Artigos Científicos

Dinâmica familiar de crianças autistas

Maria Helena S. Sprovieri, Francisco B. Assumpção Jr

28 de fevereiro de 2010

Arq. Neuro-Psiquiatr. v.59 n.2A São Paulo jun. 2001

DINÂMICA FAMILIAR DE CRIANÇAS AUTISTAS

 

Maria Helena S. Sprovieri1, Francisco B. Assumpção Jr2

 

 

RESUMO - Avaliamos 15 famílias de autistas, 15 de portadores da síndrome de Down e 15 de filhos saudáveis, com indivíduos na faixa etária de 5 a 15 anos. Os pais (ambos os genitores) desses três grupos familiares foram avaliados quanto ao à dinâmica familiar, visando relacionar tais sintomas com o funcionamento de famílias de autistas, em estudo comparativo. Detalhou-se a família, o quadro autístico, a família do autista, a família e a saúde mental, suas limitações e dificuldades ao longo do ciclo vital. A pesquisa de campo foi realizada mediante o uso dos instrumentos de dinâmica familiar da Entrevista Familiar Estruturada, (Carneiro,1983). Os dados coletados foram comparados estatisticamente. Considerando a população estudada (n = 45 famílias) constatou-se que as famílias dos autistas e portadores da síndrome de Down são dificultadoras da saúde emocional dos elementos do grupo, constituindo as dos autistas maior porcentagem. Concluimos que a dinâmica familiar do autista é dificultadora da saúde emocional dos membros do grupo, seus pais apresentam estresse, sendo as mães com scores mais significativos mas semelhantes nos outros dois grupos.

PALAVRAS-CHAVE: família, dinâmica familiar, autismo.

 

Family dynamics of autist children

ABSTRACT - We studied 15 families with autists, 15 with Down's syndrome and 15 asymptomatic children. Patients' age ranged from 5 to 15 years-old. The parents of these three families' groups were appraised in regard to their family dynamics, to relate those symptoms to the functioning of an autist family, in a comparative study. Details were provided of the families, the overall autistic features, the autist's family, the family and the mental health, their limitations and difficulties throughout the vital cycle. An attempt was made to locate the factors that aid the family in hindering the healthy emotional development of its members. The field research was achieved by use of the instruments of the Family Dynamics Evaluation, (Carneiro, 1983). The data gathered were statistically compared. Considering the family population studied (n = 45), we found that the autists' families and victims of Down's syndrome made it difficult to sustain the emotional health of group members. We conclude that the autist's family dynamics caused difficulties to the emotional health of the group's members.

KEY WORDS: familly, familiar relationship, autism.

 

 

Segundo Gilberg1, o autismo é considerado atualmente como uma síndrome comportamental com etiologias múltiplas em consequência de um distúrbio de desenvolvimento, sendo caracterizado por déficit na interação social visualizado pela inabilidade em relacionar-se com o outro, usualmente combinado com déficits de linguagem e alterações de comportamento. No DSM-IV2 é relatado como quadro iniciado antes dos três anos de idade, com prevalência de quatro a cinco crianças em cada 10 000, com predomínio maior em indivíduos do sexo masculino (3:1 ou 4:1) e decorrente de vasta gama de condições pré, peri e pós-natais.

A família, sociologicamente, é definida como um sistema social, dentro do qual podem ser encontrados subsistemas, dependendo de seu tamanho e da definição de papéis. É através das relações familiares, que os próprios acontecimentos da vida recebem seu significado e, através dele são entregues a experiência individual3. É ela, portanto, unidade básica de desenvolvimento das experiências das realizações e dos fracassos do homem. Sua organização e estrutura não são estáveis. A sociedade fornece diretrizes para o seu funcionamento a fim de que ela lhe seja útil4. A família, portanto, é uma rede complexa de relações e emoções pela qual perpassam sentimentos e comportamentos sendo a simples descrição de seus elementos de uma família, insuficiente para transmitir a riqueza e complexidade relacional de sua estrutura.

A vida de uma família é um longo ciclo de eventos desenvolvimentais: que abrange diferentes gerações e vários contextos histórico-sócio-culturais5 . Assim, em nosso caso, ela constitui instituição social significativa, da qual buscamos entender a interação e a dinâmica frente ao autismo, uma vez que a síndrome traz consequências para o portador, interferindo na sua posição social e no seu estilo de vida, em seus relacionamentos internos e nos vínculos com o mundo externo.

A definição de autismo, corrobora que ele compromete seriamente o grupo familiar quando este passa a viver com o problema. Usualmente, as relações familiares são naturalmente afetadas quando um elemento de seu grupo apresenta uma doença6. As limitações vivenciadas frente à doença levam-na a experimentar alguns tipos de limitação permanente, que são percebidos em sua capacidade adaptativa ao longo do desenvolvimento. Assim, o autismo do filho coloca os pais frente a emoções de luto pela perda da criança saudável que esperavam. Apresentam, por isso, sentimentos de desvalia por terem sido escolhidos para viver essa experiência dolorosa7.

Atualmente, essas premissas sobre famílias de autistas com interações negativas e consequências danosas têm sido desafiadas de tal maneira que têm motivado mudanças nos conceitos sobre elas. A mudança mais significativa nesses conceitos refere-se à rejeição, da teoria dos pais serem os agentes causadores da deficiência 8. Estudos refutam ainda a culpabilidade dos pais relacionada ao autismo, passando esses a serem vistos, e possivelmente reconhecidos, como parceiros necessários para o tratamento e desenvolvimento das crianças. Essas novas premissas resultam de uma nova visão de família e maior apreciação do seu papel no norteamento das dinâmicas pessoais de crianças, incluindo as autistas. Nessa nova visão das famílias verifica-se ou reconhece-se a contribuição positiva das pessoas deficientes para suas famílias, descrevendo-se estudos empíricos e breves 9,10, nos quais se relatam evidências de contribuição positiva, tais como: aumento da felicidade, maior amor, laços familiares fortificados, fé religiosa fortificada, rede social expandida, maior conhecimento sobre deficiências, aprendizado em tolerância e sensibilidade, aprendizado em paciência, maior desenvolvimento de carreira, crescimento pessoal, domínio pessoal e o fato de viver a vida mais calmamente. Notam ainda9 que "crianças deficientes contribuem positivamente para as suas famílias, e que, algumas famílias não somente sobrevivem com a experiência da deficiência, mas também apresentam um crescimento em função dessa vivência".

O autismo leva o contexto familiar a viver rupturas por interromper suas atividades sociais normais, transformando o clima emocional no qual vive. A família se une à disfunção de sua criança, sendo tal fator determinante no início de sua adaptação. Paralelamente, torna-se inviável reproduzir normas e valores sociais e, consequentemente, manter o contexto social. A família sente-se então frustrada e diminuída frente ao meio, com os pais e a criança passando a ser desvalorizados11. Isso porque a limitação em um elemento afeta não apenas os relacionamentos entre o "doente" e os demais, mas também entre os outros elementos do grupo. As relações familiares são então afetadas com a presença de uma criança autista, e a comunicação conjugal torna-se confusa aparecendo agressividade12. Ressalta-se assim a importância de um posicionamento pautado pela aceitação realística da situação, uma vez que o medo e a incerteza passam a ser emoções comuns aos pais de uma criança problema13.

Tendo em vista o exposto sobre o autista e sua família, o objetivo deste estudo foi avaliar se as famílias de pacientes autistas apresentam dificuldades maiores na dinâmica familiar, uma vez que a hipótese habitual é de que famílias com membros portadores de autismo apresentam alterações significativas em sua dinâmica familiar.

 

MÉTODO

Para este estudo tomou-se como família o núcleo constituído por pais e irmãos, o que se denominou de família nuclear. Essas famílias foram encaminhadas ao acaso, por diferentes profissionais e, assim, a amostra foi variada quanto à procedência, nível sócio-econômico e cultural.

O estudo foi desenvolvido inicialmente com a seleção de três grupos:

Grupo A - 15 famílias, cada uma com uma criança com síndrome autística diagnosticada segundo os critérios do DSM IV, no Serviço de Psiquiatria da Infância e da Adolescência do Hospital das Clínicas da Faculdade de Medicina da Universidade de São Paulo, na faixa etária de 5 a 15 anos. A amostra foi selecionada a partir de ambulatório especializado do projeto "Distúrbios do Desenvolvimento", com as crianças sendo escolhidas aleatoriamente durante o dia de atendimento. Foi sempre selecionada, para a avaliação familiar, a 5a. criança a ser atendida. Em caso de não-aceitação, foi indicada a criança seguinte na ordem de atendimento.

Grupo B - 15 famílias, com uma criança portadora de síndrome de Down diagnosticada clínica e laboratorialmente, na faixa etária de 5 a 15 anos. As crianças foram encaminhadas de forma aleatória por profissionais da área, a partir de seus serviços de atendimento.

Grupo C - 15 famílias, cada uma com uma criança assintomática, na faixa etária de 5 a 15 anos. As crianças foram encaminhadas por professores ou conhecidos, de maneira aleatória, sem que houvesse relacionamento familiar com a criança identificada.

Todas as famílias foram informadas sobre a realização da pesquisa, mostrando-se dispostas a participar voluntariamente do estudo.

As famílias que compuseram a amostra foram avaliadas quanto ao funcionamento familiar, através da Entrevista Familiar Estruturada (EFE) 14, instrumento de pesquisa construído e validado para o Brasil. Mediante sua aplicação identificam-se os padrões de funcionamento familiar. Quanto maior o número quantificado na escala, pior o funcionamento na categoria avaliada. A EFE permite análise e quantificação das categorias comunicação, regras, papéis liderança, conflitos, manifestação de agressividade, afeição física, individualização, integração, auto-estima, interação conjugal e interação familiar facilitadora de saúde emocional nos seus membros 14. O instrumento EFE foi aplicado em cada família após o estabelecimento dos primeiros contatos que a definiam como participante da pesquisa, com todos os elementos do grupo presentes.

As famílias dos três grupos que formaram a amostra da pesquisa foram estudadas pela aplicação do referido instrumento de avaliação, privilegiando as categorias já descritas, o que permitiu observar-se um padrão de funcionamento familiar.

Após tais avaliações, os dados foram comparados através do teste c2 visando-se verificar semelhanças ou diferenças entre os grupos estudados no que se refere a essa dinâmica familiar. Esse teste foi escolhido em função de tratar-se de estatística não-paramétrica com variável ordinal (segundo nível de mensuração) na qual a variável é somente ordenável e não quantitativa. Assim, foram estabelecidas correlações entre os conflitos e as perturbações na dinâmica familiar da criança autista, da portadora da síndrome de Down e da criança assintomática. Dessa forma tentou-se comprovar empiricamente a hipótese proposta neste estudo.

 

RESULTADOS

A amostra estudada apresentou as seguintes características:

Na população com crianças autistas, os pais apresentaram idade média de 42,26 anos (± 6,58); as mães, 39,33 anos (± 7,02); e os filhos autistas, 11,86 anos (± 4,38). Cinco famílias representaram a nova pequena burguesia, oito a pequena burguesia tradicional e duas o subproletariado, conforme a classificação de Lombardi et al.15.

Na população com crianças portadoras de síndrome de Down, os pais apresentaram idade média de 41,44 anos (± 6,76); as mães, 40,26 anos (± 6,65); e as crianças, 9,46 anos (± 3,32). Sete famílias representaram a nova pequena burguesia, cinco a pequena burguesia tradicional e três o subproletariado 15.

Na população com filhos assintomáticos a idade média dos pais foi 40,53 anos (± 12,89); das mães, 38,8 anos (±12,04); e dos filhos, 11,04 anos (±3,57). Nove famílias representaram a nova pequena burguesia, cinco a pequena burguesia tradicional e uma o subproletariado 15

Os conceitos de nova pequena burguesia, pequena burguesia tradicional e subproletariado são provenientes da escala de Pelotas 15 e significam origens e procedência mais que nível econômico. Assim representam respectivamente grupos que trabalham em comércio ou prestação de serviços, possuidores de formação universitária; grupos que também trabalham em comércio ou prestação de serviços com conhecimento de seu ofício porém sem formação universitária e, finalmente grupos dedicados a serviços eminentemente domésticos. Considerando-se essa classificação não houve diferenças significativas no que se refere à idade dos pais e dos filhos, bem como ao grupo social das famílias estudadas.

As famílias com crianças autistas são significativamente menos facilitadoras de saúde emocional que famílias com crianças assintomáticas (Tabela 1). Isso porque o instrumento utilizado se apresenta de maneira que as tarefas propostas são realizadas, ou não, de acordo com as normas consideradas como satisfatórias ou insatisfatórias no que se refere as categorias avaliadas.

 

 

As famílias com crianças autistas e portadoras da síndrome de Down têm, ambas, dificuldades na promoção de saúde emocional (Tabela 2).

 

 

As famílias portadoras de paciente com síndrome de Down são menos facilitadoras de saúde emocional, quando comparadas com famílias de crianças assintomáticas (Tabela 3).

 

 

No instrumento utilizado (EFE), os itens positivos, embora prejudicados (uma vez que , mesmo qualitativamente comprometidas, observa-se a presença das funções estudadas), nas famílias comprometidas (com autistas e portadoras de síndrome de Down) são:

Comunicação, definida como qualquer comportamento verbal ou não verbal manifesto pelo emissor em presença de um receptor, caracterizando-se quatro distúrbios: incongruência quando os níveis de relato e ordem não se reforçam mútuamente, confusão quando são utilizadas frases incompletas, estilo obscuro, mudanças bruscas de assunto e linguagem pouco explícita que dificultam a compreensão das mensagens; sem direcionalidade adequada quando não são sempre dirigidas às pessoas do grupo familiar; sem carga emocional adequada quando sua transmissão é feita sem que sua carga emocional seja manifesta.

Papéis, corrrespondendo ao desempenho e cumprimento das funções familiares essenciais relacionadas a posição de marido, mulher, pai, mãe, filho, irmão, irmã.

Liderança, carcterizada pelo uso diferenciado da autoridade de maneira fixa ou alternada com oportunidades aos diferentes membros da família.

Manifestação de agressividade com a expressão de sentimentos de raiva e hostilidade passíveis de expressão.

Afeição física caracterizada por comportamentos não verbais manifestos pelos diferentes membros do grupo.

Por outro lado, os itens totalmente comprometidos cujos escores são iguais a zero (uma vez que não se observam essas funções), referem-se a:

Interação conjugal correspondendo ao processo de trocas relacionais estabelecidas entre marido-mulher.

Individualização caracterizada pelas dificuldades na individuação e existência de comportamentos inibidores do crescimento pessoal.

Integração com a possibilidade de complementação das necessidades de cada um através das atividades do parceiro.

Auto-estima caracterizada pela própria auto imagem, diminuída pela presença do filho comprometido.

 

DISCUSSÃO

A família, quando tem um elemento-problema, não cumpre com seu papel social de educar indivíduos para participar da sociedade segundo suas normas. Isso porque ela é uma instituição social criada para formar indivíduos para essa mesma sociedade segundo suas regras que, hoje, em uma sociedade pragmática, contém dados de seleção como eficiência e eficácia. Neste estudo verificou-se que as famílias com um elemento deficiente dificultam o desenvolvimento emocional sadio de seus outros membros, mesmo quando ela se compõe somente de pais e filho doente uma vez que dificulta naqueles o desenvolvimento de seus papeis de pais e conjuges.

A abordagem sistêmica enfatiza que a doença afeta a família enquanto unidade (Huth, 1978) com o continuo intercâmbio entre seus membros distribuindo as responsabilidades de disfunção ao longo do sistema. Assim, ela tende a responder como uma unidade a doença, em um de seus membros, sendo seus membros afetados em grau variado pela sintomatologia do paciente 16. A resposta de seus familiares, concomitantemente também tem um efeito no paciente. Assim, a família vivendo acentuado estado de desequilíbrio devido às dificuldades vivenciadas frente a doença sofre, como consequência, situações de tensão. Passa então a mostrar consequências nas suas relações, com o sistema familiar dificultando a saúde emocional de seus membros, conforme pudemos observar neste estudo.

Dependendo do estágio de desenvolvimento que ela estiver atravessando por essa ocasião, a necessidade de mudança em sua estrutura provocará abalos que serão traduzidos em crise de maior ou menor proporção. Para que essas mudanças sejam satisfatórias, deve haver flexibilidade do grupo. A deficiência de um filho dificulta tais mudanças pelas limitações do paciente, por suas dificuldades de exercer seu papel no grupo e pelas solicitações de seu problema. Assim temos uma família com limites para proceder a transformação necessária 17, fato que observamos em nosso estudo.

A adoção de determinados padrões de comportamento e atitudes com relação aos aspectos da vida passam a ser subordinados quase que exclusivamente à doença, conferindo-lhe característica de super-organização, a qual leva ao estabelecimento de padrões familiares rígidos impossibilitando o processo de desenvolvimento individual e familiar. Os problemas identificados estão vinculados aos cuidados exigidos pelo paciente. O envolvimento da família para o seu tratamento, a frequência a outras instituições, o tempo da mãe fora de casa, muitas vezes exigindo que outras pessoas exerçam seu papel, colaboram para a desorganização do sistema. Assim, ela interage mais externa que internamente, vivendo assistida e muitas vezes controlada, por outra instituições.

Ressentimento, irritação pelo fardo que a criança representa e raiva são reações possíveis, alusivas tanto à punição quanto às atitudes de ignorar e rejeitar a criança doente. As reações ansiógenas e depressivas moduladas por sentimentos de hostilidade tanto com relação à criança quanto aos outros familiares também se fazem presentes6. A perda sofrida pode ser não somente de pessoas mas de ambições, habilidades ou ideais e expectativas que necessitam ser abandonados pelos familiares 18. Os recursos da família ficam diluídos pela vivência de perda de outros projetos familiares que o problema do doente inviabiliza ou posterga. As vivências de perda se repetem ao longo do ciclo vital dificultando a interação familiar, dado observado claramente em nosso estudo. O fracasso devido a uma perda, as necessidades de adaptação constante e de mudança de papel estão implícitas, nos problemas advindos doente. A família não consegue lidar com essas situações o que a leva a disfunções. Dificulta assim, como já mencionado, o desenvolvimento emocional saudável de seus membros. A auto-estuima, conforme vimos, encontra-se então comprometida.

As famílias funcionais empregam efetivamente seus recursos para solucionar os problemas do grupo familiar, ao mesmo tempo em que se preocupam com as necessidades emocionais de cada membro. Mostram flexibilidade e liderança alternada. Esses aspectos não foram observados na maioria das famílias avaliadas nesta pesquisa.

Nas famílias de pais de crianças autistas avaliadas neste estudo observou-se comunicação pouco clara e também menos investida de carga emocional adequada. A liderança exercida, sobretudo pela mãe, é fixa e autocrática. Há pouco espaço para a expressão da agressividade e afeição física, pouca individuação dos membros e integração comprometida. A relação conjugal não é gratificante, com os "scores" obtidos em nosso trabalho através do EFE, iguais.

Neste estudo, pudemos observar que as famílias com pacientes autistas, são significativamente dificultadoras da saúde emocional dos membros do grupo, com a doença crônica tornando-se um sintoma que acomete uma família de forma permanente. Tal sintoma expressa-se através das dificuldades enfrentadas frente a papéis, comunicação, liderança, manifestação da agressividade e afeição física

Como já observado, as mudanças adaptativas da estrutura familiar ocorrem em função de sua organização interna e de sua posição externa na sociedade. Quando isto tais mudanças se dão em resposta ao contexto social, os vínculos afetivos podem ficar enfraquecidos, a configuração familiar pode oferecer modelos de fracasso pessoal ou social. Portanto, pode-se considerar que a adaptação ocorre em função do potencial de integração da personalidade da pessoa e do caráter psicológico do seu grupo familiar. Essas dificuldades, decorrentes da presença do paciente autista que, por suas dificuldades de integração, dificulta o processo relacional de sua família, interferindo em sua organização interna e externa. Assim, o sistema familiar vive em permanente crise, sem perspectivas de mudança em função das dificuldades de desenvolvimento de um de seus elementos que apresenta um quadro de doença crônica e incapacitante. Tais alterações requerem mudanças no desempenho de papéis e de regras, mudanças organizacionais e adaptativas relacionadas com alterações na composição familiar. A família, diante da doença crônica, fracassa em completar etapas de desenvolvimento 19. Esse dado, também foi encontrado ao se estudar a dinâmica familiar de autistas e portadores da síndrome de Down.

A família é uma instituição sólida da sociedade, a qual deve proporcionar a seus elementos suportes emocional, econômico e social, que possibilitem seu desenvolvimento e sua inserção social. Para realizar essa tarefa dispensa cuidados a seus elementos. Quando um de seus elementos é doente a tensão no sentido de compreender os processos normativos e atendê-los é grande, ou seja, o funcionamento das famílias sob condições incomuns de tensão leva-as à desorganização, não facilitando a saúde emocional e não favorecendo a inserção social 20. Essa característica também foi verificada nesta pesquisa.

A família é, portanto, profundamente afetada pela ocorrência de uma doença crônica em um de seus membros. Embora ela tenha como função mediar a tensão de seus membros, um nível de tensão grande e prolongado pode destruir sua capacidade de funcionar como anteparo para eles, conforme observou-se ao longo deste texto.

Pudemos observar que as famílias com portadores da síndrome de Down também dificultam a saúde emocional, uma vez que a presença de um deficiente no grupo familiar faz com que esse grupo passe a sofrer discriminações, gerando tensões que interferem na interação familiar. Dessa maneira, a deficiência mental torna-se também um problema da família, da comunidade e da sociedade, como ponderado anteriormente.

Os dados por nós obtidos confirmam as afirmações de Herz 21, que refere que em situação de tensão prolongada, com o intuito de se proteger da intensa ansiedade, a família se bloqueia para a comunicação, expressão, e verbalização de afetos.

De acordo com os dados obtidos observamos que famílias de autistas e portadores da síndrome de Down dificultam o desenvolvimento emocional sadio dos membros do grupo uma vez que alteram de maneira significativa, conforme observamos no decorrer do trabalho, suas funções básicas.

Os comportamentos disfuncionais já citados referem-se a processos que interrompem a capacidade da família de manter adequadamente sequências de realização e preenchimento de necessidades de seus membros, comprometendo seu senso de competência. Os pais têm seu senso de competência afetada, muitas vezes não percebendo esse distanciamento e tornando as funções do sistema disfuncionais.

Em nosso estudo, as famílias assintomáticas foram consideradas mais facilitadoras da saúde emocional. A comunicação nessas famílias é mais clara. A liderança se mostra flexível. Os membros da família podem expressar sua agressividade e, ao mesmo tempo, ter espaço para a afeição física com a troca de carinho. A individualização de cada membro está presente, sem comprometer a integração do grupo familiar. O casal tem auto-estima adequada e se diferencia na interação conjugal. Enfim, nestas famílias existe a possibilidade de crescimento tanto individual quanto familiar e, nelas, os pais têm maior condição de resgatar experiências não-vividas através da educação de seus filhos e por eles são estimulados ao corresponderem às expectativas do social.

As manifestações desses pais ilustram que essas famílias com crianças assintomáticas mostram relações funcionais e positivas. A relação apresenta trocas entre quem ensina e quem aprende, significando crescimento. Existem sentimentos positivos de autovalorização. Os limites de sua estrutura se fazem claros 22.

A flexibilidade está presente nessas famílias, a comunicação é clara, a manifestação da agressividade ocorre e a expressão física do afeto é trocada com naturalidade, conforme traduz os resultados da avaliação dos dados da pesquisa.

As famílias disfuncionais valorizam o mito da preservação do status quo não facilitando as mudanças. Os talentos dos membros individuais são geralmente suprimidos e, quando planejam algo em conjunto, expressam grande homogeneidade de interesse. Os sintomas apresentados por um membro podem estar camuflando o comportamento desadaptado de outro 23. O clima é restritivo conforme percebido por análises procedidas nesta pesquisa. A comunicação é confusa e há dificuldade de abertura para expressar seus sentimentos. A agressividade dos elementos do grupo não pode ser manifestada. A presença de uma criança deficiente limita os movimentos dos elementos do sistema, constituindo fator de estresse. Como a doença é de curso constante, favorece disfunções familiares, confirmando os resultados deste estudo.

As famílias de autistas vivem continuamente sintomáticas porque o problema progride em termos de gravidade. Quanto mais essa criança evolui e entra em outras etapas evolutivas, mais seus limites se fazem presentes. A família enfrenta os efeitos de um de seus membros ser permanentemente sintomático, com deficiências que progridem gradativamente. Os períodos de alívio das exigências ligadas a doença são mínimos, o que contribui para a família se disfuncionar.

As necessidades de adaptação constante e de mudança de papel estão implícitas. Devido à crescente demanda de tarefas, os riscos de esgotamento e os problemas emocionais são grandes. Os familiares que cuidam do doente se sentem pressionados e adotam atitudes de controle com os outros membros da família, contribuindo para dificuldades relacionais.

A cada etapa evolutiva aparecem novas vivências de perda, constituindo se problema cíclico. Assim ressalta-se a importância de um posicionamento pautado pela aceitação realista da situação 24,25.

 

CONCLUSÕES

A partir da análise e discussão dos dados obtidos, acreditamos terem sido abordados pontos importantes sobre o assunto, verificando algumas características relevantes para a melhor compreensão da dinâmica dessas famílias.

O autista tem, como característica de sua própria problemática, dificuldade na interação social visualizada pela inabilidade em relacionar-se com o outro, característica que traz também problemas de conduta. Esse fator reflete-se no ambiente familiar, desorganizando-o e impedindo-o de ultrapassar de modo satisfatório suas fases evolutivas. Assim, a família passa a viver em função do doente e de suas exigências, por sua dificuldade em adquirir autonomia e pela dependência permanente. Não se pode deixar de avaliar tal situação como estressante e dificultadora de verbalização afetiva. O autista e o deficiente mental, participam de um processo de exclusão social. Conforme descrito por Goffman 26, a família sofre pressão social quando tem um elemento que não corresponde as expectativas sociais. Dessa forma, apresenta maiores dificuldades relacionais, verificadas em nossa avaliação. Isso porque hoje, com as pessoas sendo avaliadas por sua competência, uma família com um elemento que não cumpre com seu papel, não atende às exigências sociais e tem dificuldades de se organizar, bem como passa a apresentar uma autoestima comprometida. A presença dessas patologias crônicas (autismo e síndrome de Down) faz com que, as famílias envolvidas, sejam dificultadoras da saúde emocional dos elementos do grupo, conforme pudemos observar.

Algumas categorias por nós avaliadas parecem mais comprometidas frente ao problema, no que se refere à auto-estima (um filho com doença crônica desvaloriza a família), com a família não contando com a compreensão da sociedade por esta geralmente depreciar as crianças deficientes 27; à integração (um deficiente sempre atrapalha a inserção social da família) pois conforme Goffman 26 observou, a posição ocupada na sociedade pelas pessoas com algum tipo de limitação é semelhante a dos grupos étnicos menos privilegiados e a dos grupos religiosos minoritários; à individualização (um deficiente impede que os pais cresçam) pois pais de deficientes sofrem restrições em todos os setores da vida 28; à interação conjugal (um deficiente dificulta o sistema relacional), pois o deficiente impede que os pais vivam a criatividade e o crescimento, assim como dificultam o respeito a individualidade dos elementos do grupo 29.

Pudemos observar neste estudo aspectos da dinâmica familiar dos autistas e portadores da síndrome de Down, que nos permitem concluir que a família do autista é dificultadora da saúde emocional dos elementos do grupo.

Acreditamos que falar dessas famílias é como falar de todas aquelas que se superorganizam em torno de algum padrão de cronicidade. Seu funcionamento, associado aos conteúdos específicos que as diferenciam, apresentam a mesma configuração no que se refere à doença como elemento organizador dos padrões relacionais. A dificuldade de favorecer a saúde emocional se apresenta na medida que estes sistemas não disponham de recursos internos e/ou externos para fazer face á tensão por tempo prolongado ou por toda a vida.

 

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1Assistente Social, Doutora em Serviço Social pela Pontifícia Universidade Católica de São Paulo (PUC-SP), Terapeuta familiar; 2Psiquiatra, Professor Livre Docente do Departamento de Psiquiatria da Faculdade de Medicina da Universidade de São Paulo (FMUSP), Diretor do Serviço de Psiquiatria da Infância e da Adolescência do Instituto de Psiquiatria do Hospital das Clínicas (HC) da FMUSP.

 

Dr. Francisco B. Assumpção Jr. - Instituto de Psiquiatria HC-FMUSP - Rua Ovídio Pires de Campos s/n - 05403-900 São Paulo SP - Brasil.


Artigo original:

http://www.scielo.br/scielo.php?script=sci_arttext&pid=S0004-282X2001000200016&lng=pt&nrm=iso

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