturbar emocionalmente o médico e que, na prática, isso vai redundar no aumento do custo financeiro para o profissional e para o paciente. Além disso, também se começam a notar a aposentadoria precoce, o exagero no pedido de exames complementares mais sofisticados e a recusa em procedimentos de maior risco, contribuindo assim para a consolidação de uma ‘medicina defensiva’. Essa posição tímida do médico, além de constituir um fator de diminuição na assistência dos pacientes de risco, o expõe a uma série de efeitos secundários ou a um agravamento da saúde e dos níveis de vida do conjunto da sociedade. Se não houver desde logo um trabalho bem articulado, os médicos, num futuro não muito distante, irão trabalhar pressionados por uma mentalidade litigiosa, voltada para a compensação toda vez que os resultados não forem absolutamente satisfatórios.(...)” 

 

 

O PACIENTE

 

 

Visando evitar transtornos como processos administrativos ou judiciais e contribuir para a melhoria na qualidade do serviço prestado pelos profissionais da saúde, passo, agora, a ilustrar alguns pontos que entendo relevantes para a formação dos litígios.

 

Os pacientes que movem ações contra médicos podem ser divididos em três grandes grupos:

 

O paciente insatisfeito:

 

Diversos estudos realizados com base estatísticas judiciais e debates com profissionais da área têm apontado uma incidência sensivelmente maior de processos iniciados em virtude da falta de entendimento entre as partes envolvidas.

 

Explica-se: o paciente, hoje, chega ao consultório médico pleno de informações e de expectativa. Por outro lado, o profissional, muitas vezes não consegue dedicar o tempo que gostaria e que exige sua formação humanitária.

 

Não se pretende aqui, e seria um equívoco, afirmar que o profissional, atualmente exerce sua função com menos esmero. O que de fato ocorre é que a crescente especialização e a supervalorização dos exames clínicos e laboratoriais interferem sensivelmente nos aspectos humanos e psicológicos da consulta. 

 

O profissional que consegue estabelecer uma relação de transparência e humanidade, tende a ter muito menos problemas por eventual insatisfação do que aquele que age com frieza e distância.

 

Mais, em situações de existência efetiva de dano, o paciente tende a ser um aliado na solução do problema quando o profissional demonstra transparência e boa-fé.

 

Diante do cenário atual, importante atentar para a sutil diferença que pode fazer o atendimento personalizado, enxergando no paciente uma pessoa, que pode estar passando por um momento difícil, com dificuldade em aceitar uma patologia, e fazendo-se enxergar como tal. Mesmo que essa atenção seja por um tempo reduzido, ela pode fazer toda diferença no momento da insegurança e da decisão de processar ou não o profissional.

 

Outro fator importante para o estabelecimento de uma relação harmoniosa é identificar uma forma de comunicação acessível à pessoa com quem se está lidando. Nenhuma técnica de tratamento será eficaz se o paciente não puder compreender o que lhe é passado.

 

A comunicacão entre o profissional e o paciente é difícil, sobretudo diante da atual socialização da medicina, com acesso a camadas cada vez mais amplas da população. É imperioso que o médico esteja munido de técnicas para aprimorar essa relação. O paciente não tem o dever nem a capacidade – ainda que imagine que detenha - de saber o que é importante informar ao médico.

 

Essa falta de compreensão, que, na maioria das vezes, decorre de razões como pressa do paciente, falta de atenção, orgulho ou vergonha, impede que sejam sanadas dúvidas importantes, não havendo outra solução que não seja a constante preocupação do interlocutor em confirmar que se fez entender.

 

O oportunista

 

Desde que se começou a falar em reparação de danos por via judicial, sobretudo os chamados danos extrapatrimoniais, têm sido divulgadas por meios de comunicação do mundo todo, sobretudo dos Estados Unidos, decisões onde pessoas e empresas são condenadas a pagar fortunas de indenização por maus produtos ou maus serviços oferecidos aos consumidores.

 

Os mesmos meios de comunicação que fazem com que o paciente chegue, hoje, ao consultório médico, carregado de informações distorcidas, divulgam notícias alarmistas e pouco fundamentadas sobre decisões judiciais (muitas vezes sentenças de primeira instância) condenando empresas a indenizações milionárias.

 

Evidentemente, diante desse cenário, algumas pessoas passaram a se dedicar à busca constante por uma oportunidade para ajuizar uma ação.

 

O que é importante esclarecer em relação a esses processos “oportunistas” é que, em quase todos os casos, a justiça, sobretudo os Tribunais, aos quais todas as partes têm direito de recorrer, sabem reconhecer se há ou não legitimidade no pedido de indenização. A chamada “indústria do dano moral” não encontrou espaço no Brasil. Salvo raras excessões, são condenados apenas aqueles que flagrantemente cometeram um erro.

 

O afirmado no parágrafo anterior ganha mais força quando a matéria é a responsabilidade do profissional da saúde. Para bem da ciência, o Tribunal de Justiça, apesar de não estar obrigado a tanto, admite claramente que só um médico tem capacidade técnica para avaliar o serviço prestado por um colega. As perícias e as posições doutrinárias científicas são respeitadas pelos julgadores.

 

O resultado é que o profissional que procura agir com um mínimo de cautela jurídica, que segue correntes cientificamente  aceitas e que trata seus pacientes com humanidade, dificilmente será condenado em decisão definitiva.

 

Por fim, não só em relação aos chamados pacientes oportunistas mas também quando se tratar de qualquer outro caso que inspire cautela jurídica, quer pela complexidade do tratamento, quer pelo fator psicológico desfavorável do paciente, é importante deixar claro que uma breve consulta a um advogado especialista na matéria poderá evitar problemas futuros.

 

Os médicos atendem todos os dias a pacientes que, por minimizarem os problemas, por temor de enfrentá-los, por negação da existência de risco ou por superdimensionamento de custos, terminam por procurar auxílio num momento em que a solução se tornou muito mais complicada.

 

O direito moderno, assim como a medicina, pode fazer muito mais pelas pessoas no campo da prevenção que na batalha judicial. Às vezes, um consentimento informado bem elaborado antes de uma cirurgia ou uma consulta rápida sobre como agir diante de uma situacão mais complexa, podem ser pouco onerosas e evitar preocupações futuras. Ressaltando-se que o advogado, tal qual o médico, tem o dever e o direito de guardar sigilo sobre as informações pessoais e profissionais de seus clientes. 

 

 

O paciente que sofreu de fato algum dano    

 

A seara jurídica da responsabilidade civil, que estuda e disciplina todo o processo da reparação de danos, é sustentada por um tripé de conceitos indispensáveis à averiguação do dever de indenizar:

 

DANO – CULPA – NEXO

 

Qualquer ação judicial que tenha como objetivo a condenação de um profissional liberal, de qualquer ramo de atividade, ao pagamento de uma indenização, somente terá sucesso se estiverem presentes todos os três elementos: dano, culpa e nexo.  

 

Na prática, o conhecimento, mesmo que superficial, dos três  conceitos basilares da responsabiliade civil servirá para que a comunidade profissional da saúde possa desenvolver sua atividade com maior tranqüilidade e com uma noção mais real do que poderá significar um problema futuro.

 

O dano é, dos três fatores acima, o que tem explicação menos jurídica e mais científica. Em verdade o dano é a base do início de toda a preocupação do profissional. Se não houver um dano ou, ao menos, a impressão dele, a averiguação da presença dos outros fatores não será necessária, porque o paciente jamais buscará reparação.

 

A primeira providência quando um paciente alega ter sofrido algum dano é averiguar se, de fato, o dano ocorreu, ou se trata-se de uma falsa impressão causada por uma conseqüência natural do tratamento realizado. Se não há dano, não há reparação.

 

A experiência prática, aliada ao mencionado alarmismo propagado diariamente pelos meios de comunicação, tem demonstrado que muitas vezes o paciente que, de início, parece ser oportunista é, na verdade, alguém mal informado que confunde conseqüências ou seqüelas previsíveis com danos indenizáveis.

 

Caso o dano realmente exista, partiremos para a avalização do segundo conceito, o da culpa.

 

A culpa, no ramo do Direito Civil, é conseqüência direta da negligência, imperícia ou imprudência por parte do agente.

 

Ou seja, depois de averiguada a efetiva existência do dano, passa-se a analisar se houve negligência (omissão de diagnóstico necessário, desinteresse investigativo), imperícia (aplicação equivocada de alguma técnica ou falta de conhecimento técnico) ou imprudência (falta de cuidado técnico, de proteção).

 

A definição de negligência, imperícia e imprudência não é exata e não há consenso sobre o ponto de delimitação entre cada conceito. Na prática, o que importa  é que o médico deve exercer sua atividade sempre amparado por correntes cientificamente aceitas e com bom senso, tanto no diagnóstico quanto nas etapas seguintes do tratamento.

 

A culpa do profissional liberal, segundo prescreve o § 4º do artigo 12 do Código de Defesa do Consumidor,  deve ser avaliada de forma subjetiva, ou seja, o médico somente será condenado se a sua culpa for cabalmente comprovada.

“Art. 12 - § - A responsabilidade pessoal dos profissionais liberais será apurada mediante a verificação de culpa.”

A sistemática da necessidade de comprovação da culpa quando o processo for movido contra um hospital ou um laboratório será diferenciada e necessita de um explanação mais alongada. De qualquer forma, mesmo essas empresas, se puderem demonstrar que agiram de forma correta (respeitando normas e correntes científicas, como anteriormente descrito), poderão contar com uma boa probabilidade de êxito.

 

Quanto ao nexo causal, cuida de fator de ligação entre o dano sofrido pelo paciente e a culpa do profissional.

 

Na mesma linha de raciocínio válida para o dano e a culpa, a ausência do nexo de causalidade também exclui qualquer possibilidade de indenização.

 

Explica-se: em relações tão delicadas como a dos profissionais da saúde com seus pacientes é muito comum encontrar casos em que está presente algum dos fatores configuradores da culpa e há um dano de fato sofrido pelo paciente, mas não há nexo de causalidade entre ambas.

 

O paciente pode até conseguir provar judicialmete que o profissinal cometeu um erro, mas a perícia demonstra que o dano sofrido não decorre da culpa do médico e sim de outro fator externo ou até de culpa do próprio paciente, que deixou de seguir alguma recomendação ou omitiu informação relevante no momento do diagnóstico. Daí a importância de uma ficha clínica detalhada e legível. Se não há nexo entre a culpa e o dano, não há condenação.

 

 

CONSCIENTIZAÇÃO

 

 

Não se pode esquecer que o exercício de qualquer atividade de saúde no Brasil deve ser considerada em relação às condições de trabalho disponíveis.

 

Continuando o trecho anteriormente transcrito, de GENIVAL VELOSO DE FRANÇA:

 

“(...)Deve-se conscientizar a sociedade mostrando que, além do erro médico, existem outras causas que favorecem o mau resultado, como as péssimas condições de trabalho e a penúria dos meios indispensáveis no tratamento das pessoas. Afinal de contas, muitos pacientes não estão morrendo nas mãos dos médicos, mas nas filas dos hospitais, a caminho dos ambulatórios desarrimados, nos ambientes miseráveis onde moram e na iniquidade da vida que levam. Desse modo, é mais fácil condenar os médicos do que se incrementarem políticas que favoreçam a vida e a saúde das populações, principalmente daquelas mais flageladas pelo desprezo e pela miséria.”

 

Evidentemente, a culpa de um médico que opera em condições adversas no sistema público de saúde ou num local de acesso remoto não poderá ser avaliada em igualdade de condições com a daquele que opera nos modernos centros hospitalares das grandes capitais. Deve ficar claro, também, que a culpa somente será amenizada pela  falta de condições de trabalho se estas guardarem relação direta com o dano, ou seja, se houver nexo.

 

Conclui-se que, mesmo que haja dano comprovado, o profissional que puder demonstar que agiu de acordo com uma posição doutrinária aprovada pela comunidade científica e pelos conselhos reguladores (CRM, CRO, etc), que respeitou normas de proteção pessoal e do paciente, de vigilância sanitária e que atuou com o chamado bom senso, dificilmente será condenado, quer administrativa, quer judicialmente.

 

Concluindo, a nossa posição é de que o profissinal da saúde deve procurar agir de acordo com as posições científicas que considera mais corretas. O profissional deve também prestar atenção a pequenos detalhes que podem comprometer a relação com o paciente  sem necessidade.

 

Ao se deparar com uma situação de solução juridicamente mais complexa, o profissional não deve hesitar em procurar o auxilio preventivo de um advogado especialista na matéria. Como anteriormente mencionado, um consentimento informado bem elaborado ou uma consulta sobre a postura a ser adotada diante de determinadas situações poderão evitar problemas muito maiores no futuro.

 

Por fim, quando se trata de relações humanas, sobretudo envolvendo o Direito, deve-se ter consciência de que problemas podem, sim, ocorrer. O bom profissional, bem orientado, não deve temer enfrentar a situação.

 

A cada vitória do médico consciente e a cada condenação daquele que efetivamente causou danos, a comunidade da saúde avança no sentido de consolidar ainda mais sua credibilidade, pois é notório o quanto um “mau” profissional prejudica a imagem da classe.

 

Quanto mais próximo a sociedade chegar do almejado equilíbrio da relação médico-paciente, mais segurança e melhores condições haverá para o desenvolvimento sadio e sustentável da ciência.

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