Ymara Lúcia Camargo Vitolo; Bacy Fleitlich-Bilyk; Robert Goodman; Isabel Altenfelder Santos Bordin
18 de janeiro de 2010
Crenças e atitudes educativas dos pais e problemas de saúde mental em escolares
Ymara Lúcia Camargo VitoloI; Bacy Fleitlich-BilykII; Robert GoodmanIII; Isabel Altenfelder Santos BordinI
IDepartamento de Psiquiatria. Escola Paulista de Medicina. Universidade Federal de São Paulo. São Paulo, SP, Brasil
IIDepartamento de Psiquiatria. Faculdade de Medicina. Universidade de São Paulo. São Paulo, SP, Brasil
IIIDepartment of Child and Adolescent Psychiatry. Institute of Psychiatry. King's College London. London, England
RESUMO
OBJETIVO: Verificar a prevalência e fatores de risco para problemas de saúde mental em escolares e sua possível relação com crenças e atitudes educativas de pais/cuidadores.
MÉTODOS: Estudo de corte transversal; com amostra probabilística e estratificada (n=454) de escolares das primeiras três séries do ensino fundamental de escolas públicas e particulares de Taubaté, Estado de São Paulo. Foram aplicados instrumentos padronizados a pais/cuidadores por entrevistadores treinados: questionários de rastreamento de problemas de saúde mental em crianças e pais/cuidadores; questionário de crenças e atitudes educativas; questionário de classificação econômica. As seguintes análises estatísticas foram utilizadas: testes de qui-quadrado e modelos de regressão logística.
RESULTADOS: A prevalência dos casos clínicos/limítrofes entre os escolares foi de 35,2%. Pais/cuidadores que acreditavam na punição física como método educativo agrediam fisicamente seus filhos com maior freqüência (64,8%). Modelos de regressão logística revelaram que a atitude de bater com o cinto esteve associada a problemas de conduta e a problemas de saúde mental em geral nos escolares, na presença de outros fatores de risco: sexo da criança (masculino), pais/cuidadores com problemas de saúde mental e condições socioeconômicas desfavoráveis.
CONCLUSÕES: A alta prevalência de problemas de saúde mental em escolares e sua associação com métodos educativos e problemas de saúde mental dos pais/cuidadores indicam a necessidade de intervenções psicoeducacionais para reduzir o abuso físico e os problemas de saúde mental na infância.
Descritores: Saúde mental, estatísticas & dados numéricos. Educação infantil. Maus-tratos infantis. Conhecimentos, atitudes & prática em saúde. Psiquiatria infantil. Estudos transversais. Fatores de risco. Modelos logísticos. Prevalência.
INTRODUÇÃO
A violência familiar é um fenômeno reconhecido desde a Antigüidade. Em 1985, foram encontradas múmias de 2.000 a 3.000 anos, cuja análise revelou uma freqüência muito maior de fraturas entre mulheres e crianças que entre homens, dado sugestivo de violência em tempos de paz.19 Em 1871, na cidade de Nova York, vizinhos de uma criança espancada denunciaram o fato à sociedade protetora dos animais, por falta de instituição apropriada. Algum tempo depois, foi criada uma sociedade para a prevenção de crueldade com as crianças. Somente em 1961 o abuso infantil recebeu maior atenção dos profissionais de saúde e da sociedade em geral, com a descrição da síndrome da criança espancada (Kempe et al13). No Brasil, a gravidade dos maus-tratos na infância foi reconhecida no final da década de 80, quando a notificação dos casos passou a ser obrigatória pela Constituição Federal e foram criados os Conselhos Tutelares para proteger os direitos das crianças e adolescentes.1
A punição física é um método educativo freqüentemente utilizado em várias regiões do mundo, com sérias repercussões na saúde mental das crianças.10,14,18 No Brasil, a grande maioria dos estudos sobre violência contra crianças e adolescentes refere-se a amostras clínicas, atendidas em serviços especializados. Nesses estudos, fica evidente que a agressão física é o abuso mais comum, atingindo crianças e adolescentes de ambos os sexos e de todas as idades, sendo a mãe e/ou o pai os agressores mais freqüentes.5 Também tendo os pais como possíveis agressores, estudo1 populacional recente realizado em bairro de baixa renda do município de Embu, Estado de São Paulo, mostrou alta prevalência (10,1%) de agressão física grave a menores de 18 anos no ambiente doméstico. Segundo a Organização Mundial da Saúde,14 mais pesquisas são necessárias para ampliar o conhecimento sobre a ocorrência do abuso de crianças e adolescentes nas várias regiões do planeta, incluindo causas e conseqüências específicas de cada local.
Crianças de todas as faixas etárias e condições socioeconômicas são vítimas de abuso físico, psíquico ou sexual cometidos por pais biológicos, substitutos, adotivos e outros membros da família. Como os padrões que determinam o comportamento de pais e cuidadores variam segundo fatores culturais, o que caracteriza maus-tratos em determinada população pode ser considerado aceitável em outra.14 Na Jamaica, a crença na punição corporal como forma de educar é tão arraigada quanto legítima, e sua utilização não se limita aos pais, mas também é observada nas escolas como ferramenta pedagógica.18 Enquanto alguns grupos populacionais tendem a punir fisicamente seus filhos, outros raramente recorrem a esses métodos educativos. Entre os povos do Xingu, por exemplo, bater em crianças é considerado covardia.17
Vários fatores tornam a criança mais vulnerável a sofrer agressão física no ambiente doméstico, como os individuais (sexo, idade), os familiares (problemas de saúde mental, história de punição física na infância, violência conjugal) e os socioculturais (pobreza e má distribuição de renda, normas e valores culturais, suporte social).14 Quando os maus-tratos estão presentes, podem ser observados prejuízos à criança a curto e longo prazo, incluindo danos à saúde em geral (fraturas, lacerações, lesões cerebrais) e problemas de saúde mental (ansiedade, depressão, isolamento social, suicídio, abuso de drogas, transtorno de conduta, delinqüência).12,14,15 Outras conseqüências da violência física contra as crianças incluem atrasos no desenvolvimento cognitivo, déficit intelectual e fracasso escolar, além de violência e criminalidade na adolescência e na vida adulta.14,15
O presente estudo objetivou averiguar a prevalência de problemas de saúde mental em escolares das primeiras três séries do ensino fundamental; verificar se crenças e atitudes educativas de pais/cuidadores estão associadas a problemas de saúde mental nas crianças; e identificar fatores de risco para esses problemas nos escolares.
MÉTODOS
Estudo do tipo transversal foi realizado na cidade de Taubaté, Estado de São Paulo, distante 134 km da capital do Estado, com cerca de 244.000 habitantes; conhecida como a cidade universitária do Vale do Paraíba, é um centro industrial, pecuarista e rizicultor.
O estudo utilizou parte do banco de dados de uma pesquisa2 que avaliou uma amostra probabilística de 1.251 escolares das oito séries do ensino fundamental de Taubaté. A amostra foi estratificada segundo tipo de escola e área geográfica, incluindo alunos de escolas particulares (todas urbanas) e de escolas públicas municipais e estaduais (ambas urbanas e rurais). A participação no estudo dependeu do consentimento livre e esclarecido, por escrito, dos pais ou cuidadores, com perda amostral de 18% nas escolas particulares, 17% nas públicas rurais e 16% nas públicas urbanas.6
A amostra utilizada no presente estudo (n=454) incluiu crianças de sete a 11 anos de ambos os sexos e de todas as classes sociais, da primeira à terceira série do ensino fundamental. O recorte feito visou reunir evidências que pudessem servir de base para desenvolver programas preventivos e de intervenção precoce nas escolas, na área de saúde mental.
O trabalho de campo foi realizado de agosto de 2000 a agosto de 2001. Em entrevistas individuais, entrevistadores treinados aplicaram instrumentos padronizados a pais/cuidadores nas escolas e excepcionalmente no domicílio, no local de trabalho ou no escritório dos pesquisadores.
Foi elaborado um questionário para investigar crenças de pais/cuidadores sobre punição física e atitudes educativas (conversar com a criança, deixar de castigo, gritar/xingar, bater com a mão e bater com o cinto). Uma pergunta aberta procurou identificar outras atitudes educativas, mencionadas espontaneamente pelos informantes.
O Questionário de Capacidades e Dificuldades11 (Strenghts and Difficulties Questionnaire - SDQ) é um questionário breve utilizado para rastreamento de problemas de saúde mental em crianças e jovens de quatro a 16 anos, com propriedades psicométricas satisfatórias. Seus 25 itens encontram-se distribuídos em cinco escalas: ansiedade e/ou depressão, problemas de conduta, hiperatividade/déficit de atenção, problemas de relacionamento com colegas e comportamento social positivo; sendo que a soma das primeiras quatro escalas representa o total de dificuldades. Pontos de corte determinam três categorias (clínica, limítrofe e normal) para cada uma das escalas. No presente estudo, foi aplicada aos pais/cuidadores a versão brasileira validada do SDQ.2
O Self-Report Questionnaire (SRQ-20) é um instrumento de rastreamento com 20 itens para identificar problemas de saúde mental em adultos da comunidade, com validade e confiabilidade atestada no Brasil.16 Pais/cuidadores com escore total acima de sete foram considerados positivos no SRQ-20.
O Questionário de Classificação Econômica Familiar foi desenvolvido pela Associação Brasileira de Empresas de Pesquisa (ABEP) para a determinação de classes econômicas, segundo o poder de consumo da família.3 Cinco classes sociais foram estabelecidas segundo o escore total obtido: A (25-34), B (17-24), C (11-16), D (6-10) e E (0-5).
Os desfechos clínicos de interesse para o estudo consistiram na presença de quatro tipos de problemas de saúde mental nas crianças (ansiedade/depressão, problemas de conduta, hiperatividade/déficit de atenção, problemas de relacionamento com colegas), além de um índice para o total de dificuldades. Casos clínicos e limítrofes nas escalas do SDQ foram considerados positivos para problemas de saúde mental. Os fatores de risco examinados incluíram: sexo da criança (masculino, feminino); nível socioeconômico familiar (classes A-B-C, D-E); crenças de pais/cuidadores sobre punição física (apanhar é educativo, crianças não precisam apanhar); atitudes educativas (bater com o cinto, bater com a mão, índice geral de punição física incluindo outras agressões físicas referidas espontaneamente pelos informantes) e pais/cuidadores com problemas de saúde mental (sim, não).
Para análise estatística foi utilizado o SPSS (versão 1998) e envolveu tabelas de freqüência simples, tabelas cruzadas com testes do qui-quadrado e modelos de regressão logística. O método passo-a-passo foi utilizado para reduzir os modelos iniciais até obter os melhores modelos associativos (modelos finais) para os desfechos clínicos de interesse. As variáveis que entraram nos modelos iniciais não apresentaram colinearidade. Para cada modelo inicial, foram testadas todas as interações possíveis, permanecendo no modelo final apenas aquelas que alcançaram significância estatística (p<0,05).
O presente estudo foi aprovado pelo Comitê de Ética em Pesquisa da Universidade Federal de São Paulo (Projeto nº 0259/04); Comitê de Ética Médica do Hospital das Clínicas da Faculdade de Medicina da Universidade de São Paulo (nº 277/99) e pelo Instituto de Psiquiatria de Londres (nº 058/99).
RESULTADOS
Das 454 crianças estudadas, 216 (47,6%) eram meninas e 238 (52,4%) meninos. A idade variou de sete a 11 anos (mediana =8 anos), sendo que a maioria dos estudantes tinha sete (36,8%), oito (33,3%) ou nove anos (23,6%) e a minoria 10 (5,3%) ou 11 anos (1,1%). Quanto ao tipo de escola, 72,5% estudava em escolas públicas urbanas (municipais ou estaduais), 20,0% em escolas particulares (todas urbanas) e apenas 7,5% em escolas rurais (todas públicas). As três primeiras séries do ensino fundamental contribuíram com percentagem semelhante de estudantes na amostra (30,0%, 34,8% e 35,2%, respectivamente). Quanto ao nível socioeconômico, a maior percentagem de alunos (68,1%) era proveniente da classe social C (32,6%) ou D (35,5%); apenas 7,0% era da classe A, 19,2% da B e a minoria da E (5,1%).
A grande maioria dos informantes (91,7%) era constituída por mães biológicas (81,3%) e pais biológicos (10,4%). Entre o total de pais/cuidadores, predominou o sexo feminino (89,2%) e a faixa etária de 20 a 49 anos (89,6%). Foram identificados problemas de saúde mental em 28,4% dos informantes (Tabela 1), mais freqüentes nas mulheres que nos homens (30,4% vs. 12,2%; p=0,008) e entre os informantes de classe social D-E que de classe A-B-C (46,2% vs. 16,3%; p<0,001).
Na amostra, 11,9% dos pais/cuidadores acreditavam que apanhar era educativo e 43,3% referiram ter punido fisicamente os filhos, sendo mais freqüente a atitude de bater com a mão (36,1%) que a de bater com o cinto (8,8%). Outras punições físicas foram referidas espontaneamente, destacando-se bater com chinelo e com vara. Atitudes educativas que não empregavam agressões físicas incluíram conversas com as crianças, deixar de castigo, gritar ou xingar e outras atitudes espontaneamente mencionadas, como falar com firmeza e chamar atenção (3,5%), olhar feio com cara de bravo (0,3%) e brigar verbalmente (0,4%) (Tabela 2).
Pais/cuidadores que acreditavam que apanhar era educativo tinham maior chance de agredir fisicamente os filhos que aqueles que não tinham essa crença (64,8% vs 42,5%; p=0,002; OR=2,5; IC 95%: 1,4-4,5). Pais/cuidadores que batiam com o cinto, em comparação aos que não utilizavam esse método educativo, mais freqüentemente batiam nos filhos com a mão (60,0% vs 33,8%; p=0,001) e desvalorizavam as crianças, não vendo nelas qualidades e/ou capacidades (15,0% vs 6,3%; p=0,04). Pais/cuidadores com problemas de saúde mental utilizavam o método educativo bater com a mão com maior freqüência em relação aos pais/cuidadores sem esses problemas (47,3% vs 31,7%; p=0,002; OR=1,9; IC 95%: 1,3-2,9).
Quanto à saúde mental dos escolares, 35,2% foram considerados positivos para problemas de saúde mental em geral, pois alcançaram nível clínico (22,7%) ou limítrofe (12,5%) na escala de total de dificuldades do SDQ. Os sintomas de ansiedade/depressão foram os mais freqüentes (47,8%), seguidos dos problemas de conduta (32,6%), hiperatividade/déficit de atenção (31,1%) e problemas no relacionamento com colegas (25,8%) (Tabela 3).
A presença de problemas de saúde mental em geral esteve associada ao sexo da criança (masculino), atitude educativa de bater com o cinto, problemas de saúde mental nos pais/cuidadores e condições socioeconômicas desfavoráveis (classe social D-E). Esses quatro fatores alcançaram nível de significância p<0,05 na análise univariada (Tabela 4).
Quanto aos fatores de risco para quatro tipos específicos de problemas de saúde mental nos escolares, observou-se que os meninos, quando comparados às meninas, apresentaram maior hiperatividade (37,0% vs 24,5%; p=0,004). As crianças de classe social D-E, quando comparadas às de classe A-B-C, apresentaram mais problemas de conduta (38,6% vs 28,5%; p=0,025) e problemas emocionais (sintomas de ansiedade e depressão) (53,8% vs 43,7%; p=0,034). Além disso, as crianças cujos pais/cuidadores batiam com o cinto, quando comparadas às que não sofriam esse tipo de agressão, apresentaram maior taxa de hiperatividade (45,0% vs 29,7%; p=0,046) e problemas de conduta (50,0% vs 30,9%; p=0,014). A atitude de bater com a mão não esteve associada a nenhum tipo de problema nos escolares.
Finalmente, quando os pais/cuidadores tinham problemas de saúde mental, as crianças apresentaram mais problemas de conduta (45,0% vs 27,7%; p<0,001), problemas emocionais (66,7% vs 40,3%; p<0,001) e dificuldades de relacionamento com colegas (34,1% vs 22,5%; p=0,01). A crença de pais/cuidadores de que apanhar é educativo não esteve associada a problemas de saúde mental nos escolares, porém a análise dessa variável ficou prejudicada pela falta de resposta objetiva em 7,2% dos informantes.
Foram incluídos na análise multivariada os seguintes fatores de risco: sexo da criança, atitude de bater com o cinto, problemas de saúde mental nos pais/cuidadores e classe social. Como os dois últimos fatores apresentaram colinearidade, não puderam ser incluídos no mesmo modelo. Portanto, os modelos A (contendo os fatores 1, 2 e 3) e B (contendo os fatores 1, 2 e 4) foram elaborados para cada um dos cinco desfechos clínicos de interesse para o estudo.
A Tabela 5 resume os resultados da análise de regressão logística, revelando que a atitude de bater com o cinto esteve associada a problemas de conduta e a problemas de saúde mental em geral (total de dificuldades) nos escolares, mesmo na presença dos demais fatores de risco. O sexo da criança (masculino) foi fator de risco para hiperatividade/déficit de atenção, problemas no relacionamento com colegas e problemas de saúde mental em geral, independentemente da influência dos demais fatores. Pais/cuidadores com problemas de saúde mental foi um fator de risco independente para todos os desfechos clínicos de interesse, exceto hiperatividade/déficit de atenção. Pertencer às classes sociais D-E foi fator de risco para problemas de conduta, ansiedade/depressão e problemas de saúde mental em geral, independentemente da influência dos demais fatores.
Foi constatada interação entre classe social e sexo da criança. Nas famílias de classe social D-E, os sintomas de ansiedade/depressão foram mais freqüentes nas meninas que nos meninos (63,1% vs 46,0%; p=0,02; OR=2,0; IC 95%: 1,1-3,6); já meninas e meninos de classe social A-B-C não diferiram quanto a essas taxas (40,9% e 46,4%, respectivamente) (modelo 2B). Nas famílias de classe social A-B-C, os problemas de relacionamento com colegas foram mais freqüentes nos meninos que nas meninas (31,9% vs 20,5%; p=0,03; OR=1,8; IC 95%: 1,1-3,2); já meninos e meninas de classe social D-E não diferiram quanto a essas taxas (21,0% e 29,8%, respectivamente) (modelo 4B).
DISCUSSÃO
O presente estudo teve como principal limitação a restrita definição de punição física de crianças no ambiente doméstico. Não foram utilizados questionários mais abrangentes para a identificação de tipos de atitudes educativas de pais/cuidadores. No entanto, trata-se de estudo populacional pioneiro no Brasil na avaliação de crenças e atitudes de pais/cuidadores, como possíveis fatores de risco para problemas de saúde mental na infância. Como os objetivos do presente estudo eram secundários na pesquisa principal,2 não foi possível introduzir muitos itens nos questionários para não tornar a entrevista longa demais, inviabilizando o trabalho como um todo. Também como em todos os estudos de corte transversal, as associações encontradas não representam necessariamente relações de causa e efeito entre os fatores de risco e o desfecho clínico de interesse para o estudo. Isso porque não é possível determinar seqüência temporal entre as variáveis mensuradas. Além disso, não houve tendenciosidade na amostra, já que a idade ou a série dos escolares não foram analisadas como fatores de risco.
As prevalências encontradas foram semelhantes àquelas obtidas com o instrumento de rastreamento Child Behavior Checklist (CBCL) em sub-amostra de estudo4 populacional (N=215; 7-11 anos) conduzido em bairro de baixa renda do município de Embu: prevalência de 36,7%, incluindo casos clínicos (19,5%) e limítrofes (17,2%). Maiores taxas foram observadas na sub-amostra de uma população de clínica pediátrica pública da cidade de São Paulo (N=195; 7-11 anos), com a aplicação do SDQ: prevalência de 56,9%, incluindo casos clínicos (45,1%) e limítrofes (11,8%).5 Taxas ainda mais elevadas foram obtidas com o CBCL em sub-amostra de crianças e adolescentes (N=38; 7-11 anos) encaminhados à triagem de um ambulatório de psiquiatria infantil do Rio de Janeiro: prevalência de 92,1%, incluindo casos clínicos (84,2%) e limítrofes (7,9%).6
As atitudes educativas de bater com a mão ou com o cinto foram compatíveis com dados de pesquisa8 realizada em países da América Latina. Esse estudo registrou taxas similares de palmadas dadas por mães e pais do Rio de Janeiro (11,9% e 33,8%, respectivamente) e de bater nas crianças com algum objeto duro entre mães e pais de Salvador, Bahia (7,9% e 11,8%, respectivamente).
Os pais/cuidadores que batiam com o cinto, também costumavam desvalorizar as crianças, não vendo nelas qualidades e/ou capacidades. Essa observação concorda com a literatura, indicando que os pais que freqüentemente recorrem a métodos educativos de punição física são aqueles que não têm bom relacionamento afetivo com os filhos e não costumam abraçá-los ou brincar com eles.14
Pais/cuidadores que acreditavam que apanhar era educativo tinham maior chance de agredir fisicamente os filhos que aqueles que achavam que as crianças não precisavam apanhar. É preciso lembrar que a família se encontra imersa em ambiente social e cultural específico. Nesse ambiente, a crença sobre o castigo físico como um método apropriado para educar e corrigir as crianças é freqüentemente compartilhada. Tal crença está provavelmente ligada ao desconhecimento e à desvalorização de outros métodos educativos, como carinho, reconhecimento e recompensa.19
Uma crítica freqüente às pesquisas sobre punição física na infância refere-se à definição pouco específica do termo, que não discrimina as agressões físicas com e sem risco de lesão corporal significativa. Essa falta de especificidade do termo impossibilita a avaliação das conseqüências das palmadas, atitude educativa tão comum entre os pais das mais diversas culturas. No presente estudo, a utilização do método educativo de bater com a mão não esteve associada a nenhum tipo de problema de saúde mental nas crianças. No entanto, quando os pais/cuidadores batiam com o cinto, aumentava o risco das crianças apresentarem problemas de conduta e problemas de saúde mental em geral, mesmo na presença de outros fatores de risco. De fato, dados de estudo epidemiológico dos transtornos mentais da infância e adolescência (Epidemiology of Child and Adolescent Mental Disorders Study7 - MECA) mostraram que numa amostra probabilística de crianças e jovens da população geral de Nova York (EUA) e Porto Rico (n=665, 9-17 anos), o abuso físico esteve associado a transtornos de conduta, episódios de depressão maior e transtornos de ansiedade. A associação entre abuso físico e transtorno de conduta também foi observada entre adolescentes, em estudo12 de caso-controle realizado em Long Island, Nova York (n=198; 12-18 anos). A análise de regressão logística, utilizada nesses dois estudos, mostrou que o abuso físico esteve associado ao transtorno de conduta, independentemente da presença de outros fatores de risco, como sexo, idade, problemas de saúde física, abuso sexual, antecedentes psiquiátricos familiares e renda familiar deficitária. Recentemente, uma ampla revisão sistemática10 da literatura mostrou que a punição corporal, utilizada pelos pais como método educativo, está associada a problemas de saúde mental, não somente na infância e adolescência (comportamento anti-social, depressão), mas também na vida adulta (atos agressivos e criminosos, comportamento anti-social, alcoolismo, depressão).
Além da punição física grave (bater com o cinto), outros fatores estiveram associados a problemas de saúde mental nos escolares, como os problemas de saúde mental nos pais/cuidadores. Os dados confirmam os achados de Costello et al,4 que verificaram que além da punição física grave, os antecedentes familiares de doença mental estavam associados a transtornos psiquiátricos nas crianças e adolescentes de amostra populacional de nove a 17 anos de regiões rurais americanas. Os problemas mentais em pais/cuidadores também estiveram associados a problemas de conduta, ansiedade/depressão, problemas no relacionamento com colegas e problemas de saúde mental em geral nos escolares. Pesquisas realizadas em países de diferentes continentes mostraram que os pais com maior chance de abusar fisicamente dos filhos são aqueles com baixa auto-estima, controle deficitário dos impulsos, comportamento anti-social e problemas de saúde mental. Essas características dos pais comprometem a capacidade de cuidar adequadamente das crianças e estão associadas à inabilidade de lidar com situações de estresse e menor acesso a sistemas de suporte social.14
Ser do sexo masculino foi fator de risco para hiperatividade/déficit de atenção, problemas no relacionamento com colegas e problemas de saúde mental em geral, independentemente da influência dos demais fatores examinados. Segundo a Organização Mundial da Saúde,14 em diversos países, os meninos correm maior risco de sofrer punições físicas graves. Uma possível explicação para esse fato seria que os meninos costumam ser mais agitados e agressivos que as meninas, fazendo os pais perderem a paciência com maior freqüência e reagindo com métodos disciplinares mais rigorosos. Na amostra estudada, os meninos apresentaram mais hiperatividade que as meninas, porém apanharam de cinto na mesma proporção que as meninas. As atitudes educativas dos pais podem variar segundo o sexo da criança, em função dos valores atribuídos a meninos e meninas em cada sociedade. Portanto, esses valores merecem maior investigação em futuras pesquisas.
Pertencer às classes sociais D-E também foi fator de risco para problemas de conduta, ansiedade/depressão e problemas de saúde mental em geral, independentemente da influência dos demais fatores de risco examinados. De fato, estudos realizados em vários países têm mostrado a forte associação entre pobreza e maus-tratos na infância. Pesquisas mostram que a pobreza crônica afeta as crianças pelo seu impacto no comportamento dos pais e pela escassez de recursos disponíveis na comunidade.14 A pobreza envolve inúmeras situações de estresse, como desemprego, discórdia conjugal grave, problemas de saúde mental nos pais e utilização de métodos educativos inadequados, que põem em risco a saúde mental das crianças e adolescentes.9 A insuficiência de recursos sociais e econômicos cria tensão dentro da família, fazendo com que as crianças sejam consideradas uma carga e motivo de incômodo para os pais.19 Em tais circunstâncias, as crianças estão mais propensas a sofrer agressões físicas no ambiente doméstico.
A forma como a experiência da punição física afeta a saúde mental de uma criança depende de seu nível de desenvolvimento, da gravidade e freqüência das agressões físicas sofridas e do acesso a serviços de saúde mental que possam prestar assistência às vítimas e seus familiares. O abuso físico crônico costuma resultar em quadros psicopatológicos mais graves,2 enquanto o poder de recuperação da criança depende de sistemas de proteção humanos operando a seu favor.3 Redes sociais e comunidades coesas e solidárias são fatores de proteção às crianças vítimas de violência, mesmo quando o nível de escolaridade dos pais é baixo e as condições socioeconômicas são deficitárias.14
Em relação aos fatores de risco para ansiedade/depressão e problemas de relacionamento com colegas, o presente estudo constatou uma interação entre classe social e sexo da criança. Porém, esse dado deve ser analisado com cautela, já que o nível de significância p<0,05 não exclui a possibilidade da mesma ter sido identificada simplesmente devido ao acaso, pois múltiplos testes estatísticos foram realizados em busca de interações significantes.
Em conclusão, a alta prevalência de problemas de saúde mental em escolares e sua associação com punição física grave e problemas de saúde mental nos pais/cuidadores indicam a necessidade de intervenções psicoeducacionais para reduzir o abuso físico e os problemas de saúde mental na infância. Também é recomendável a aplicação de instrumentos de rastreamento aos pais/cuidadores das crianças vítimas de violência física no ambiente doméstico, visando o tratamento precoce dos problemas de saúde mental na infância.
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Endereço para correspondência
Isabel A. S. Bordin
Setor de Psiquiatria Social - Unifesp
Rua Botucatu, 572 Cj. 101
04023-061 São Paulo, SP, Brasil
E-mail: fbordin@dialdata.com.br
Baseado em dissertação de mestrado apresentada à Escola Paulista de Medicina, Universidade Federal de São Paulo, em 2004.
1 Bordin IAS, Paula CS, Duarte CS, Fernandes M. Saúde mental e violência doméstica. Resumo em Anais do XIX Congresso Brasileiro de Psiquiatria, Recife; 2001. p. 299.
2 Fleitlich-Bilyk BW. The prevalence of psychiatric disorders in 7-14-year olds in the southeast of Brazil [thesis]. Londres: Department of Child and Adolescent Psychiatry. Institute of Psychiatry. King's College. London University; 2002.
3 Associação Brasileira de Empresas de Pesquisa (ABEP). Critério de classificação econômica Brasil [on-line]; 2003. Disponível em: http://www.abep.org/codigosguias/ABEP_CCEB.pdf [3 set 2005]
4 Bordin IAS, Paula CS, Nascimento R, Abreu SR, Duarte CS. Estudo brasileiro de violência doméstica contra a criança e o adolescente (BrazilSAFE) [Relatório científico final apresentado à Fundação de Amparo à Pesquisa do Estado de São Paulo (Fapesp) - Processo nº 00/14555-4]. São Paulo: Fapesp; 2004.
5 Ribeiro EL. Problemas de saúde mental da criança em idade escolar: oportunidades e possibilidades de abordagem na atenção básica [tese de doutorado]. São Paulo: Faculdade de Saúde Pública da Universidade de São Paulo; 2003.
6 Brasil HHA. Desenvolvimento da versão brasileira da K-SADS-PL (Schedule for Affective Disorders and Schizophrenia for School Aged Children Present and Lifetime Version) e estudo de suas propriedades psicométricas [tese de doutorado]. São Paulo: Universidade Federal de São Paulo. Escola Paulista de Medicina; 2003.
Artigo original:
http://www.scielosp.org/scielo.php?script=sci_arttext&pid=S0034-89102005000500004&lang=pt&tlng=pt