Sérgio K. Tengan; Anne K. Maia
18 de janeiro de 2010
Psicoses funcionais na infância e adolescência
Sérgio K. Tengan; Anne K. Maia
Professor(a) dos cursos de Medicina e Fonoaudiologia, Faculdade de Ciências Médicas, Irmandade da Santa Casa de Misericórdia de São Paulo (ISCM-SP). Psiquiatra instrutor(a), Centro de Atenção Integrada à Saúde Mental, ISCM-SP
RESUMO
OBJETIVO: Revisar a literatura acerca das psicoses funcionais na infância e adolescência e permitir ao pediatra a possibilidade de reconhecer esta patologia em sua rotina de trabalho.
FONTES DOS DADOS: As informações foram obtidas através de livros textos clássicos de psiquiatria, além de pesquisa nas bases de dados MEDLINE e Lilacs no período de 1993 a 2003.
SÍNTESE DOS DADOS: O artigo foi estruturado em tópicos, procurando-se definir e classificar as psicoses na infância e adolescência, sendo a esquizofrenia a principal representante deste grupo. As dificuldades em seu diagnóstico na infância são ressaltadas, e as principais linhas de tratamento são abordadas.
CONCLUSÃO: A esquizofrenia com início na infância é uma patologia rara, quase 50 vezes menos freqüente quando comparada com pacientes que iniciaram a doença com idade acima de 15 anos. É uma doença distinta do autismo infantil não somente por questões conceituais, mas por um embasamento na fenomenologia, genética, quadro clínico e neurológico associado.
Palavras-chaves: Psicoses, esquizofrenia, criança, adolescente.
Introdução
Psicose pode ser definida como uma desordem mental na qual o pensamento, a resposta afetiva e a capacidade em perceber a realidade estão comprometidos. Somado a estes sintomas, o relacionamento interpessoal costuma estar bastante prejudicado, o que interfere substancialmente no convívio social. As características clássicas da psicose são: prejuízo em perceber a realidade de forma adequada, presença de delírios, alucinações e ilusões1.
O termo "psicose" é difícil de ser precisado, e algumas vezes somos obrigados a reportar qual referencial estamos adotando: psicodinâmico, psiquiátrico ou de determinado autor. Existe uma série de diferentes conceitos para o termo, tais como perda do contato afetivo com a realidade, afastamento temporário ou definitivo da realidade objetiva, uma perturbação psíquica grave que leva eventualmente à desintegração das estruturas de personalidade, um exagero patológico das tendências constitucionais, uma desorganização extensa da personalidade, um severo distúrbio mental ou reações patológicas, as quais se alteram e envolvem todas as formas de adaptação, o resultado final da confluência de múltiplos fatores nociceptivos sobre o aparelho psíquico ou a personalidade que vai aos pedaços2.
A existência de psicoses na infância durante muitos anos foi questionada e até mesmo negada, principalmente devido a questões conceituais e às diferentes classificações existentes, que sofreram modificações ao longo do tempo3,4. Um desses questionamentos era sobre a possibilidade remota dos delírios: acreditava-se que, devido ao fato de a criança não possuir uma estrutura egóica totalmente estruturada, ela era incapaz de apresentar delírios. Além do mais, como seria possível diferenciar um quadro psicótico na infância do mundo fantasioso da fase normal do desenvolvimento? Entretanto, as psicoses infantis são entidades hoje bastante conhecidas; sua apresentação clínica na infância difere da forma adulta, mas ambas constituem a mesma patologia.
Classificação das psicoses
As psicoses funcionais são assim denominadas por oposição às psicoses ditas orgânicas (para as quais se poderia detectar uma causa orgânica) e às psicoses psicogênicas (que estariam claramente associadas a um fator psicodinâmico desencadeante). Nesta classificação, o enfoque é consistente com a etiologia do quadro, sendo a esquizofrenia a principal representante deste grupo. Uma outra classificação seria dividir as psicoses de acordo com o início e a duração dos sintomas: agudas ou crônicas4. A importância, além do tempo, seria em relação ao prognóstico do quadro, mais reservado para as psicoses crônicas.
Cabe aqui ressaltar que, durante muitos anos, o autismo infantil foi considerado como um quadro psicótico e classificado como uma psicose crônica, de início muito precoce. Ainda nos dias atuais, vários autores o consideram como uma psicose, principalmente aqueles de linha mais psicanalítica. Mesmo na psiquiatria, existiu e ainda existe um posicionamento de que a esquizofrenia na infância e o autismo infantil seriam a mesma entidade, sendo que os critérios diagnósticos são praticamente os mesmos para esses autores3. Porém, o consenso atual é de que trata-se de entidades distintas, não somente por questões teóricas, mas também por um embasamento na fenomenologia, genética, quadro clínico e quadro neurológico associado5-7.
Poderíamos, então, dividir os principais quadros psicóticos em:
- Psicoses agudas: transtorno psicótico breve (psicoses reativas ou psicogênicas);
- Psicoses agudas e recorrentes (psicose ciclóide);
- Psicoses induzidas por substância ou psicoses orgânicas agudas.
- Psicoses crônicas: esquizofrenia;
- Transtorno esquizoafetivo;
- Transtorno esquizofreniforme;
- Transtorno delirante persistente.
Esquizofrenia na infância e adolescência
A esquizofrenia é uma patologia que leva a distorções no pensamento, percepção e emoções (Organização Mundial da Saúde, 1992)8. Na sua "forma clássica" (forma paranóide), estão presentes delírios e alucinações auditivas e visuais. As descrições desses estados de "loucura" são as mais variadas e, muitas vezes, provocam um fascínio muito grande, não só para pessoas que estudam psiquiatria, mas também para a sociedade. Os delírios muitas vezes possuem grande complexidade na organização das idéias e, se vistos por um determinado ângulo, são passíveis de compreensão, embora não se exclua a possibilidade de um quadro delirante. Poderíamos citar alguns exemplos desses quadros delirantes: "Durante a madrugada, seres extraterrenos implantaram um chip em meu corpo; estou sendo controlado durante as 24 horas do dia; cada passo meu é observado por esses seres, e tenho a missão de ajudá-los", ou então "Estou sendo perseguida pelos traficantes do meu bairro, doutor; eles sabem que eu os vi passando a droga; agora eles me ameaçam a todo instante; não posso assistir TV, pois eles colocaram uma câmera dentro da TV que observa todo o movimento da casa; mesmo quando venho às consultas, eles estão a par de tudo, pois eles colocaram câmeras aqui também e estão ouvindo tudo, eu não tenho mais paz!". Com a evolução da esquizofrenia, a convivência com a família e grupos sociais torna-se impossível, fazendo com que o paciente fique excluído e sendo forçado pela família a procurar tratamento.
A esquizofrenia acomete cerca de 1% da população; normalmente, a idade de início está entre 15 e 30 anos de idade9. O termo "esquizofrenia de início precoce" se refere à idade de início anterior a 17-18 anos, e a de início muito precoce consiste em início antes dos 13 anos de idade. É uma doença rara na infância e, conforme avança a adolescência (próximo dos 11 anos), esses casos tornam-se mais expressivos. Apesar de existirem alguns relatos com idade inferior a 5 anos, estes são extremamente raros5-10. Estima-se que cerca de 0,1 a 1% dos casos de esquizofrenia tenha iniciado antes dos 10 anos de idade e aproximadamente 4% antes dos 15 anos de idade5-9. Talvez um subdiagnóstico da doença possa ocorrer devido a uma sobreposição de sintomas com outras patologias psiquiátricas. Alguns diagnósticos em psiquiatria infantil não são muito precisos, uma vez que a criança é um ser em desenvolvimento; esses quadros só irão se configurar mais claramente na fase adulta. Isso ocorre principalmente com os transtornos do humor e as psicoses. Quando se estuda o transtorno afetivo bipolar em adultos que iniciaram a doença na infância, observa-se que praticamente metade desses pacientes recebeu o diagnóstico de esquizofrenia quando ainda eram crianças, ou seja, na verdade, o diagnóstico foi feito erroneamente, evidenciando a dificuldade desses diagnósticos9,11,12.
Um outro ponto importante em relação ao diagnóstico de esquizofrenia na infância são os critérios diagnósticos utilizados. A Organização Mundial da Saúde8 e a Associação Americana de Psiquiatria13 utilizam os mesmos critérios diagnósticos para crianças e adultos. Algumas críticas têm sido feitas a respeito da utilização dos mesmos critérios para as diferentes faixas etárias. Primeiramente, por considerar-se que a esquizofrenia de início na infância fosse uma entidade distinta da forma adulta, onde os quadros delirantes não poderiam ocorrer porque as estruturas psíquicas e cognitivas ainda não estariam totalmente formadas6. Outro ponto seria a presença de alucinações ou delírios: se pudessem estar presentes, como poderiam ser aferidos, uma vez que, no universo da criança, muitas vezes esses relatos podem fazer parte de suas fantasias? Na realidade, os estudos das psicoses com início na infância evidenciam que as alucinações e delírios estão presentes em crianças na mesma proporção que em adultos; entretanto, sua expressão difere da forma adulta, em conseqüência das características cognitivas das diferentes faixas etárias5,14. Outros trabalhos também revelam que a utilização desses mesmos critérios para o diagnóstico de esquizofrenia na infância tem um alto valor preditivo, sugerindo uma continuidade dos sintomas até a idade adulta11.
Etiologia da esquizofrenia
Aspectos genéticos e neurobiológicos
Para abordar a transmissão genética de doenças mentais, é inevitável ter de diferenciar os aportes congênitos e ambientais na etiopatogenia dos transtornos. Essa distinção, já difícil e polêmica para a psiquiatria de adultos, é ainda mais difícil e polêmica na psiquiatria de crianças: qual a porcentagem da doença a ser atribuída a fatores genéticos, congênitos, estruturais? E qual a correspondente porcentagem, quanto resta a ser atribuído a fatores ambientais, estresse familiar, maus tratos ou deficiência no vínculo primordial mãe-bebê? Obviamente são respostas impossíveis de serem dadas com precisão. Cada escola de pensamento, cada período de evolução da psicopatologia da infância tem respondido mais ou menos a essas perguntas, seguindo a tendência do momento.
Outra complicação na psiquiatria da infância é a própria nomenclatura, a começar pelo termo psicose ou psicoses da infância: elas englobam ou não o autismo e os transtornos globais do desenvolvimento? O estado atual dos conhecimentos e as investigações em psicopatologia e nosografia das doenças mentais em crianças aponta para uma clara distinção entre os transtornos invasivos do desenvolvimento (TID), presentes desde o início (senão explícitos, pelo menos latentes), e os transtornos psicóticos, que, assim como nos adultos, representam uma quebra num funcionamento prévio15.
Assim é que o presente artigo sobre as psicoses se insere entre outros que tratarão dos TID ou TGD (transtornos globais do desenvolvimento), dentre os quais está o autismo. Em outras palavras, a rigor aqui não se trata de autismo. Mesmo assim, há algumas palavras sobre a genética deste intrigante e tão sofrido quadro da primeira infância15-17.
Nos últimos decênios, vinha se travando uma discussão acirrada entre o lado dito organicista e o lado psicanalítico, ou talvez psicodinâmico. De onde provinham os sintomas tão peculiares e tão graves dessas crianças ensimesmadas, alheias? De uma incapacidade fisiológica cerebral para se comunicarem ou de uma rejeição psicológica, uma recusa ativa ao contato com os outros?15 Do hardware ou do software? Nos últimos anos, essa discussão perdeu o sentido, uma vez que se comprovou inegavelmente a causa genética desse transtorno. Ou melhor, o padrão de herança familiar genético é que foi comprovado, pois, enquanto não se localizar com precisão qual cromossomo e qual(is) gene(s) está(ão) envolvido(s), ainda se estará investigando a causa propriamente dita. O que se pode afirmar é que a causa NÃO é psicológica, mesmo se a evolução, a patoplastia e a apresentação do quadro são únicas, estas sim sendo "causadas" pelo ambiente psicológico16.
Uma pesquisa da psiquiatra brasileira Mônica Zilbovicius sobre um grupo de 21 crianças com autismo revelou uma "hipoperfusão bem localizada, no giro temporal superior e no sulco temporal superior"17.
Na esquizofrenia, os fatores biológicos são primários, e os fatores psicossociais têm influência muito importante5,6. O componente genético é comprovado por estudos de família, adoção e gêmeos. Atualmente, pesquisas mais refinadas em biologia molecular e técnicas moleculares mapeiam os genes que tornam os indivíduos suscetíveis à esquizofrenia18.
Os fatores de risco pré-natais e perinatais para a esquizofrenia são pesquisados, tentando identificar os comprometimentos cerebrais no neurodesenvolvimento. Complicações de gravidez e de parto, exposição pré-natal a viroses e achados neuropatológicos, como anormalidades na citoarquitetura5,18, são comprovadamente associados a um maior risco de desenvolver esquizofrenia. Assim, é consistente o achado de diminuição volumétrica do cérebro, aumento dos ventrículos laterais, além de diminuição do lobo temporal na região do hipocampo em pacientes esquizofrênicos adultos. As alterações histopatológicas são sugestivas mais de disgenesia do que de degeneração, como redução de neurônios corticais e periventriculares, ausência de células de gliose e alteração da posição das células piramidais18.
Quanto à neuroquímica, a principal teoria é a hipótese dopaminérgica, uma vez que a maioria dos neurolépticos ou antipsicóticos são bloqueadores de dopamina7; esta teoria sugere um aumento na atividade do sistema dopaminérgico mesolímbico, importante na modulação da aquisição, motivação e emoção.
Além da dopamina, outras substâncias biogênicas provavelmente também estão envolvidas: a noradrenalina, a serotonina e outros neuropeptídeos neurotransmissores. Estudos de neuroimagem com PET e SPECT apontam receptores de neurotransmissores em diferentes regiões cerebrais, além de confirmarem o bloqueio de receptores D2 pelos neurolépticos (talvez D4 com a clozapina)7.
A abordagem pelo neurodesenvolvimento vem sendo mais estudada e pode ser compreendida ao menos por dois aspectos19: desenvolvimento normal de início, submetido a uma lesão no período mais crítico do desenvolvimento (trauma perinatal, infecção viral congênita), alterando a citoarquitetura; ou desenvolvimento já de início alterado, não aparente nos primeiros anos e evidenciado durante a maturação por algum fator estressor. Esta segunda hipótese explica por que, dos indivíduos submetidos às mesmas condições patogênicas, apenas aqueles com vulnerabilidade maior evoluem para esquizofrenia.
Os raros estudos bioquímicos19 em crianças portadoras de esquizofrenia são pouco conclusivos. Por exemplo, a comparação de níveis plasmáticos de beta-endorfina imunorreativa em crianças autistas, esquizofrênicas e normais não mostra alterações em crianças com esquizofrenia não tratada e mostra aumento dos níveis de beta-endorfina em associação com a administração de neurolépticos19. Outro estudo comparou o metabolismo de catecolamina e a dopamina-beta-hidroxilase plasmática, encontrando diferença significativa no subgrupo dos pacientes com esquizofrenia - nível baixo de pDBH19.
A neurobiologia da esquizofrenia de início na infância ainda precisa ser melhor estudada5,6, tanto para melhorar a definição e o entendimento da patologia quanto para melhorar a abordagem terapêutica e o prognóstico.
Diagnóstico e quadro clínico
Os critérios diagnósticos utilizados para esquizofrenia pela Associação Americana de Psiquiatria (DSM-IV, 1994)13 e pela Classificação Internacional de Doença da Organização Mundial da Saúde (CID-10, 1992)8 são bastante semelhantes entre si, e ambos ressaltam sintomas equivalentes quando de início na infância. A Tabela 1 mostra os critérios diagnósticos pelo DSM-IV para esquizofrenia. Para o diagnóstico, são necessários pelo menos dois dos seguintes sintomas: delírios, alucinações (sintomas positivos), discurso desorganizado, comportamento grosseiramente desorganizado ou catatônico ou sintomas negativos (apatia marcante, pobreza do discurso, embotamento ou incongruência de respostas emocionais, retraimento social). Esses sintomas iniciais duram pelo menos 1 mês (ou menos se tratados com sucesso). É importante ressaltar que o diagnóstico é evolutivo, sendo necessário um mínimo de 6 meses de doença, incluindo a fase ativa.
Subtipos de esquizofrenia
Podemos subdividir a esquizofrenia em cinco tipos, de acordo com a sintomatologia predominante na ocasião da avaliação. São eles: tipo paranóide, desorganizado ou hebefrênico, catatônico, indiferenciado ou simples e tipo residual8,13. A esquizofrenia paranóide é o tipo mais comum; no quadro clínico, predominam delírios e alucinações, além da perturbação do afeto e pragmatismo. No tipo desorganizado ou hebefrênico, a característica principal é a desorganização do pensamento; o discurso é incoerente, as associações de idéias são ilógicas; o prognóstico é ruim, principalmente pelo rápido desenvolvimento de sintomas negativos, como embotamento afetivo e perda da volição. A forma catatônica se caracteriza pelos sintomas psicomotores proeminentes, que podem se alternar, como hipercinesia, estupor ou obediência automática e negativismo. Atitudes e posturas forçadas podem ser mantidas por longos períodos, e episódios de agitação extrema podem ocorrer. Por razões desconhecidas, esta forma de esquizofrenia tem sido pouco vista nos dias atuais. A forma indiferenciada é a mais complicada de ser caracterizada; o quadro preenche critérios para esquizofrenia, mas não satisfaz os critérios para o tipo paranóide, desorganizado ou catatônico. Muitas vezes, esta forma de esquizofrenia é confundida com transtorno de personalidade. O tipo residual é a forma crônica da doença, onde se percebe uma progressão clara dos sintomas psicóticos da esquizofrenia; no estágio mais tardio, há predominância de sintomas negativos.
Particularidades da esquizofrenia na infância
A esquizofrenia com início na infância tem algumas particularidades quando comparada à de início na fase adulta. Quando iniciada antes dos 12 anos de idade, está fortemente associada a problemas de comportamento. Essas crianças têm sido descritas como socialmente desadaptadas, estranhas e isoladas, além de apresentarem distúrbios de comportamento e atraso no desenvolvimento neuropsicomotor5,9,11. Apesar de muitas crianças apresentarem este tipo de sintomatologia ou queixa, estes sintomas não são e não devem servir como parâmetro para o diagnóstico de esquizofrenia. Embora não falemos em personalidade nesta fase de vida, esses dados chamam a atenção, e parece que são precursores da esquizofrenia na infância, constituindo um continuum com os sintomas negativos da doença11. Nos estudos retrospectivos de pacientes com esquizofrenia com início na idade adulta, tem-se observado um perfil psicológico semelhante, somado ao abuso de substancias psicoativas20.
Sintomas produtivos
Na esquizofrenia com início na infância, os distúrbios do pensamento, principalmente desorganização de idéias, delírios, alucinações e afeto com pouca ressonância são freqüentemente observados. A presença de tais sintomas parece não variar com a idade, porém sua expressão varia, havendo uma maior riqueza nas descrições conforme avança a idade5,6,9.
Início insidioso
A esquizofrenia de início na infância costuma ter um início mais insidioso, muitas vezes difícil de ser delimitado6,9. Normalmente, os sintomas persistem por 1 ano antes de serem diagnosticados, o que muitas vezes acarreta prejuízo para a criança e a família, já que o diagnóstico é feito muito tardiamente.
Predominância do sexo masculino
A maior diferença entre a esquizofrenia de início na infância e na idade adulta é a preponderância do sexo masculino5,6. Enquanto na população adulta a proporção entre homens e mulheres é praticamente a mesma, na população infantil os meninos são duas vezes mais acometidos que as meninas. Vários estudos têm apontado diferenças no curso da doença entre os sexos. A esquizofrenia em homens inicia-se de um modo geral mais cedo que em mulheres, tem um maior comprometimento cognitivo e, de modo geral, uma pior evolução, além de uma pior resposta aos neurolépticos6,21.
Cognição e linguagem
A deterioração mental nos pacientes com esquizofrenia é quase inevitável22. Aproximadamente 10 a 20% das crianças com esquizofrenia apresentam rebaixamento de inteligência9,11,22. A deterioração mental é significativamente maior se comparada com as psicoses não-esquizofrênicas11. Além do déficit cognitivo, observa-se déficit na atenção e no aprendizado e abstração, problemas comuns em pacientes com esquizofrenia23. Com os avanços nos recursos terapêuticos, estes sintomas podem ser amenizados, sendo muito importante o tratamento para esses pacientes21.
As deficiências de comunicação como parte da sintomatologia são freqüentes e requerem cuidado na avaliação do conteúdo do pensamento e presença de alucinações nessas crianças, uma vez que podem ser confundidas com distúrbio de linguagem. Nesses casos, a observação do comportamento da criança é crucial. Nas crianças psicóticas, a deterioração mental e seu funcionamento global são visíveis9.
Enurese secundária
Tem uma incidência maior neste grupo sem uma causa fisiológica envolvida e pode ser considerada um sintoma negativo da psicose11.
Diagnóstico diferencial
Quando se suspeitar de um diagnóstico de esquizofrenia na infância, é sempre importante ter em mente alguns pontos. O primeiro é a idade de início do quadro, lembrando que a esquizofrenia é um quadro evolutivo e tem uma história prévia aparentemente normal. São extremamente raros os quadros iniciados antes dos 7 anos de idade. Outro ponto importante é o histórico familiar, onde com freqüência se observam outros indivíduos afetados. Não é um diagnóstico simples e pode ser difícil de diferenciar de outros quadros, principalmente o transtorno afetivo bipolar, sendo necessárias, muitas vezes, reavaliações ao longo do tempo.
Transtornos do humor
O transtorno afetivo bipolar na infância com freqüência tem uma apresentação muito semelhante às psicoses infantis. O quadro de mania do transtorno afetivo bipolar na infância muitas vezes se apresenta com delírios e alucinações, o que confunde seu diagnóstico. Aproximadamente metade dos pacientes com transtorno bipolar com início na adolescência teve erroneamente o diagnóstico de esquizofrenia no passado, revelando grande dificuldade deste diagnóstico na infância e adolescência6,9,12. Com o tratamento medicamentoso da mania, o quadro tende a remitir, e aparentemente não se observa "defeito" após esse episódio. Normalmente, na esquizofrenia, após o quadro psicótico, o indivíduo tende a apresentar certos prejuízos, como déficit no contato social e diminuição da volição - os chamados sintomas negativos da doença21.
Transtorno global do desenvolvimento (autismo infantil/síndrome de Asperger)
O autismo infantil é uma entidade distinta da esquizofrenia com início na infância, não apenas por questões conceituais, mas também com base na fenomenologia, genética, correlações biológicas e quadros neurológicos associados, que o distinguem da esquizofrenia5. Normalmente, o diagnóstico é estabelecido por volta dos 3 anos de idade, apesar de se poder concluí-lo antes dessa idade. De um modo geral, não é difícil diferenciar as duas entidades, uma vez que, na esquizofrenia, as crianças não apresentam as anormalidades de fala encontradas no autismo, como ausência de fala ou fala sem papel de comunicação
Quadros orgânicos
É de extrema importância que as psicoses funcionais sejam diferenciadas dos quadros orgânicos, sendo muitas vezes necessária uma investigação maciça de possíveis causas, que incluem não só uma história clínica detalhada e exame físico, mas muitas vezes também exames laboratoriais e de imagem. O delirium (diferentemente de delírio) é um quadro confusional orgânico agudo que se caracteriza por déficit de atenção, confusão, flutuações no estado de consciência ao longo do dia, muitas vezes com alucinações, ilusões e, às vezes, episódios de agitação psicomotora. De um modo geral, o quadro tem início agudo e, muitas vezes, quando instalado, é confundido com quadro psicótico. As causas de delirium são amplas, necessitando de ampla investigação clínica. Em um número significativo de casos, não se encontra um fator causal para o delirium, o que não afasta uma etiologia orgânica24. É um quadro grave, muitas vezes podendo levar o indivíduo à morte. Uma vez corrigida a causa, há remissão do quadro, podendo o indivíduo retornar ao estado normal ou ficar com algum déficit cognitivo ou outra seqüela. As causas dos são bastante variadas: quadros confusionais pós-ictais das epilepsias, lesões no sistema nervoso central (tumores, traumatismos, malformações, outros), doenças degenerativas (coréia de Huntington, distúrbios de depósito de lipídios), distúrbios metabólicos (endocrinopatias, doença de Wilson), tóxicos (abuso de anfetaminas, cocaína, alucinógenos, fenciclidina e solventes, cada vez mais freqüentes em nosso meio), além do uso de medicações, como os corticosteróides e os anticolinérgicos, e intoxicação por metais pesados. Doenças infecciosas, como meningite, encefalite e a infecção pelo vírus HIV, também devem ser descartadas9. Os quadros demenciais na infância, que poderiam ser confundidos com a esquizofrenia, são extremamente raros; além do mais, quando ocorrem, são acompanhados por marcado declínio intelectual e alterações neurológicas9.
Transtornos do comportamento, quadros emocionais e dissociativos
Crianças com problemas de comportamento ou emocionais graves algumas vezes apresentam atitudes que parecem pouco adequadas ou mesmo bizarras aos nossos olhos, as quais são descritas como "sintomas psicóticos". Quando comparadas às psicoses infantis, não se observam delírios ou alucinações. Normalmente, os comportamentos da criança estão associados a questões emocionais sérias, que requerem uma investigação psicodinâmica cuidadosa, algumas vezes envolvendo questões de abuso ou negligência contra a criança. A abordagem nesses casos muitas vezes exige da equipe de saúde atitudes no sentido de proteger a criança.
Transtornos de comunicação
Crianças com distúrbios da fala e linguagem podem parecer ter alterações no pensamento e, com isso, ser confundidas com crianças psicóticas. Uma avaliação cuidadosa mostra que não há alterações no conteúdo do pensamento, e outros sintomas psicóticos, como delírios e alucinações, estão ausentes9. Outros fatores que muitas vezes confundem esses quadros são as alterações de comportamento associadas.
Outras psicoses
A esquizofrenia na infância se diferencia das demais psicoses por ter um caráter mais crônico e com maior comprometimento não só intelectual, mas em diversas áreas. De um modo geral, as psicoses reativas ou psicogênicas têm uma resposta bastante favorável e rápida à medicação. Um fator estressor é facilmente observado nessas crianças. As psicoses reativas têm sido descritas com maior freqüência em países em desenvolvimento ou em imigrantes, onde os fatores externos favorecem o desenvolvimento da psicose6.
Outros quadros
Os transtornos de personalidade são entidades diagnósticas que praticamente só são utilizadas na população adulta, uma vez que, sendo a criança um ser em desenvolvimento, ainda não possui as estruturas de personalidade totalmente formadas. Entretanto, alguns transtornos de personalidade, como o transtorno de personalidade anti-social, têm como requisito uma história de transtorno de conduta anterior aos 15 anos. Na verdade, o que parece é que os transtornos de personalidade se iniciam na infância e se estendem até a idade adulta, sendo o continuum de uma mesma entidade27. Sob esses aspectos, os transtornos de personalidade s, esquizóide, esquizotípica e paranóide seriam quadros importantes no diagnóstico diferencial da esquizofrenia na infância9,27.
Curso e prognóstico
O curso da esquizofrenia é bastante variado e influenciado por diversos fatores, como idade de início, tipo de esquizofrenia, gênero, além de fatores individuais e ambientais que podem interferir em seu prognóstico6-21. Normalmente, o curso da doença é flutuante, inicialmente com uma fase prodrômica, seguida por uma fase ativa, de crise, com sintomatologia variada, onde normalmente é feito o diagnóstico. Com a evolução, episódios de crise, recuperação e fase residual são observados. Na esquizofrenia, normalmente após a estabilização da crise, o indivíduo não volta ao estado anterior; geralmente se percebe alguma alteração na afetividade e no pragmatismo: o chamado "defeito" pós-crise. O prognóstico da doença é reservado, apesar de as novas terapêuticas farmacológicas terem favorecido muito uma melhora da doença. Fatores de um melhor prognóstico são: início tardio, fator precipitante claro, início agudo, antecedente social favorável, como trabalho e relacionamentos interpessoais, presença de sintomas depressivos, ser casado (o que claramente não se aplica aqui), sintomas positivos (delírios e alucinações) e suporte familiar e social favorável. Fatores de um pior prognóstico seriam: início precoce, não existência de fatores precipitantes, fatores pré-mórbidos, como má adaptação social e no trabalho, comportamentos autísticos, sintomas negativos, pouco suporte familiar e social, não remissão no período de 3 anos, muitas recaídas21. A esquizofrenia na infância acaba tendo um pior prognóstico principalmente pelo início precoce e pela predominância de sintomas negativos6,9,21.
Exames complementares
A utilização de exames complementares para o diagnóstico de esquizofrenia não se faz necessária, a menos como exclusão de causa orgânica. O diagnóstico é eminentemente clínico, de acordo com a sintomatologia apresentada e sua evolução. Os estudos por imagem têm sua importância, não diagnóstica, mas sim pela propriedade de uma maior compreensão de estruturas cerebrais envolvidas na doença. Estudos através de tomografia computadorizada de crânio têm revelado uma dilatação de ventrículos conseqüente a uma redução do parênquima cerebral em alguns pacientes25,26. Esses mesmos achados têm sido encontrados em crianças, já evidenciando o comprometimento e também a gravidade de áreas cerebrais atingidas26. Estudos utilizando ressonância magnética têm revelado diferenças no volume de áreas do lobo temporal e parietal em adultos com esquizofrenia, especialmente redução na porção anterior do complexo amígdala-hipocampo, mais notadamente no lado esquerdo. Essas alterações não são observadas nas crianças e parece que começam a surgir com a adolescência26.
Tratamento
O tratamento das psicoses está voltado para duas vertentes: farmacológica e socioeducativa. A base do tratamento farmacológico restringe-se aos neurolépticos ou antipsicóticos. A eficácia dessas drogas sobre as psicoses tem sido demonstrada em vários trabalhos. Infelizmente, os estudos dessas drogas na infância são em número infinitamente menor que em adultos. Por uma série de razões, as pesquisas com os neurolépticos iniciam-se na população adulta, e somente após alguns anos essas drogas são autorizadas para uso na infância. Nos últimos anos, tem surgido um número importante de neurolépticos (atípicos) com eficácia comprovada e menores efeitos adversos, porém sua utilização no tratamento das psicoses infantis ainda é restrita. O haloperidol, uma droga já utilizada há vários anos, continua sendo uma boa escolha para o tratamento das psicoses infantis (dose de 0,02 a 0,12 mg/kg/dia)9. Apesar de terem efeitos colaterais, como sintomas extrapiramidais e acatisia, estes são facilmente controlados, e são drogas extremamente seguras. Outra boa opção seria a risperidona, que apresenta um risco de discinesia tardia bem inferior ao haloperidol. A olanzapina também tem sido utilizada no tratamento das psicoses infantis, com boa resposta9.
Abordagem psicossocial
Na literatura não existem trabalhos mostrando que determinadas técnicas psicoterápicas são efetivas no tratamento da esquizofrenia na infância9. Parece que ações socioeducativas voltadas ao funcionamento da família, soluções de problemas e habilidades de comunicação têm sido mais efetivas na diminuição das crises. No nosso meio, o tratamento desses casos em nível de hospital/dia (HD) tem mostrado uma evolução mais favorável. De um modo geral, a criança permanece no HD cerca de duas a cinco vezes por semana, por meio período, onde é assistida por uma equipe multidisciplinar. A família também participa de algumas atividades, onde é realizado um trabalho de orientação sobre a doença e muitas vezes tenta-se abordar possíveis fatores dinâmicos que possam interferir no quadro.
Orientação familiar e terapia familiar
A presença de uma criança doente em uma família quase que inevitavelmente acaba levando a um desequilíbrio nas relações familiares, principalmente quando se trata de doença mental. Muitas vezes, um ser doente acaba mobilizando sentimentos variados, como culpa, raiva, medo, vergonha, fracasso, entre outros, os quais necessitam ser trabalhados. Em algumas situações, uma orientação familiar pode solucionar o problema. Entretanto, nas famílias onde as relações já eram conflituosas, o surgimento de uma criança doente somente favorece a rede de problemas já existente, e a criança não tem a possibilidade de mudanças, sendo necessário um processo de terapia de família com o objetivo de uma melhor compreensão e solução desses conflitos28.
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Sérgio K. Tengan
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Artigo original:
http://www.scielo.br/scielo.php?script=sci_arttext&pid=S0021-75572004000300002&lang=pt&tlng=pt