Artigos Científicos

Autismo e transtornos invasivos do desenvolvimento

Ami Klin, Marcos T Mercadante

7 de janeiro de 2008

Rev. Bras. Psiquiatr. v.28  supl.1 São Paulo maio 2006

Autismo e transtornos invasivos do desenvolvimento

 

O autismo e os transtornos invasivos do desenvolvimento (TIDs), às vezes denominados transtornos do espectro do autismo, referem-se a uma família de distúrbios da socialização com início precoce e curso crônico, que possuem um impacto variável em áreas múltiplas e nucleares do desenvolvimento, desde o estabelecimento da subjetividade e das relações pessoais, passando pela linguagem e comunicação, até o aprendizado e as capacidades adaptativas.1 A manifestação paradigmática dos TIDs - o autismo - é um transtorno de desenvolvimento com um modelo complexo, no sentido de que qualquer tentativa de compreendê-lo requer uma análise em muitos níveis diferentes, como do comportamento à cognição, da neurobiologia à genética, e as estreitas interações ao longo do tempo. Sessenta anos após as descrições iniciais do autismo, sabemos que os TIDs são as condições mais prevalentes e marcadamente genéticas entre todos os transtornos de desenvolvimento. O aumento exponencial na identificação dos indivíduos com autismo na década passada renovou a urgência com que os pesquisadores em todo o mundo estão se esforçando para elucidar suas causas e desenvolver tratamentos mais eficazes. Este suplemento fornece um resumo desse esforço, conduzindo-nos pelas descrições das características clínicas e das classificações diagnósticas dos TIDs, passando pelo que conhecemos sobre os mecanismos neurobiológicos, neurofuncionais e genéticos, até os tratamentos biomédicos, comportamentais e educacionais mais avançados.

Com a globalização da ciência e o fácil acesso aos parâmetros das melhores práticas, os indivíduos com autismo devem receber o melhor que as ciências médicas têm para oferecer onde quer que eles estejam, com tratamentos validados empiricamente, em substituição às crenças que não têm comprovação de apresentarem algum benefício às pessoas com autismo e às suas famílias. Este suplemento reúne cientistas clínicos do Brasil, dos Estados Unidos, da Holanda e da França. Por meio de suas múltiplas pesquisas em colaboração, esses pesquisadores clínicos combinam os estudos sistemáticos com seu comprometimento com melhores práticas clínicas. Essa sinergia é crítica se queremos evitar vias sem saída, práticas prejudiciais e discrepâncias ou isolamento geográficos.

O suplemento começa com uma visão geral sobre o autismo e a síndrome de Asperger,1 o mais conhecido dos TIDs. Sabemos, hoje, que essas condições são "primas" próximas nas perspectivas comportamentais, neurobiológicas e genéticas. E elas apontam para um vasto grupo heterogêneo de condições, com os indivíduos afetados variando quanto à inteligência: desde comprometimento profundo à faixa super-dotada; alguns não falam, ao passo que outros são loquazes, assoberbando os demais com monólogos intermináveis; alguns têm suas vidas dominadas por maneirismos e rituais motores imutáveis, ao passo que outros dedicam toda sua energia intelectual à busca exclusiva de fatos e de informações sobre tópicos incomuns e altamente circunscritos.

Esse continuum de acometimento não somente deu origem ao termo transtornos do espectro do autismo, mas também fez com que os pesquisadores clínicos se conscientizassem de que as nosologias categoriais têm limitações e que temos que buscar abordagens dimensionais em nossos estudos sobre o autismo. Em outros termos, quais são as dimensões que geram esse espectro de condições? E quais são os fatores que medeiam a expressão da síndrome e dos desfechos finais? As respostas a essas perguntas ainda são equívocas, mas sabemos que os mais prevalentes dos TIDs não são necessariamente os mais conhecidos - o autismo e a síndrome de Asperger -, mas aqueles com as formas residuais ou variantes pobremente definidas do autismo, hoje em dia ainda abrangidas pelo termo transtorno invasivo do desenvolvimento - sem outra especificação (TID-SOE). O segundo artigo2 neste suplemento cobre esse tema, sua importância e as oportunidades em termos de pesquisa que as manifestações variáveis de comprometimento social e de comunicação com início precoce abrem para uma melhor ciência da psicopatologia do desenvolvimento. É importante que saibamos que os indivíduos com transtornos do espectro do autismo, que preenchem ou não os critérios das síndromes mais bem definidas, requerem todos eles serviços de apoio individualizados, intensivos e abrangentes. Além disso, esse segundo artigo também apresenta o conhecimento atual sobre as duas categorias restantes dos TIDs: a síndrome de Rett e o transtorno desintegrativo da infância.

Os dois artigos seguintes3-4 cobrem as mais animadoras áreas de pesquisa atual sobre o autismo. Apesar de que os mecanismos específicos que impactam o crescimento e a organização cerebral e suas interrupções ainda sejam desconhecidos, as duas últimas décadas testemunharam uma transformação radical na área, tendo emergido a partir de centenas de estudos uma estratégia de pesquisa multifacetada e com grande sinergia. Em primeiro lugar, sabemos que a morfometria cerebral está alterada, mas que isso ocorre tão precocemente na vida que levanta hipóteses sobre interrupções no crescimento e na conectividade, com eventos de desenvolvimento em cascata que levam a sistemas cerebrais atípicos, que são os mais incomuns, se considerados como circuitos e não como estruturas isoladas.3 Em segundo lugar, a pesquisa isolou o substrato neural da socialização, desde a percepção das faces e vozes, do olhar e do movimento social, chegando à capacidade de atribuir intenções aos demais e de ler pensamentos.3 Todos eles são "endofenótipos" candidatos, ou fenótipos mediadores que estão potencialmente no coração dos mecanismos de herdabilidade envolvidos no autismo. Infelizmente, os modelos de transmissão são ainda desconhecidos. E, mesmo assim, a pesquisa genética avançou a um ritmo alucinante: a pesquisa sobre as famílias afetadas definiu o "fenótipo de autismo no sentido amplo", abrangendo o autismo além dos indivíduos com um diagnóstico de TID; as abordagens genéticas moleculares isolaram as regiões de suscetibilidade, mesmo que a reprodutibilidade dos achados ainda seja limitada; e as abordagens citogenéticas isolaram genes específicos envolvidos em algumas formas de TIDs.4 Atualmente, estamos longe de sermos capazes de aconselhar de forma apropriada as famílias ou de realizar o rastreamento genético mais além do nosso conhecimento sobre os índices de recorrência. Mais ainda, apesar das complexidades esperadas em termos de interações gene a gene e gene-ambiente, não podemos senão esperar que sejam revelados grandes achados na próxima década.

Mas é improvável que, mesmo com a elucidação dos fatores causativos do autismo, surjam daí tratamentos curativos. Por isso a importância dos últimos dois artigos nesta edição, que resumem os tratamentos psicofarmacológicos5 e psicoeducacionais6 para os indivíduos com autismo. Ainda estamos muito longe de possuirmos os agentes farmacológicos que possam alterar eficazmente os sintomas nucleares do autismo, tais como os déficits de interação social e de comunicação. Mas essas abordagens podem ser extremamente úteis para mitigar as características comórbidas e permitir que os indivíduos afetados se beneficiem mais da essência dos tratamentos reconhecidos atuais baseados em evidências, a saber, as intervenções comportamentais e educacionais.

 

Ami Klin, Marcos T Mercadante

 

Referências

1. Klin A. Autism and Asperger syndrome: an overview. Rev Bras Psiquiatr. 2006;28(Supll l):3-12.

2. Mercadante MT, Van der Gaag RJ, Schwartzman JS. Non-Autistic Pervasive Developmental Disorders: Rett syndrome, disintegrative disorder and pervasive developmental disorder not otherwise specified. Rev Bras Psiquiatr. 2006;28(Supll l):13-21.

3. Zilbovicius M, Meresse I, Boddaert N. Neuroimaging in autism. Rev Bras Psiquiatr. 2006;28(Supll I):22-9.

4. Gupta AR, State MW. Genetics of autism. Rev Bras Psiquiatr. 2006;28(Supll I):30-9.

5. Nikolov R, Jonker J, Scahill L. Autistic disorder: current psychopharmacological treatments and areas of interest for future developments. Rev Bras Psiquiatr. 2006;28(Supll l):40-7.

6. Bosa CA. Autism: psychoeducational intervention. Rev Bras Psiquiatr. 2006;28(Supll I):48-54.

 

 

Nota: Esse suplemento optou pelo termo Transtorno Invasivo do Desenvolvimento (TID) em detrimento das outras duas traduções que têm sido utilizadas em português para o termo Pervasive Developmental Disorder: transtorno global do desenvolvimento e transtorno abrangente do desenvolvimento.
A Edusp, na tradução do CID-10, utilizou o termo "global" como tradução para "pervasive"; porém, a Artmed, que traduziu o CID-10 e o DSM-IV, optou pelo termo "invasivo".1 Apenas por estar presente nas traduções dos dois manuais, decidimos utilizar essa última opção.
1 Lippi JRS. Autismo e Transtornos Invasivos do Desenvolvimento - Revisão histórica do conceito, diagnóstico e classificação. 2003. Avaliable at: http://www.autismo.med.br/pdf/Autismo/AUTISMO%20e%20Transtornos%20Invasivos%20do%20Desenvolvimento.pdf


Artigo original:

http://www.scielo.br/scielo.php?script=sci_arttext&pid=S1516-44462006000500001&lng=pt&nrm=iso

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