Gisele Gus Manfro; Luciano Isolan; Carolina Blaya; Lissandra Santos; Maura Silva
1° de outubro de 2009
Retrospective study of the association between adulthood panic disorder and childhood anxiety disorders
Gisele Gus Manfroa,b, Luciano Isolana*, Carolina Blayaa, Lissandra Santosc e Maura Silvaa
aServiço de Psiquiatria do Hospital das Clìnicas de Porto Alegre. Porto Alegre, RS, Brasil. bPrograma de Pós-Graduação em Ciências Médicas: Psiquiatria da Universidade Federal do Rio Grande do Sul (UFRGS). Porto Alegre, RS, Brasil. cFundação Universitária Mário Martins.
RESUMO
OBJETIVO: A etiologia do transtorno do pânico (TP) é provavelmente multifatorial, incluindo fatores genéticos, biológicos, cognitivo-comportamentais e psicossociais que contribuem para o aparecimento de sintomas de ansiedade, muitas vezes durante a infância. O objetivo deste estudo foi avaliar a relação entre história de transtornos de ansiedade na infância e transtorno do pânico na vida adulta.
MÉTODOS: Foram avaliados retrospectivamente 84 pacientes adultos com transtorno do pânico quanto à presença de história de transtornos de ansiedade na infância, por meio de uma entrevista estruturada (K-SADS-E e DICA-P). A presença de comorbidades com outros transtornos de ansiedade e de humor foi avaliada por uma revisão de registros médicos.
RESULTADOS: Observou-se que 59,5% dos pacientes adultos com TP apresentavam história de ansiedade na infância. Encontrou-se uma associação significativa entre a presença de história de transtorno de ansiedade generalizada na infância e a presença de comorbidades com o TP na vida adulta, como agorafobia (p=0,05) e depressão (p=0,03).
CONCLUSÕES: Este estudo sugere que a história de transtorno de ansiedade na infância pode ser considerada um preditor de maior gravidade para o transtorno do pânico na vida adulta.
Descritores
Ansiedade da separação. Adulto. Criança. Transtorno de pânico. Depressão.
ABSTRACT
OBJECTIVE: The etiology of panic disorder is probably multifactorial, involving genetic, biological, cognitive-behavioral and psychosocial factors that may contribute to the onset of anxiety symptoms in childhood. The aim of this study is to analyze the relationship between past history of anxiety disorder in childhood and panic disorder in adult life.
METHODS: Using a structured interview (K-SADS-E and DICA-P), 84 panic disorder adult patients were interviewed and childhood anxiety disorder was retrospectively investigated. A review of medical registers was performed to assess comorbidities with other anxiety and mood disorders.
RESULTS: Of the patients studied, 59,5% had past history of childhood anxiety disorders. There was a significant association between generalized anxiety disorder history during childhood and panic disorder in adult life and its comorbidities such as agoraphobia (p=0,05) and depression (p=0,03).
CONCLUSION: This study suggests that childhood anxiety disorder may be a predictor of the severity of panic disorder in adult life.
Keywords
Anxiety, separation. Adult. Child. Panic disorder. Depression.
INTRODUÇÃO
O transtorno do pânico (TP) é uma doença crônica e está associado a uma importante morbidade e prejuízo na qualidade de vida do paciente.1,2 Apresenta uma prevalência de 3,5% durante a vida e uma prevalência de 2,3% no ano anterior à entrevista.3 A etiologia do transtorno do pânico é provavelmente multifatorial, incluindo fatores genéticos, biológicos, cognitivo-comportamentais e psicossociais que contribuem para o aparecimento de sintomas de ansiedade, muitas vezes durante a infância, e com manifestações variáveis durante o ciclo vital.4
Em um recente artigo de revisão, foram avaliados criticamente estudos que investigaram padrões familiares e estudos retrospectivos em adultos com transtornos de ansiedade. Essas pesquisas evidenciaram uma importante associação entre transtornos de ansiedade na infância e transtornos de ansiedade na vida adulta.5
Klein,6 em 1964, realizou um dos primeiros estudos que evidenciaram a associação entre ansiedade na infância e TP. Nesse estudo, verificou-se que cerca da metade dos 32 pacientes adultos com ataques de pânico foram crianças medrosas e dependentes, com acentuada ansiedade de separação e dificuldades na escola, sugerindo que indivíduos com ansiedade de separação na infância desenvolveriam ataques de pânico na vida adulta quando confrontados com situações de perdas ou separações.
Estudos posteriores demonstraram que outros transtornos de ansiedade na infância, além do transtorno de ansiedade de separação, eram freqüentes nos relatos retrospectivos de pacientes adultos com TP, e que o transtorno de ansiedade de separação também estava relacionado a outros transtornos de ansiedade na vida adulta.7-10 Lipsitz et al7 verificaram que a prevalência de transtorno de ansiedade de separação era semelhante entre pacientes com TP, fobia social e transtorno obsessivo-compulsivo e que a presença dessa condição na infância estava associada a um maior número de comorbidades com transtornos ansiosos na vida adulta. Battaglia et al8 encontraram uma prevalência significativamente maior de transtorno de ansiedade de separação em indivíduos com TP do que em controles. Esses investigadores também concluíram que a presença de história de transtorno de ansiedade de separação na infância está relacionada a um início mais precoce do TP. Manfro et al9 demonstraram que a presença de ansiedade na infância estava associada a uma maior freqüência de fatores precipitantes para o início da doença. Pollack et al10 realizaram um estudo que avaliou 194 pacientes adultos com transtorno do pânico e demonstraram que 54% desses pacientes apresentavam história de pelo menos um transtorno de ansiedade na infância. Segundo esse estudo, a história de ansiedade na infância estava associada entre freqüências mais altas de comorbidades e outros transtornos de ansiedade e depressão.10
O objetivo deste trabalho foi avaliar a presença de história de transtornos de ansiedade na infância em adultos com transtorno do pânico, bem como verificar se a presença de ansiedade na infância caracterizaria um subgrupo de pacientes com TP e com um padrão de comorbidades específicas.
MÉTODOS
A população de estudo consistiu em pacientes provenientes do Ambulatório de Transtornos de Ansiedade do Hospital de Clínicas de Porto Alegre (HCPA), com diagnóstico de TP, segundo o DSM-IV, selecionados por meio do método de amostragem consecutiva. Os pacientes entravam no estudo em diferentes pontos do curso de sua doença, incluindo o início do tratamento, durante manutenção da medicação e enquanto descontinuavam a medicação. Os pacientes que apresentavam história prévia ou atual de esquizofrenia ou de outros transtornos psicóticos foram excluídos do estudo.
A Escala para Avaliação de Transtornos Afetivos e Esquizofrenia para Crianças em Idade Escolar ¾ Versão Epidemiológica (K-SADS-E)11 foi utilizada para avaliar a existência de ansiedade na infância e pesquisar os seguintes transtornos: ansiedade de separação, transtorno de ansiedade generalizada e transtorno fóbico, que se subdivide em agorafobia e fobia social. Para avaliar a presença de transtorno de evitação, foi realizada a Entrevista Diagnóstica para Crianças e Adolescentes ¾ Versão dos Pais (Dica-P).12 As escalas foram aplicadas por pesquisadores que desconheciam os diagnósticos dos pacientes.
Com o objetivo de avaliar a presença de outros transtornos de ansiedade e de humor, foram revisados os prontuários de todos os pacientes que participaram do estudo.
O protocolo do estudo foi aprovado pela Comissão de Ética do Grupo de Pesquisa e Pós-Graduação do HCPA e foi obtido consentimento informado de todos os pacientes participantes do estudo.
A análise dos dados foi feita por meio do programa SPSS (versão 6.0) para Windows. Na análise estatística, foi utilizado o teste qui-quadrado seguido, quando necessário, pelo teste exato de Fischer para avaliar a associação entre a presença de transtorno de ansiedade na infância e a presença de comorbidades com o TP na vida adulta. Utilizou-se a razão de chances, com intervalo de confiança de 95%, para avaliar o risco de aparecimento de comorbidades com o TP na vida adulta pela presença de história de ansiedade na infância. Um nível de significância menor que 0,05% foi utilizado em todos os testes.
RESULTADOS
Foram avaliados 84 pacientes, sendo 64 (76,2%) mulheres e 20 (23,8%) homens. A média de idade da amostra foi de 38,7±9,9 anos (média ± desvio-padrão). Desse grupo, 78,6% (n=66) preenchiam critérios para transtorno do pânico com agorafobia, e 21,4% (n=18) preenchiam critérios para transtorno do pânico sem agorafobia. Comorbidades com outros transtornos ansiosos incluíam: 4,8% (n=4) para fobia social, 14,3% (n=12) para transtorno de ansiedade generalizada e 44% (n=37) para depressão maior.
História de transtornos de ansiedade na infância foi encontrada em 59,5% (n=50) da população em estudo. O diagnóstico mais freqüentemente encontrado na infância foi o de transtorno de ansiedade generalizada com 45,2% (n=38). Do grupo total, 51,2% (n=43) dos pacientes apresentavam história de dois ou mais transtornos de ansiedade na infância (Tabela).
Encontrou-se uma associação significativa entre história de transtorno de ansiedade generalizada na infância e presença de agorafobia (p=0,05).
A presença de história de transtorno de ansiedade generalizada, assim como a presença de dois ou mais transtornos na infância (indicativo de maior gravidade), está associada à presença concomitante de depressão maior nos pacientes adultos com TP (p=0,02) (Tabela).
Demais associações, como a presença de ansiedade na infância ou de determinados transtornos de ansiedade na infância, com outras comorbidades na vida adulta não alcançaram significância estatística. Não se encontrou diferença entre sexo e história de transtorno de ansiedade na infância.
DISCUSSÃO
Nesse estudo, encontrou-se um substancial número de pacientes com TP que apresentavam história de transtornos de ansiedade na infância. As freqüências de transtornos de ansiedade na infância encontradas nesse estudo estão de acordo com as encontradas na literatura.6,7,10
Observou-se também que a presença de ansiedade na infância, mais especificamente ansiedade generalizada, está associada à presença de depressão e de agorafobia na vida adulta. Estudos evidenciam elevadas taxas de comorbidade entre quadros depressivos e TP,13,14 o que está de acordo com o achado no presente trabalho. Uma recente revisão da literatura demonstrou que a comorbidade entre TP e depressão está associada a sintomas mais graves, tratamentos mais precoces, hospitalizações mais freqüentes, maior risco de suicídio e pior prognóstico.15 Dessa forma, segundo os dados do presente estudo, pode-se sugerir que a presença de transtornos de ansiedade na infância seja considerada um fator de risco para maior gravidade do TP na vida adulta, o que corrobora os resultados já descritos na literatura.7,8,10
Estudos epidemiológicos demonstraram uma elevada prevalência de depressão em pacientes com transtorno de ansiedade generalizada.16 Wittchen et al16 acompanharam prospectivamente jovens com diagnóstico de transtorno de ansiedade ou depressão e observaram com o seguimento um aumento da comorbidade ansiedade-depressão. Os transtornos de ansiedade usualmente iniciavam na infância ou na adolescência, enquanto a incidência dos transtornos depressivos aumentou na adolescência tardia, mantendo esse aumento durante a vida adulta. Os transtornos de ansiedade poderiam ser considerados um fator de risco ao desenvolvimento de depressão secundária, o que está de acordo com os resultados deste estudo.
É bastante provável a associação entre TP na vida adulta com os transtornos de ansiedade na infância, porém persistem dúvidas quanto à real natureza dessa associação, pois a ansiedade na infância poderia modificar o desenvolvimento do TP, exercendo influências cognitivo-comportamentais sobre o indivíduo, sendo uma manifestação muito precoce do TP ou, também, uma patologia independente, mas relacionada ao TP devido às influências ambientais ou biológicas.4
Esse estudo apresenta limitação, pois o diagnóstico de transtorno de ansiedade na infância foi realizado retrospectivamente, e os diagnósticos das comorbidades foram feitos por meio da revisão dos prontuários médicos dos pacientes. Porém, os dados deste trabalho corroboram os resultados da literatura que sugerem que os transtornos de ansiedade na infância podem ser preditores e atuar como fatores de risco para formas mais graves de psicopatologia na vida adulta. Estudos prospectivos, controlados, de longa duração, que visem à detecção e ao acompanhamento de crianças com transtorno de ansiedade, poderiam oferecer dados definitivos que permitiriam desenvolver meios de intervenção precoce em crianças de risco, buscando evitar e prevenir o desenvolvimento de transtornos de ansiedade e de depressão na vida adulta.
CONCLUSÕES
O TP está associado à presença de história de ansiedade na infância. Sugere-se que a presença de quadros mais graves de ansiedade na infância, assim como de ansiedade generalizada, sejam preditores para o aparecimento de depressão, que é um determinante crítico de cronicidade em pacientes adultos com TP. Acredita-se, então, que intervenções precoces em crianças com transtorno de ansiedade possam diminuir a gravidade de psicopatologia na vida adulta.
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Correspondência
Gisele Gus Manfro
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*Bolsista de iniciação científica do Programa Institucional de Bolsas de Iniciação Cientifica (PIBIC) CNPq/HCPA.
Artigo original: