Artigos Científicos

FENÓTIPO RETT EM PACIENTE COM CARIÓTIPO XXY

JOSÉ SALOMÃO SCHWARTZMAN; ANGELA MARIA COSTA DE SOUZA; GUIDO FAIWICHOW; LUIZ HENRIQUE HERCOWITZ

10 de dezembro de 2009

Arq. Neuro-Psiquiatr. vol.56 n.4 São Paulo Dec. 1998

FENÓTIPO RETT EM PACIENTE COM CARIÓTIPO XXY

RELATO DE CASO

 

JOSÉ SALOMÃO SCHWARTZMAN*, ANGELA MARIA COSTA DE SOUZA**, GUIDO FAIWICHOW***, LUIZ HENRIQUE HERCOWITZ****

 

 

RESUMO ¾ Relatamos o caso de um menino com cariótipo XXY que apresenta desordem neurológica progressiva com início por volta dos 11 meses de idade, com estagnação do desenvolvimento seguida de regressão. A criança apresenta, ainda, movimentos estereotipados de mãos, apraxia manual e microcefalia. Investigações não constataram presença de qualquer condição neurológica ou sistêmica definida que pudesse ser apontada como possível etiologia para o quadro descrito. Trata-se de menino com alterações fenotípicas muito similares àquelas consideradas típicas para a síndrome de Rett que, associadas com a alteração cromossômica constatada (cariótipo XXY), constituem quadro de evidente interesse científico.

PALAVRAS-CHAVE: síndrome de Rett, cariótipo XXY, síndrome de Klinefelter.

 

Rett syndrome phenotype in XXY karyotype: case report

ABSTRACT ¾ We report the case of a XXY boy who presents progressive neurological disorder which has started around eleven months of age, with developmental stagnation followed by regression. The child presents as well stereotypic hand movements, loss of purposeful hands use and microcephalia. Presence of any defined systemic or neurological condition which could be pointed out as the possible etiological factor for the case was not found out by investigations. It deals with a boy with phenotypic alterations very similar to those considered typical for Rett syndrome which associated with chromosomal alteration (XXY kariotype) constitute evident scientific interest.

KEY WORDS: Rett syndrome, XXY karyotype, Klinefelter syndrome.

 

 

A síndrome de Rett é uma condição neurológica de etiologia desconhecida, descrita por Andreas Rett em 1966, que, em sua forma clássica, afeta crianças do sexo feminino. Caracteriza-se por regressão no desenvolvimento com início por volta dos 8 a 10 meses de idade e pela presença de sintomas do tipo autístico, perda do uso práxico das mãos, movimentos estereotipados, microcefalia adquirida e evidente retardo cognitivo e de comunicação1-3. Pelos critérios do CID-10, é classificada como uma das assim chamadas desordens abrangentes do desenvolvimento.

Os casos identificados até hoje referem-se apenas ao sexo feminino. Foram relatados alguns poucos casos em que o fenótipo similar foi observado no sexo masculino4-8, nos quais, entretanto, o quadro clínico descrito era, em geral, apenas sugestivo do diagnóstico da síndrome de Rett, e os sinais e sintomas estavam presentes de forma atípica e/ou parcial.

A identificação de síndrome de Rett em irmãs, a alta taxa de concordância verificada em gêmeas monozigóticas e a discordância em gêmeas dizigóticas9 apontam para a existência de determinação genética nesta condição.

O fato de a síndrome de Rett ocorrer exclusivamente no sexo feminino, ao menos em sua forma típica, dirigiu as suspeitas para o possível envolvimento do cromossomo X. Entretanto, até o momento, apesar dos vários estudos realizados, ainda não foi possível ratificar esta hipótese 10, 11.

O caso que ora relatamos tem interesse singular na medida em que se trata de criança do sexo masculino, na qual foram observados sinais e sintomas considerados típicos da síndrome de Rett e na qual estudo cromossômico evidenciou cariótipo XXY. Até onde sabemos, trata-se do primeiro caso relatado de menino XXY com fenótipo Rett.

 

RELATO DE CASO

LOA, criança do sexo masculino nascida em 3-janeiro-1995, foi atendida pela primeira vez aos 2 anos e 4 meses, tendo sido encaminhada para avaliação neurológica devido à queixa de atraso no desenvolvimento. Segundo informações da mãe, a criança teria apresentado desenvolvimento normal até os 8 meses de idade, ocasião em que já se sentava sem apoio, brincava, segurava objetos e era capaz de pegar alimentos e levá-los à boca; também já começava a vocalizar de forma compreensível e já falava mamãe. Os familiares começaram a preocupar-se com estagnação do desenvolvimento quando a criança estava com cerca de 11 meses, ocasião em que deixou de pegar objetos e alimentos, deixou de comunicar-se, tornou-se isolada. Antes de completar o primeiro ano, surgiram movimentos estereotipados de mãos. Além disso, range muito os dentes e gosta de ficar olhando fixamente padrões visuais lineares, principalmente quando em movimento. Também apresenta obstipação intestinal. A criança é a última de uma prole de quatro, tendo nascido de parto normal e a termo, após gestação aparentemente normal, com peso de 3330g e índices de Apgar de 6 no primeiro minuto e 7 no quinto minuto, e sem história de intercorrências perinatais importantes. O perímetro cefálico ao nascimento era de 32 cm (percentil 2,5). Os pais são saudáveis e não consanguíneos. Tem dois irmãos (16 e 9 anos, respectivamente) e uma irmã (13 anos). Não há referências a moléstias neuropsiquiátricas nos familiares.

Ao primeiro exame neurológico (aos 2 anos e 4 meses), a criança mostrava-se isolada, com evidente e severo retardo global, hipotonia global leve, pouca movimentação espontânea. Apresentava, ainda, constantes movimentos estereotipados das mãos: movimentava os dedos, mantendo as mãos juntas e levando-as à boca. Não pegava qualquer objeto nem tentava manipular qualquer brinquedo (Fig 1). Embora vocalizasse bastante, não emitia qualquer palavra. Evidentemente, a compreensão verbal mostrava-se muito prejudicada. Reagia aos estímulos sonoros e luminosos. Se colocada em pé, conseguia equilibrar-se por algum tempo com a base de sustentação aumentada, apresentando evidente ataxia axial. Apresentava, ainda, bruxismo e curtas crises de apnéia. O perímetro cefálico era de 45cm (abaixo do percentil 2,5); peso, de 12220g (percentil 20) e altura de 87 cm (percentil 25). Não foram observadas alterações nos nervos cranianos nem sinais neurológicos focais.

 

 

A criança foi reavaliada aos 2 anos e 7 meses, aos 2 anos e 9 meses e aos 2 anos e 11 meses, e, nestas ocasiões, o quadro geral mostrou-se inalterado, exceção feita aos movimentos involuntários das mãos, que se tornaram mais evidentes, e a uma acentuação dos episódios de apnéia.

Na última avaliação realizada, quando a criança estava com 3 anos e 1 mês, os familiares relataram que o quadro estaria mais ou menos inalterado, com exceção de diminuição no bruxismo e, talvez, de melhora na interação com o meio e com as pessoas da família. Desta vez, o exame neurológico mostrava uma criança com deficiência global acentuada, demonstrando alguma interação com as pessoas a ela mais familiares, discreto contato visual e presença de sorriso frente a alguns estímulos ambientais. Estava pesando, então, 15200g (percentil 35), com altura de 94 cm (percentil 25) e perímetro cefálico medindo 46 cm (abaixo do percentil 2,5). Persistiam o quadro de hipotonia muscular global leve, a presença de movimentos estereotipados das mãos e a apraxia manual. A marcha, possível apenas com apoio, era realizada com a base de sustentação aumentada e com evidente ataxia-apraxia. Os episódios de apnéia apresentaram-se mais frequentes e mais prolongados do que nas avaliações anteriores.

Com relação aos exames subsidiários realizados, o cariótipo encontrado foi o 47,XXY (Fig 2), com pesquisa de X-frágil negativa. Foram normais os resultados de: (a) sorologia para toxoplasmose IgM; (b) pesquisa de anticorpos antivírus da rubéola IgG e IgM; (c) sorologia para sifílis; (d) pesquisa de anticorpos anti-HIV1 e HIV2; (e) pesquisa de anticorpos antivírus citomegálico IgM; (f) pesquisa de anticorpos totais antivírus herpes simples; (g) exame do líquido céfalo-raquideano; (h) eletrencefalograma; (i) ressonância nuclear magnética de crânio e (j) biópsia de reto.

 

 

À eletro-retinografia, os estímulos fotópicos testados demonstraram presença de ondas "a" e "b", embora subnormais. Estes resultados podem ser compatíveis com alterações da troficidade retiniana. Tais respostas, entretanto, afastam a possibilidade de se tratar de problema de distrofia primária de retina em ambos os olhos.

A sorologia para toxoplasmose IgG por imunofluorescência mostrou-se alterada (reagente até 1/32000; valor de referência: não reagente). Do mesmo modo, esta sorologia realizada por imunofluorimetria com micropartículas ratificou as alterações (1770 Ul/ml, valor de referência: inferior a 3 Ul/ml).

 

COMENTÁRIOS

O caso relatado refere-se a um menino sem antecedentes gestacionais nem evidências de patologias perinatais que, após evolução aparentemente normal até os 11 meses de idade, começou a apresentar sinais inequívocos de estagnação e regressão no desenvolvimento. O quadro atual caracteriza-se por atraso abrangente no desenvolvimento, com presença de apraxia manual; movimentos estereotipados das mãos (as mãos são mantidas juntas, com movimentação constante dos dedos, que são levados à boca); bruxismo e apnéia em vigília. Há, ainda, presença de hipotonia muscular e ataxia-apraxia da marcha.

O perímetro cefálico situa-se abaixo do percentil 2,5, indicando presença de microcefalia leve. Ressalte-se, contudo, que esta medida, já ao nascimento, situava-se no percentil 2,5, que é indicativo do limite inferior de normalidade.

O fenótipo Rett observado nesta criança atende aos critérios utilizados para o diagnóstico de síndrome de Rett12, que incluem: (1) períodos pré e perinatais aparentemente normais; (2) desenvolvimento psicomotor aparentemente normal durante os primeiros 6 meses de idade; (3) perímetro cefálico normal ao nascimento; (4) desaceleração do crescimento craniano entre os 5 meses e os 4 anos de idade; (5) perda dos movimentos voluntários manuais já adquiridos; (6) comprometimento severo da linguagem expressiva e receptiva e presença de retardo psicomotor; (7) movimentos estereotipados das mãos; (8) ataxia da marcha e apraxia-ataxia do tronco entre 1 e 4 anos de idade; e (9) o diagnóstico é apenas de presunção até os 2 a 5 anos de idade. Além destes aspectos, são também propostos12 alguns sinais e sintomas que seriam os critérios de exclusão, a saber: (1) evidência de retardo de crescimento intra-uterino; (2) visceromegalia ou outros indícios de doenças de depósito; (3) retinopatia ou atrofia óptica; (4) microcefalia ao nascimento; (5) evidência de insulto cerebral adquirido; (6) doenças metabólicas ou neurológicas progressivas; (7) condições neurológicas adquiridas decorrentes de infecções severas ou traumatismos crânio-encefálicos.

A nosso ver, este caso suscita interesse por diversas razões. Este menino apresenta vários dos sinais e sintomas considerados relevantes para o diagnóstico de síndrome de Rett, e as investigações realizadas não evidenciaram qualquer outra condição que pudesse ser apontada como etiologia para o quadro clínico presente. Por outro lado, o cariótipo mostrou tratar-se de menino com 47,XXY.

A presença de IgG positiva para toxoplasmose não parece constituir, necessariamente, critério de exclusão para a síndrome de Rett, até porque o quadro clínico relatado não é aquele usualmente observado nos casos de toxoplasmose congênita, condição em que não há um período de desenvolvimento inteiramente normal seguido de regressão. Não encontramos, nas investigações do caso relatado, quaisquer das anormalidades ao fundo de olho e à tomografia que podem ser observadas nos quadros de toxoplasmose congênita.

Embora não tenham se mostrado completamente normais, os resultados do eletro-retinograma afastaram a possibilidade de distrofias primárias da retina, tornando pouco provável a hipótese de uma lipofuscinose, condição essa que constitui diagnóstico diferencial importante da síndrome de Rett. O resultado normal da biópsia de reto afastou, igualmente, eventual diagnóstico de lipofuscinose.

Pelo curso clínico observado pelo menos até o momento, outras condições progressivas parecem pouco prováveis.

Neste momento, ainda não é possível fechar o diagnóstico de síndrome de Rett, uma vez que o diagnóstico definitivo dessa condição é realizado apenas após acompanhamento de alguns anos. Entretanto, ainda que este diagnóstico não venha a ser confirmado, o caso continua sendo de grande interesse, pois (1) trata-se do primeiro relato de fenótipo Rett com cariótipo XXY e (2) dentre os casos com quadro similar ao da síndrome de Rett relatados no sexo masculino, este é o que mais se aproxima desta condição.

Atualmente, estão sendo realizados estudos citogenéticos que visam à completa elucidação dos aspectos cromossômicos e genéticos presentes neste caso, cujos resultados deverão constituir material para futura publicação.

Em conclusão, este relato refere-se, portanto, ao primeiro caso de fenótipo Rett em menino com cariótipo XXY, e os estudos citogenéticos em andamento poderão vir a colaborar na compreensão dos mecanismos genéticos envolvidos no fenótipo Rett.

 

REFERÊNCIAS

1. Hagberg BA, Aicardi DI, Dias K, Ramos O. A progressive syndrome of autism, dementia and loss of purposeful hand use in girls: Rett syndrome. Report of 35 cases. Ann Neurol 1983;14:471-479.

2. Rosemberg S, Arita FN, Campos C. A Brazilian girl with the Rett syndrome. Brain Dev 1986;8:554-556.

3. Rosemberg S, Arita FN, Campos C, Coimbra AR, Ellovitch S, Geres S. Síndrome de Rett: análise dos primeiros cinco casos diagnosticados no Brasil. Arq Neuropsiquiatr 1987;45:143-158.

4. Coleman M. Is classical Rett syndrome ever present in males? Brain Dev 1990;12:31-32.

5. Eeg-Olofsson O, Al-Zuhair AGH, Teebi AS, Zaki M, Daoud AS. A boy with Rett syndrome? Brain Dev 1990;12:529-532.

6. Christen H-J, Hanefelf F. Male Rett variant. Neuropediatrics 1995;26:81-82.

7. Philippart M. The Rett syndrome in males. Brain Dev 1990;12:33-36.

8. Topçu M, Topaglu H, Renda Y, Berket M, Turani G. The Rett syndrome in males. Brain Dev 1991;13:62.

9. Pereira JLP, Pilotto RF. Síndrome de Rett entre irmãs. Temas sobre Desenvolvimento 1993;2(12):16-20.

10. Anvret M, Zhang ZP. Current status of genetic research in Rett syndrome. Neuropediatrics 1995;26:88-89.

11. Krepischi ACV, Otto PG. Estudos de inativação do cromossomo X em portadoras da síndrome de Rett. Dissertação, Universidade de São Paulo. São Paulo, 1994.

12. Trevathan E, Naidu S. The clinical recognition and differential doagnosis of Rett syndrome. J Child Neurol 1988;3(Suppl.):S6-S16.

 

 

*Neuropediatra da Clínica Pediátrica São Paulo, Professor do Curso de Pós-Graduação em Distúrbios do Desenvolvimento da Universidade Mackenzie;** Fisiatra, Coordenadora da Clínica de Paralisia Cerebral da AACD ¾ Associação de Assistência à Criança Defeituosa; *** Pediatra, Chefe do Serviço de Pediatria Assistencial do Hospital Israelita Albert Einstein; **** Pediatra do Serviço de Pediatria Assistencial do Hospital Israelita Albert Einstein. Aceite: 14-agosto-1998.

Dr. José Salomão Schwartzman - Rua Morgado Matheus 505 - 04015-051 São Paulo SP - Brasil. FAX 011 571 7743. E-mail: joses@ibm.net


Artigo original:

http://www.scielo.br/scielo.php?script=sci_arttext&pid=S0004-282X1998000500020&lng=en&nrm=iso

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