Artigos Científicos

Grupoterapia cognitivo-comportamental para crianças e adolescentes vítimas de abuso sexual

Luísa Fernanda Habigzang; et al.

24 de novembro de 2009

Rev. Saúde Pública vol.43  supl.1 São Paulo ago. 2009

Grupoterapia cognitivo-comportamental para crianças e adolescentes vítimas de abuso sexual

 

Terapia de grupo congnitivo-comportamental para niñas y adolescentes víctimas de abuso sexual

 

Luísa Fernanda HabigzangI; Fernanda Helena StroeherI; Roberta HatzenbergerI; Rafaela Cassol CunhaII; Michele da Silva RamosII; Sílvia Helena KollerI

IPrograma de Pós-Graduação em Psicologia. Instituto de Psicologia. Universidade Federal do Rio Grande do Sul. Porto Alegre, RS, Brasil
IICurso de Graduação em Psicologia. Universidade do Vale do Rio dos Sinos. Porto Alegre, RS, Brasil

Correspondência | Correspondence


RESUMO

OBJETIVO: Avaliar os efeitos do modelo de grupoterapia cognitivo-comportamental para crianças e adolescentes do sexo feminino vítimas de abuso sexual.
MÉTODOS: Foi utilizado delineamento não-randomizado intragrupos de séries temporais. Crianças e adolescentes do sexo feminino com idade entre nove e 16 anos (N=40) da região metropolitana de Porto Alegre (RS), foram clinicamente avaliadas em três encontros individuais, de 2006 a 2008. A grupoterapia consistiu de 16 sessões semi-estruturadas. Instrumentos psicológicos investigaram sintomas de ansiedade, depressão, transtorno do estresse pós-traumático, stress infantil e crenças e percepções da criança em relação à experiência abusiva antes, durante e após a intervenção. Os resultados foram analisados por meio de testes estatísticos para medidas repetidas. Foi realizada uma análise comparativa dos resultados do pré-teste entre os grupos que receberam atendimento psicológico em grupo imediato após a denúncia do abuso e aquelas que aguardaram por atendimento.
RESULTADOS: A análise do impacto da intervenção revelou que a grupoterapia cognitivo-comportamental reduziu significativamente sintomas de depressão, ansiedade, stress infantil e transtorno do estresse pós-traumático. Além disso, a intervenção contribuiu para a reestruturação de crenças de culpa, baixa confiança e credibilidade, sendo efetivo para a redução de sintomas psicológicos e alteração de crenças e percepções distorcidas sobre o abuso.
CONCLUSÕES: A grupoterapia cognitivo-comportamental mostrou ser efetiva para a redução de sintomas psicológicos de crianças e adolescentes vítimas de abuso sexual.

Descritores: Criança. Adolescente. Psicologia do Adolescente. Maus-Tratos Sexuais Infantis. e Terapia Cognitiva. Psicoterapia de Grupo.


RESUMEN

OBJETIVO: Evaluar los efectos del modelo de terapia de grupo cognitivo-comportamental para niñas y adolescentes del sexo femenino víctimas de abuso sexual.
MÉTODOS: Fue utilizado delineamiento no aleatorio intragrupos de series temporales. Niños y adolescentes del sexo femenino con edad entre nueve y 16 años (N=40) de la región metropolitana de Porto Alegre (Sur de Brasil), fueron clínicamente evaluadas en tres encuentros individuales, de 2006 a 2008. La terapia de grupo consistió de 16 sesiones semi-estructuradas. Instrumentos psicológicos investigaron síntomas de ansiedad, depresión, trastorno del estrés post-traumático, estrés infantil y creencias y percepciones del niño con relación a la experiencia abusiva antes, durante y posterior a la intervención. Los resultados fueron analizados por medio de pruebas estadísticas para medidas repetidas. Fue realizado un análisis comparativo de los resultados de la pre-evaluación entre los grupos que recibieron atención psicológica en grupo inmediato posterior a la denuncia del abuso y aquellas que aguardaron por atención.
RESULTADOS: El análisis del impacto de la intervención reveló que la terapia de grupo cognitivo-comportamental redujo significativamente síntomas de depresión, ansiedad, estrés infantil y trastorno del estrés post-traumático. Adicionalmente, la intervención contribuyó para la reestructuración de creencias de culpa, baja confianza y credibilidad, siendo efectivo para la reducción de síntomas psicológicos y alteración de creencias y percepciones distorsionadas sobre el abuso.
CONCLUSIONES: La terapia de grupo cognitivo-comportamental mostró ser efectiva para la reducción de síntomas psicológicos de niños y adolescentes víctimas de abuso sexual.

Descriptores: Niño. Adolescente. Psicología del Adolescente. Abuso Sexual Infantil. Terapia Cognitiva. Psicoterapia de Grupo.


 

INTRODUÇÃO

O abuso sexual contra crianças e adolescentes é um grave problema de saúde pública.12,17 Segundo estimativas, uma em cada quatro meninas e um em cada seis meninos são vítimas de alguma forma de abuso sexual antes de completar 16 anos.20 Esta forma de violência pode desencadear efeitos negativos para o desenvolvimento cognitivo, emocional e social das vítimas. Os transtornos mais citados pela literatura como conseqüências da vitimização sexual são: depressão, ansiedade generalizada, estresse pós-traumático, déficit de atenção e hiperatividade, e transtorno de conduta.8,19,21,22

O abuso sexual viola as leis ou tabus da sociedade e é definido como o envolvimento de uma criança ou adolescente em atividade sexual que não compreende totalmente, para a qual é incapaz de dar consentimento, ou não está preparada devido ao estágio de desenvolvimento. Assim, qualquer atividade que envolva uma criança e um adulto ou outra criança, destinada a gratificação ou satisfação das necessidades de uma pessoa, cuja relação com a criança seja responsabilidade, confiança ou força, pode se configurar em abuso sexual. Essas atividades sexuais podem incluir toques, carícias, sexo oral ou relações com penetração (digital, genital ou anal). O abuso sexual também inclui situações nas quais não há contato físico, tais como voyerismo, assédio verbal, pornografia e exibicionismo.¹

Devido aos altos índices de incidência e aos efeitos psicológicos negativos desta forma de violência, há necessidade de estudos que avaliem a efetividade de modelos de intervenção psicológica para as vítimas. Uma meta-análise sobre pesquisas publicadas na língua inglesa que avaliaram formas de tratamento psicológico para vítimas de abuso sexual no período entre 1975 e 2004 identificou apenas 28 estudos na área.10 As pesquisas que utilizam a terapia cognitivo-comportamental (TCC) como forma de tratamento têm apresentado melhores resultados quando comparada com outras formas de tratamento não-focais para crianças e adolescentes com sintomas de ansiedade, depressão e problemas comportamentais decorrentes de violência sexual.5,6,22 Além disso, TCC focada no trauma tem apresentado alta eficácia na redução de sintomas do transtorno do estresse pós-traumático (TEPT)4 e na reestruturação de crenças disfuncionais com relação à experiência abusiva.³

No Brasil foram encontrados dois estudos que avaliaram processos terapêuticos para vítimas de abuso sexual. O primeiro18 apresenta uma descrição do processo de grupoterapia para adolescentes com cinco vítimas de abuso sexual em situação de abrigamento. Após avaliação das participantes por meio de uma entrevista, elas foram encaminhadas para 15 sessões de grupoterapia. Os resultados foram avaliados qualitativamente pelas terapeutas, sem a utilização de instrumentos psicológicos. Os resultados apontaram que a exposição ao tema do abuso sexual gradualmente e em grupo facilitou a revelação, a expressão e a aceitação do abuso na história de vida das participantes.18

O segundo estudo descreveu e avaliou o efeito de um modelo de grupoterapia cognitivo-comportamental para crianças e adolescentes do sexo feminino com idade entre nove e 14 anos vítimas de abuso sexual intrafamiliar. Em três encontros individuais, as dez participantes responderam a instrumentos para verificar sintomas de depressão, ansiedade, transtorno do estresse pós-traumático e crenças distorcidas sobre o abuso. A grupoterapia foi composta por 20 sessões semi-estruturadas. Durante e após a intervenção foram realizadas reavaliações individuais, nas quais os mesmos instrumentos psicológicos foram aplicados. Os resultados foram analisados com testes estatísticos não-paramétricos que apontaram a redução significativa dos sintomas avaliados e a reestruturação de crenças de culpa, diferença em relação aos pares e desconfiança das vítimas.9

O presente estudo teve por objetivo avaliar os efeitos do modelo de grupoterapia cognitivo-comportamental para crianças e adolescentes do sexo feminino vítimas de abuso sexual.

 

MÉTODOS

Trata-se de um ensaio clínico não-randomizado intragrupos de séries temporais, no qual a intervenção foi realizada com um único grupo e os desfechos foram comparados em cada participante durante diferentes períodos desta intervenção.¹¹ A grupoterapia visou à redução de sintomas de depressão, ansiedade e transtorno do estresse pós-traumático, bem como à reestruturação de crenças disfuncionais em relação à experiência abusiva. As participantes foram avaliadas por meio de instrumentos psicológicos em quatro momentos: pré-teste (antes da grupoterapia), pós-teste I (após primeira etapa da grupoterapia -seis semanas), pós-teste II (após segunda etapa da grupoterapia - dez semanas ) e pós-teste III (após o término da grupoterapia - 16 semanas). O estudo foi realizado de 2006 a 2008.

A amostra foi composta por 40 crianças e adolescentes do sexo feminino com idade entre nove e 16 anos que relataram pelo menos um episódio de abuso sexual intra ou extrafamiliar. Tais episódios incluíram desde situações de assédio (sem contato físico) até situações que envolveram contatos físicos, tais como toques e carícias, manipulação de genitais, relação sexual oral e genital. Os critérios de exclusão prévios foram: presença de sintomas psicóticos e retardo mental. Contudo, não houve encaminhamento de crianças e adolescentes com tais características. As vítimas foram encaminhadas pelos órgãos de proteção a crianças e adolescentes de um município da Região Metropolitana de Porto Alegre (RS), que recebem e avaliam denúncias de abuso sexual (abrigos, Conselho Tutelar, Programa Sentinela, Promotoria de Justiça e Juizado da Infância e Juventude).

As instituições que compõem a rede de atendimento foram contatadas para que encaminhassem os casos de abuso sexual infantil. Os atendimentos foram realizados em um centro de estudos que realiza pesquisa e atendimento psicológico a meninas vítimas de abuso sexual. As crianças e adolescentes encaminhadas foram convidadas para uma entrevista inicial, na qual foram consultadas quanto à participação na pesquisa, sendo incluídas na amostra mediante o seu consentimento livre e esclarecido e de algum adulto responsável.

As crianças e adolescentes incluídas no estudo estavam aguardando atendimento psicológico em lista de espera de um serviço da rede pública e foram classificadas em três grupos de acordo com este tempo de espera: imediatamente após a revelação do abuso, um a seis meses após a revelação, mais de seis meses após a revelação.

Os instrumentos utilizados foram:

  • Entrevista semi-estruturada - a primeira parte visa estabelecer um vínculo de confiança com a participante; a segunda segue um roteiro para investigação da história do abuso sexual, freqüência e dinâmica dos episódios abusivos.23
  • Children's attributions and perceptions scale (CAPS) - mensura questões específicas do abuso sexual em crianças.16 Consiste de uma entrevista estruturada com 18 itens, cada item possui cinco opções de respostas em escala Likert, de nunca (0) a sempre (4). Quatro aspectos são avaliados em quatro subescalas: sentimentos de diferença com relação aos pares, confiança nas pessoas, auto-atribuição dos eventos negativos (auto-culpabilização pelo abuso) e percepção de credibilidade dos outros em si. Escores mais altos refletem maior sentimento de diferença com relação aos pares, maior auto-atribuição por eventos negativos, menor percepção de credibilidade e de confiança interpessoal, respectivamente. Os itens da entrevista foram adaptados, traduzidos para o português por um pesquisador bilíngüe e depois traduzidos de volta para o inglês por outro. As versões foram comparadas, ajustadas e aplicadas em cinco meninas com idade entre dez e 13 anos para verificar a compreensão do instrumento.
  • Inventário de depressão infantil¹³ (CDI) - detecta a presença e a severidade do transtorno depressivo, identificando alterações afetivas. Foi validada para aplicação em crianças e adolescentes dos sete aos 17 anos de idade. É composto por 27 itens, cada um com três opções de resposta pontuadas de zero a dois, a opção a ser escolhida é a que melhor descreve o estado atual do respondente. O teste pode ser aplicado individualmente ou coletivamente. A consistência interna mostrou-se adequada (α=0,86), e o ponto de corte do CDI foi estabelecido em 19 pontos.
  • Escala de estresse infantil (ESI) - é composta por 35 itens relacionados às seguintes reações do estresse: físicas, psicológicas, psicológicas com componente depressivo e psicofisiológica. Foi validada para aplicação em crianças entre seis e 14 anos. A resposta ao item é feita por meio de uma escala Likert de cinco pontos, na qual a criança pinta um círculo dividido em quatro partes, conforme a freqüência com que os participantes experimentam os sintomas apontados pelos itens.15
  • Inventário de ansiedade traço-estado para crianças (IDATE-C) - constituído de duas escalas do tipo auto-avaliação, o instrumento mede dois conceitos distintos de ansiedade: traço e estado.² A sub-escala de ansiedade-estado indica como a criança se sente em um determinado momento do tempo, medindo estados transitórios de sentimentos subjetivos, conscientemente percebidos de apreensão, tensão e preocupação, que variam em intensidade. A sub-escala de ansiedade-traço avalia como a criança geralmente se sente, medindo diferenças individuais relativamente estáveis em susceptibilidade à ansiedade. Cada sub-escala é composta por 20 itens, para cada item há três opções de resposta que representam diferentes intensidades do sintoma.
  • Entrevista estruturada com base no DSM-IV para avaliação de transtorno do estresse pós-traumático - os critérios diagnósticos estabelecidos pelo Manual Diagnóstico e Estatístico dos Transtornos Mentais foram utilizados como base para identificação da presença dos sintomas que compõem o transtorno (re-experienciação do evento traumático, esquiva de estímulos associados com o trauma e sintomas de excitabilidade aumentada).7

As participantes da pesquisa foram avaliadas clinicamente em entrevistas individuais por uma equipe previamente treinada formada por graduandos em psicologia e psicólogos. A avaliação foi composta por três encontros com duração de uma hora e freqüência semanal. A ordem de aplicação dos instrumentos foi alterada aleatoriamente no segundo e terceiro encontro para evitar o efeito de ordem nos resultados. No primeiro encontro foi aplicada a entrevista semi-estruturada inicial, que foi gravada e transcrita; no segundo encontro foram aplicados o CDI, o IDATE-C e a CAPS; no terceiro, a entrevista estruturada com base no DSM-IV e a ESI.

Após a avaliação psicológica individual, as participantes foram encaminhadas para a grupoterapia. Foram formados dez grupos ao longo de três anos, conforme a ordem de chegada e faixa etária, e cada grupo foi constituído por quatro a seis participantes. Os grupos foram coordenados por psicólogas com experiência no atendimento de crianças e adolescentes vítimas de violência sexual. A grupoterapia cognitivo-comportamental foi composta por 16 sessões com freqüência semanal, na qual foram desenvolvidas atividades semi-estruturadas com duração de 1:30h. Todas as sessões foram relatadas pelos coordenadores de cada grupo. O processo grupoterápico foi dividido em três etapas conforme as técnicas empregadas: 1 - psicoeducação (seis sessões), 2 - treino de inoculação do estresse (quatro sessões) e 3 - prevenção à recaída (seis sessões). A descrição das sessões está apresentada na Tabela 1.

Todas as participantes foram reavaliadas individualmente durante o processo psicoterapêutico, após o término de cada etapa da intervenção grupal. Nestas reavaliações foram aplicados os instrumentos utilizados na avaliação inicial. As avaliações e reavaliações clínicas foram realizadas pelos membros da equipe que não estavam envolvidos na coordenação dos grupos terapêuticos. Além disso, a evolução clínica das participantes foi realizada semanalmente. As terapeutas realizaram um relato sobre as dificuldades e progressos terapêuticos de cada participante no término das sessões.

Ao final da grupoterapia, todas as participantes foram reavaliadas individualmente. Nesta reavaliação também foram aplicados os instrumentos da avaliação inicial em busca de sintomas de depressão, ansiedade, transtorno do estresse pós-traumático e crenças disfuncionais com relação à violência sexual. Todas as participantes foram acompanhadas durante um ano após o término do tratamento, por meio de reavaliações semestrais para observar a manutenção dos efeitos da intervenção.

Os resultados dos instrumentos utilizados e entrevista para TEPT foram inicialmente submetidos a análises descritivas, nas quais foram calculadas a média e o desvio-padrão de cada instrumento em cada tempo. Após as análises descritivas, os dados foram submetidos ao Teste de Kolmogorov-Smirnov para verificar a normalidade da amostra (p>0,05). Foram realizadas análises medidas repetidas nos quatro tempos distintos do processo: pré-teste (avaliação inicial), pós-teste 1 (após psicoeducação), pós-teste 2 (após treino de inoculação do estresse) e pós-teste 3 (após prevenção a recaída).

O projeto foi aprovado pelo Comitê de Ética da Universidade Federal do Rio Grande do Sul (Processo 2004299).

 

RESULTADOS

Poucas participantes foram atendidas imediatamente após a revelação do abuso sexual e a maioria aguardava atendimento psicológico. Por isso foram analisados os resultados dos instrumentos psicológicos (depressão, ansiedade, stress, percepções e atribuições com relação ao abuso e transtorno do estresse pós-traumático) comparando quem obteve atendimento e quem aguardava. Os resultados desses instrumentos foram comparados pelo teste t e não foi encontrada diferença significativa nos sintomas psicológicos avaliados (Tabela 2).

A combinação de todas as medidas de cada instrumento foi analisada (pré e pós1; pré e pós2, pré e pós3, pós1 e pós2, pós1 e pós3 e pós 2 e pós3) e os resultados significativos (p<0,05) estão apresentados na Tabela 3.

Os sintomas de depressão avaliados pelo CDI apresentaram redução significativa entre pré-teste e o pós-teste 3. Os sintomas de ansiedade avaliados pelo IDATE-C também apresentaram redução significativa, nas escalas traço e estado, entre o pré e pós-teste 3, bem como entre pós 1 e pós 3 e pós 2 e pós 3.

Os sintomas de estresse infantil avaliados pela ESI foram significativamente reduzidos no somatório das quatro subescalas (sintomas físicos, psicológicos, psicológicos com componente depressivo e psicofisiológicos) entre o pré e pós-teste 3. Observou-se um aumento não significativo nos sintomas entre o pré e o pós-teste 1. Contudo, após a primeira etapa da grupoterapia observou-se a redução significativa dos sintomas.

As percepções e atribuições das participantes, avaliadas pelo CAPS, também sofreram alterações significativas entre o pré e pós-teste 3. Estas distorções cognitivas foram modificadas por meio de técnicas de reestruturação cognitiva. Identificaram-se mudanças na percepção de culpa das participantes, bem como na percepção do quanto elas podem confiar nas pessoas e do quanto as pessoas acreditam nelas. Contudo, não foram identificadas alterações na percepção delas em relação aos seus pares, ou seja, as participantes continuaram com a mesma percepção de diferença em relação a outras meninas da sua idade.

Houve uma redução significativa na quantidade de sintomas do transtorno do estresse pós-traumático nas três categorias de sintomas que compõem o quadro: revivência do trauma, evitação e entorpecimento e hipervigilância. As técnicas específicas de reestruturação da memória traumática trabalhadas na segunda etapa da intervenção contribuíram significativamente para a redução dos sintomas de revivência e hipervigilância. Os sintomas de evitação sofreram redução desde a primeira etapa da intervenção.

As participantes apresentaram redução da sintomatologia e elaboraram crenças mais funcionais em relação à experiência do abuso. Dessa forma, o modelo de intervenção avaliado foi efetivo na redução de sintomas de depressão, ansiedade e TEPT, bem como na reestruturação de crenças disfuncionais das participantes do estudo.

 

DISCUSSÃO

A comparação dos sintomas psicológicos e do tempo de espera por tratamento psicológico nos três grupos (imediatamente após a revelação, um a seis meses após a revelação e mais de seis meses após a revelação) não identificou diferenças significativas entre eles em nenhuma das escalas aplicadas. Dessa forma, pode-se inferir que a passagem de tempo de espera sem intervenção psicológica não reduz os sintomas psicológicos de depressão, ansiedade, TEPT e estresse avaliados, assim como não contribui para alteração de percepções sobre culpa, diferença entre pares, confiança e credibilidade mensuradas pelo CAPS. Este resultado corrobora outro estudo14 que também não identificou redução de sintomas psicológicos na ausência de intervenção terapêutica.

A avaliação do efeito da intervenção nos sintomas de depressão, ansiedade, transtorno do estresse pós-traumático, bem como nas crenças em relação ao abuso mostrou redução significativa de sintomas. Os sintomas de depressão apresentaram redução significativa entre pré-teste e o pós-teste 3. Os sintomas de ansiedade também apresentaram redução significativa entre o pré e pós-teste 3, bem como entre pós 1 e pós 3 e pós 2 e pós 3. A redução significativa de sintomas de depressão e ansiedade entre o pré-teste e o final da intervenção aponta a reestruturação de crenças disfuncionais relacionadas com culpa e a desestruturação da família enfatizada nas primeiras sessões. Além disso, a compreensão do que é abuso sexual e a exploração de sentimentos e percepções sobre essa experiência tiveram impacto positivo nestes sintomas. As percepções distorcidas da criança, em relação ao abuso, estão relacionadas com maior sintomatologia de depressão e ansiedade.19

Os sintomas de estresse infantil foram significativamente reduzidos no somatório das quatro subescalas entre o pré e pós-teste 3. O aumento não significativo observado entre o pré e o pós-teste 1 pode ser explicado pelo início do processo terapêutico, que pode ter gerado aumento de estresse em alguns indivíduos. Contudo, após a primeira etapa da grupoterapia observou-se a redução significativa dos sintomas. Esses resultados sugerem que as técnicas de relaxamento, treino de inoculação do estresse e reestruturação cognitiva foram efetivas para a redução de estresse. Além disso, a aprendizagem de medidas de autoproteção na última etapa do processo grupoterápico pode ter contribuído para uma maior percepção de segurança e desenvolvimento de estratégias de enfrentamento.

As percepções e atribuições das participantes também sofreram alterações significativas entre o pré e pós-teste 3, provavelmente modificadas pelas técnicas de reestruturação cognitiva. Identificaram-se mudanças na percepção de culpa das crianças, bem como na percepção da relação de confiança com outras pessoas. O contexto terapêutico grupal, no qual elas se sentiam respeitadas e recebem a credibilidade do grupo, pode contribuir para reestruturar tais percepções. Além disso, o grupo representou um espaço seguro, no qual se desenvolvem laços de confiança entre as participantes e as terapeutas, o que oferece um modelo diferenciado de relacionamento interpessoal. Embora as participantes tenham mantido a percepção de diferença em relação a outras meninas da sua idade, este resultado sugere a importância de intervir de forma mais sistemática na crença que meninas vítimas de abuso sexual têm de que são diferentes de outras crianças e adolescentes.

Houve uma redução significativa na quantidade de sintomas do TEPT nas três categorias de sintomas: revivência do trauma, evitação e entorpecimento e hipervigilância. As técnicas específicas de reestruturação da memória traumática aplicadas na segunda etapa da intervenção contribuíram significativamente para a redução dos sintomas de revivência e hipervigilância. O treino de inoculação do estresse, associado à substituição de imagens e relaxamento foram importantes para a elaboração de novos significados para o abuso, bem como aprendizagem de recursos para controle de reações emocionais desencadeadas pelas lembranças da violência. Os sintomas de evitação diminuíram desde a primeira etapa da intervenção, devido ao fato de a grupoterapia ser focada na violência desde a primeira sessão e gerar uma dessenssibilização sistemática com relação ao tema abuso sexual. O vídeo sobre abuso sexual apresentado para as crianças e o fato de compartilharem no grupo suas histórias de vida pode ter auxiliado na redução de sintomas de evitação. A redução dos sintomas de TEPT encontrada no presente estudo está em consonância com o estudo que aponta a eficácia da TCC na melhora deste transtorno.4

Considerando os resultados do presente estudo, é possível inferir que o modelo de grupoterapia foi efetivo na redução de sintomas de depressão, ansiedade e TEPT, bem como na reestruturação de crenças disfuncionais das participantes. A comparação de tais resultados com um grupo controle permitiria avaliar se a redução da sintomatologia não ocorreu apenas devido à passagem de tempo. Contudo, o delineamento com grupo controle poderia gerar problemas metodológicos, tal como a perda de participantes do controle devido ao tempo de espera, e problemas éticos, pois o estudo não oportunizaria o acesso imediato ao tratamento a crianças e adolescentes em situação de risco. No entanto, alguns estudos confirmam que a passagem do tempo não é responsável pela remissão ou redução de sintomas decorrentes de abuso sexual e que adultos que passaram por esta experiência na infância permanecem com dificuldades psicológicas durante a vida.12,14 A análise sobre a passagem do tempo de espera corrobora tais achados, apontando que a intervenção é necessária para a redução de sintomas psicológicos.

Estudos com um maior número de participantes podem potencializar os resultados encontrados, uma vez que possibilitariam análises estatísticas mais robustas. Além disso, devem ser realizados estudos que apliquem o modelo em crianças e adolescentes do sexo masculino vítimas de abuso sexual para avaliação da efetividade para esse sexo. Atualmente, as participantes do presente estudo estão em acompanhamento mensal e os instrumentos psicológicos continuam sendo aplicados após seis e um ano do término da intervenção para avaliação da manutenção da melhora clínica.

 

AGRADECIMENTO

Ao Dr. Lucas Neiva da Universidade Federal do Rio Grande pela colaboração nas análises estatísticas.

 

REFERÊNCIAS

1. Azevedo MA, Guerra VNA. Crianças vitimizadas: a síndrome do pequeno poder. São Paulo: Iglu; 1989.

2. Biaggio A, Spielberger CD. Inventário de ansiedade traço-estado-IDATE-C Manual para a forma experimental infantil em português. Rio de Janeiro: Centro Editor de Psicologia Aplicada; 1983.

3. Celano M, Hazzard A, Campbell SK, Lang CB. Attribution retraining with sexually abused children: review of techniques. Child Maltreat. 2002;7(1):65-76. DOI: 10.1177/1077559502007001006

4. Cohen JA, Mannarino AP, Rogal S. Treatment practices for childhood posttraumatic stress disorder. Child Abuse Negl. 2001;25(1):123-35. DOI: 10.1016/S0145-2134(00)00226-X

5. Cohen JA, Mannarino AP, Knudsen K. Treating sexually abused children: 1 year follow-up of a randomized controlled trial. Child Abuse Negl. 2005;29(2):135-45. DOI: 10.1016/j.chiabu.2004.12.005

6. Deblinger E, Stauffer LB, Steer RA. Comparative efficacies of supportive and cognitive behavioral group therapies for young children who have been sexually abused and their nonoffending mothers. Child Maltreat. 2001;6(4):332-43. DOI: 10.1177/1077559501006004006

7. Del Ben CM, Vilela JA, Crippa JA, Hallak JE, Labate CM, Zuardi AW. Confiabilidade da entrevista estruturada para o DSM-IV - versão clínica traduzida para o português. Rev Bras Psiquiatr. 2001;23(3):156-9. DOI: 10.1590/S1516-44462001000300008

8. Elliott AN, Carnes CN. Reactions of nonoffending parents to the sexual abuse of their child: A review of the literature. Child Maltreat. 2001;6(4):314-31. DOI: 10.1177/1077559501006004005

9. Habigzang LF, Hatzenberger R, Dala Corte F, Stroher F, Koller SH. Avaliação de um modelo de intervenção psicológica para meninas vítimas de abuso sexual. Psic Teor Pesq. 2008;24(1):67-76. DOI: 10.1590/S0102-37722008000100008

10. Hetzel-Riggin MD, Brausch AM, Montgomery BS. A meta-analytic investigation of therapy modality outcomes for sexually abused children and adolescents: an exploratory study. Child Abuse Negl. 2007;31(2):125-41. DOI: 10.1016/j.chiabu.2006.10.007

11. Hulley SB, Cummings SR, Browner WS, Grady D, Hearst N, Newman TB. Delineando a pesquisa clínica: uma abordagem epidemiológica. Porto Alegre: Artmed; 2003.

12. Jonzon E, Lindblad F. Disclosure, reactions and social support: findings from a sample of adult victims of child sexual abuse. Child Maltreat. 2004;9(2):190-200. DOI: 10.1177/1077559504264263

13. Kovacs M. Children's Depression Inventory Manual. Los Angeles: Western Psychological Services; 1992.

14. Lanktree CB, Briere J. Outcome of therapy for sexually abused children: a repeated measures study. Child Abuse Negl.1995;19(9):1145-55. DOI: 10.1016/0145-2134(95)00075-J

15. Lipp ME, Lucarelli MDM. Escala de stress infantil ESI: manual. São Paulo: Casa do Psicólogo; 1998.

16. Mannarino AP, Cohen JA, Berman SR. The children's attributions and perceptions scale: a new measure of sexual abuse-related factors. J Clin Child Psychol. 1994;23(2):204-11. DOI: 10.1207/s15374424jccp2302_9

17. Osofsky JD. The effects of exposure to violence on young children. Am Psychol. 1995;50(9):782-8. DOI: 10.1037/0003-066X.50.9.782

18. Padilha MGS, Gomide PIC. Descrição de um processo terapêutico em grupo para adolescentes vítimas de abuso sexual. Estud Psicol. 2004;9(1):53-61. DOI: 10.1590/S1413-294X2004000100007

19. Runyon MK, Kenny MC. Relationship of atribucional style, depression and posttrauma distress among children who suffered physical or sexual abuse. Child Maltreat. 2002;7(3):254-64. DOI: 10.1177/1077559502007003007

20. Sanderson C. Abuso sexual em crianças: fortalecendo pais e professores para proteger crianças de abusos sexuais. São Paulo: M. Books; 2005.

21. Swanston HY, Parkinson PN, O'Toole BI, Plunkett AM, Shrimpton S, Oates RK. Juvenile crime, aggression and delinquency after sexual abuse. Br J Criminol. 2003;43(4):729-49. DOI: 10.1093/bjc/43.4.729

22. Saywitz KJ, Mannarino AP, Berliner L, Cohen JA. Treatment for sexually abused children and adolescents. Am Psychol. 2000;55(9):1040-9. DOI: 10.1037/0003-066X.55.9.1040

23. The Metropolitan Toronto Special Committee on Child Abuse. Child sexual abuse protocol. 3.ed. Toronto: Author; 1995.

 

Correspondência | Correspondence:
Luísa Fernanda Habigzang
R. Ramiro Barcelos, 2600 - sala 104
90035-003 Porto Alegre, RS, Brasil
E-mail: luisa.h@terra.com.br


Artigo original:

http://www.scielo.br/scielo.php?script=sci_arttext&pid=S0034-89102009000800011&lng=pt&nrm=iso

O portal Psiquiatria Infantil.com.br já recebeu

49.750.389 visitantes