Hélio A. Ghizoni Teive; Walter Oleschko Arruda
4 de junho de 2009
A família Drew de Walworth: um século após a avaliação inicial finalmente o diagnóstico doença de Machado-Joseph
The drew family of walworth: one century from the first evaluation until the final diagnosis, Machado-Joseph disease
Hélio A. Ghizoni Teive; Walter Oleschko Arruda
Serviço de Neurologia, Departamento de Clinica Médica, Hospital de Clínicas, Universidade Federal do Paraná, Curitiba PR, Brasil (UFPR): Professor Assistente de Neurologia da UFPR
RESUMO
As enfermidades heredo-degenerativas, entre elas as ataxias cerebelares autossômicas dominantes, agora conhecidas como ataxias espinocerebelares (AEC), correspondem a extenso grupo de s com grande heterogeneidade genética. Algumas formas de AEC, em especial a de Machado-Joseph (DMJ), caracteriza-se por acentuada variabilidade de expressão fenotípica intra e inter-familial. Em 1895, na Grã-Bretanha, foi descrita uma família com uma forma autossômica dominante de AEC que viria a ser conhecida como a família Drew de Walworth. Desde sua descrição inicial até 1995, quando do diagnóstico genético final de DMJ, vários membros e gerações desta família foram examinados e seus achados descritos na literatura por famosos neurologistas como Gowers, Stewart, Collier, Kinnier-Wilson, Turner, Worster-Drought, Ferguson, Critchley e Anita Harding. Neste artigo, os autores descrevem a trajetória histórica tortuosa e as discussões sobre os diagnósticos nosológicos propostos no decorrer de um século, com o propósito de mostrar a impressionante e atraente complexidade que envolve este grupo de s neurodegenerativas.
Palavras-chave: ataxia espino-cerebelar, ataxia hereditária, doença de Machado-Joseph.
ABSTRACT
Autosomal dominant spinocerebellar ataxia (SCA) is an heterogeneous group of neurodegenerative diseases involving cerebellum and its connections. Several forms have already been described, and it seems the most common form of SCA observed among the many series of families described worldwide is SCA3 (Machado-Joseph disease). SCA3 is characterized by a marked phenotypic expression with a wide spectrum of clinical findings including cerebellar ataxia, pyramidal and extrapyramidal (e.g. dystonia, parkinsonism), lower motor neuron syndrome and peripheral neuropathy. The Drew family of Walworth, England, has several affected members seen and described by famous neurologists including Gowers, Stewart, Collier, Kinnier-Wilson, Turner, Worster-Drought, Ferguson, Critchley, and Anita Harding from 1895 to our days. In fact, the final genetic diagnosis of this family, 100 years after its initial description, turned out to be SCA3. In this paper, we describe the full of twists and turns historical trajectory from the initial clinical description to the final genetic diagnosis.
Key words: spinocerebellar ataxia, hereditary ataxia, Machado-Joseph disease.
As enfermidades heredo-degenerativas, entre elas as ataxias cerebelares autossômicas dominantes, agora conhecidas como ataxias espinocerebelares (AEC), correspondem a extenso grupo de s com grande heterogeneidade genética, o que dificulta sobremaneira o diagnóstico clínico. A forma mais comum de AEC, a de Machado-Joseph ou AEC tipo 3, apresenta grande heterogeneidade fenotípica, com pelos menos 5 sub-tipos já definidos. Entre as diferentes formas clínicas de apresentação existem aquelas com ataxia cerebelar, associada com sinais piramidais, formas ditas extra-piramidais, com distonia, com parkinsonismo e formas com comprometimento do neurônio motor inferior, entre outras1-4. Na atualidade, com a disponibilidade dos testes de genética molecular, pode-se classificar corretamente as diferentes formas de AEC. Contudo, vários anos atrás, o diagnóstico e a classificação destas enfermidades, realizado de forma clínica ou mesmo eventualmente anatómo-patológica, era feito com extrema dificuldade e sujeito a muitos erros de avaliação3-5.
Exemplo bem claro dessa situação é a enfermidade que acometeu membros da família Drew, originária de Walworth, uma localidade existente na região nordeste da Inglaterra. A partir do ano de 1895, seus dados clínicos foram avaliados por vários neurologistas de renome, como os Drs. Gowers, Stewart, Collier, Kinnier-Wilson, Turner, Worster-Drought, Ferguson, Critchley, e Anita Harding entre outros, com diferentes hipóteses diagnósticas, tais como paralisia agitante, esclerose múltipla, ataxia locomotora, sífilis e ataxia heredo-familial. O diagnóstico definitivo só foi realizado 100 anos após, em 1995, através dos estudos de genética molecular realizados pelo grupo liderado por Anita Harding6-10.
O objetivo desta publicação é fazer revisão histórica dos diagnósticos clínicos estabelecidos para os membros da família Drew até o diagnóstico definitivo em 1995.
MÉTODO
Foram revisadas as principais publicações existentes na literatura, através do Medline (Pub-Med) e pelo Index Médico, sobre a da famosa família ''Drew of Walworth''. Foram avaliados os artigos publicados em 1929 por Fergunson e Critchley, por Brown em 1975, Harding em 1982, em 1984 e finalmente por Giunti, Sweeney e Harding em 1995.
RESULTADOS E DISCUSSÃO
Em 1929, Ferguson e Critchley publicaram um artigo seminal sobre o estudo clínico de um heredo-familial semelhante a esclerose disseminada (Esclerose Múltipla). A ''família Drew of Walworth'' compreendia extenso número de pacientes afetados, muitos deles examinados pessoalmente pelos autores. Ferguson e Critchley estudaram pelos menos quatro gerações da família Drew, com 34 pacientes afetados6.
As manifestações clínicas tinham como características mais comuns, segundo descrição dos próprios autores: 1 - idade de início dos sintomas com 35-45 anos; 2 - similaridade na natureza e ordem de aparecimento dos sintomas; 3 - ausência de remissões na evolução da ; 4 - presença de euforia e instabilidade emocional (sem haver descrição de demência); 5 - oftalmoparesia (particularmente da mirada vertical para cima), com a presença de nistagmo e as vezes retração palpebral e também atrofia óptica; 6 - evidência de piramidal (na maioria dos casos); 7 - distúrbio da sensibilidade; 8 - certas manifestações extra-piramidais (parkinsonismo); 9 - disartria; 10 - distúrbios do controle dos esfíncteres, além da ataxia do tipo cerebelar, observada em vários pacientes6.
O primeiro paciente da família Drew foi avaliado no ano de 1895, no National Hospital (hoje The National Hospital for Neurology and Neurosurgery, Queen Square, London, United Kingdom) por Sir William Gowers (Fig 1). O paciente, de nome Sr. William Drew, com 40 anos de idade na época, apresentava-se com quadro clínico compatível com parkinsonismo e recebeu o diagnóstico final de Paralisia Agitans, conforme demonstrou a ficha clínica assinada pelo Professor Gowers. Três anos mais tarde, o paciente faleceu. O exame de necropsia nada evidenciou, tendo sido realizada somente avaliação macroscópica do encéfalo6. O heredograma da família Drew de Walworth está demonstrado na Figura 2.
Outros pacientes da família Drew, avaliados posteriormente no National Hospital, bem como em outros hospitais de Londres, tiveram quadros variados de ataxia cerebelar, por vezes associados a presença de parkinsonismo, ataxia cerebelar associados a disfunção piramidal, sinal de Romberg, ataxia locomotora associada com provável sífilis e finalmente quadros que foram considerados indistinguíveis de esclerose disseminada (Esclerose Múltipla). Entre os diferentes médicos que avaliaram esses pacientes estão os famosos professores T. Grainger Stewart, James Collier, Kinnier-Wilson, Aldren Turner e Worster-Drought. Havia clara herança autossômica dominante, conforme demonstra o heredograma (Fig 2)6.
Entre os pacientes apresentados por Fergunson e Critchley estão alguns com a apresentação clínica com retração palpebral bilateral acentuada, com a presença de exoftalmia6.
Fergunson e Critchley na discussão do seu artigo questionam qual seria a categoria de familial a que a família Drew pertencia. Questionam o quadro clínico, por vezes semelhante a esclerose múltipla, sem entretanto, ter a presença de remissões e exacerbações, sem neurite retro-bulbar, e com clara herança familiar6. Os autores discutem uma série de diagnósticos diferenciais, incluindo a chamada ataxia de Marie, então definida como heredo-ataxia cerebelar. Esta forma de ataxia foi descrita por Pierre Marie em 1983, caracterizando um grupo de famílias relatadas na literatura que apresentavam um forma de ataxia hereditária clinicamente distinta daquela descrita por Friedreich. A idade de início era mais tardia, havia a presença de hiperreflexia profunda, anormalidades dos movimentos oculares eram mais freqüentes e a herança era claramente autossômica dominante. Desta forma, passou-se a dividir as ataxias hereditárias em dois tipos clinicamente diferentes, a ataxia de Friedreich (de início precoce, com arreflexia profunda e comprometimento da sensibilidade profunda) e a ataxia de Marie. Obviamente, os casos descritos por Pierre Marie eram muito heterogêneos e representavam diferentes enfermidades. A ataxia descrita por Marie mereceu na época pesadas críticas de Gordon Holmes que escreveu em seu artigo '' that no form of disease exists to which the term ''hereditary cerebellar ataxy'' can be aptly applied. This title has been a convenient pigeon-hole in which to group together cases of obscure nature with some symptoms in commom, and it may have been of some service in drawing attention to such cases until it was possible to classify them accuratelly; but neither clinical nor pathological experience justifies its retention as the descriptive title of a form of disease'' 6.
Fergunson e Critchley questionaram três possíveis diagnósticos para a família Drew de Walworth: o primeiro, como uma nova forma de familial; o segundo, como uma forma atípica de alguma ataxia já descrita, como por exemplo a ataxia de Marie; o terceiro, como ataxia heredo-familial de natureza indefinida que poderia estar associado as formas de ataxia descritas por Friedreich, Marie, Sanger Brown, entre outros6.
Brown, in 1975, considerou a síndrome descrita por Fergunson e Critchley em 1929 como entidade clínica neurológica distinta e passou a denomina-lá síndrome de Fergunson-Critchley7.
Harding (Fig 3), em 1982, publicou estudo sobre as características clínicas e a classificação das ataxias cerebelares autossômicas dominantes de início tardio, com a análise de onze famílias, incluindo descendentes da família Drew de Walworth8.
Após o estudo das diferentes apresentações clínicas das ataxias cerebelares autossômicas dominantes de início tardio (ACADIT), Harding propôs uma nova classificação, que se tornou mundialmente aceita, sendo utilizada até os dias de hoje, e que separa as ACADIT em: tipo 1 - com oftalmoplegia/ atrofia óptica/ demência/características extrapiramidais/amiotrofia; tipo 2 - com degeneração pigmentar de retina +/- oftalmoplegia, demência or características extrapiramidais; tipo 3 - síndrome cerebelar ''pura'' (sem distúrbios oculares ou extrapiramidais ou demência), com início tardio (acima de 60 anos); tipo 4 - com mioclonia e surdez8.
Nesta classificação proposta por Harding, os descendentes da família Drew de Walworth foram classificados como ACADIT do tipo 1. A autora ainda questiona o diagnóstico da síndrome de Fergunson-Critchley, descrita por Brown, pois acredita não ser entidade distinta, tendo características clínicas que não permitiriam distingui-la de outras famílias com ACADIT8.
Em 1984, Harding publica a sua masterpiece, o livro: The Hereditary Ataxias and Related Disorders9. Nesta oportunidade, a autora reavalia as características clínicas dos descendentes da família Drew de Walworth, através de um estudo de 13 pacientes afetados. A idade de início da enfermidade variou entre 21 e 45 anos de idade, e as manifestações clínicas mais encontradas foram ataxia cerebelar (em 10 pacientes), associada a disartria, oftalmoplegia, demência/euforia, fácies impassiva, atrofia óptica, atrofia de língua, movimentos involuntários, disfagia, rigidez muscular, fraqueza muscular, perda de sensibilidade, e alterações dos reflexos profundos, que foram encontrados de forma variada9. Harding salienta que os pacientes descendentes da família Drew de Walworth têm características clínicas muito similares à então conhecida ataxia açoriana9. Há que se ressaltar aqui a descrição de demência, característica clínica até então não descrita no artigo original de Fergunson e Critchley de 19299.
Em 1994, durante o III Workshop internacional sobre a de Machado-Joseph, realizado na localidade de Furnas, São Miguel, no arquipélado dos Açores, Portugal, a professora Paula Coutinho, baseando-se em critérios clínicos unicamente, sugeriu que a família Drew de Walworth poderia ter a de Machado-Joseph (Teive, comunicação pessoal). Uma das características clínicas que mais impressionaram Coutinho foi particularmente a existência de uma grande variabilidade clínica entre os pacientes afetados, com quadros de ataxia cerebelar, associados com sinais piramidais e oftalmoplegia e por vezes quadro de parkinsonismo sugerindo a de Parkinson.
Em 1995, Giunti, Sweeney e Harding publicaram interessante estudo com análise genética molecular, para detecção da AEC tipo 3 ou de Machado-Joseph, em famílias com desordens motoras autossômicas dominantes, incluindo a família Drew de Walworth10. Nesta oportunidade, os autores concluíram que a família Drew de Walworth era na verdade portadora da de Machado-Joseph, pois foi encontrada uma expansão de trinucleotídeos CAG repetidos no gene desta (cromossoma 14q), confirmando desta forma um diagnóstico que permaneceu indefinido por um século10.
Os autores comentam em seu artigo que a sugestão diagnóstica de de Machado-Joseph para a família Drew de Walworth foi feita vários anos antes pela Professora Paula Coutinho, de Portugal, basicamente através de análise clínica dos dados publicados na literatura até então10.
REFERÊNCIAS
1. Pulst S-M. Inherited ataxias: an introduction. In: Pulst S-M. Genetics of movement disorders. San Diego: Academic Press, 2003:19-34.
2. Klockgether T. Clinical Approach to ataxic patients. In Klockgether T. Handbook of ataxias disorders. New York: Marcel Dekker, 2000:101-114.
3. Subramony SH, Filla A. Autosomal dominant spinocerebellar ataxias ad infinitum? Neurology 2001;56:287-289.
4. Stevanin G, Durr A, Brice A. Clinical and molecular advances in autosomal dominant cerebellar ataxias: from genotype to phenotype and physiopathology. Eur J Hum Genet 2000;1:4-18.
5. Tan EK, Ashizawa T. Genetic testing in spinocerebellar ataxias: defining a clinical role. Arch Neurol 2001;58:191-195.
6. Fergunson FR, Critchley M. A clinical study of an heredo-familial disease resembling disseminated sclerosis. Brain 1929;52:203-225.
7. Brown JW. Hereditary spastic paraplegia with ocular and extrapyramidal symptoms (Fergunson-Critchley syndrome). In Handbook of Clinical Neurology. Vol 22 Vinken JP, Bruyn GW (eds). Vol 22 Amsterdam: North Holland, 1975:433-443.
8. Harding AE. The Clinical features and classification of the late onset autosomal dominant cerebellar ataxias: a study of 11 families, including descendents of ''The Drew family of Walworth''. Brain 1982;105:1-28.
9. Harding AE. The hereditary ataxias and related disorders. Edimburgh: Churchill Livingstone, 1984;129-165.
10. Giunti P, Sweeney MG, Harding AE. Detection of the Machado-Joseph disease/spinocerebellar ataxia three trinucleotide repeat expansion in families with autosomal dominant motor disorders, including the Drew family of Walworth. Brain 1995;118:1077-1085.
Dr. Hélio A.G. Teive - Rua General Carneiro 1103/102 - 80060-150 Curitiba PR - Brasil. E-mail: hagteive@mps.com.br
Artigo original:
http://www.scielo.br/scielo.php?script=sci_arttext&pid=S0004-282X2004000100034&lng=pt&nrm=iso