Carlos Eduardo Pimentel; Valdiney V. Gouveia; Neliane Lima de Santana; Wises Albertina Chaves; Carolina Andrade Rodrigues
28/02/2010
Preferência musical e risco de suicídio entre jovens
Music preference and suicide risk among youths
Carlos Eduardo PimentelI; Valdiney V. GouveiaII; Neliane Lima de SantanaII; Wises Albertina ChavesII; Carolina Andrade RodriguesII
IUniversidade de Brasília (UnB)
IIUniversidade Federal da Paraíba (UFPB)
RESUMO
OBJETIVOS: Considerando-se que vários estudos internacionais indicam que a preferência musical, especialmente pelo heavy metal, correlaciona-se ao suicídio, objetivou-se na presente pesquisa conhecer as relações entre preferência musical e risco de suicídio.
MÉTODOS: Participaram 200 estudantes universitários de diversos cursos de uma universidade pública da cidade de João Pessoa, PB, com idade média de 22 anos (DP = 4,77). Estes responderam à Escala Abreviada de Preferência Musical, que visa mensurar a preferência musical com relação a 14 gêneros musicais, e o Inventário de Razões para Viver (RFL), que objetiva aferir as razões que as pessoas têm para viver.
RESULTADOS: De acordo com os resultados, verificaram-se correlações entre a pontuação total da RFL e os gêneros musicais convencional (positiva) e alternativo (negativa). Pôde-se ainda verificar que a preferência musical pelo estilo convencional foi um preditor de menor risco de suicídio entre jovens.
CONCLUSÕES: Esta pesquisa demonstra a importância de mais uma variável, no caso a preferência musical, para entender o risco de suicídio entre jovens. Mas outros estudos devem ser realizados no contexto brasileiro para que se possa entender melhor essa relação.
Palavras-chave: Música, preferência, suicídio, jovens.
ABSTRACT
OBJECTIVE: Taking into account that several international studies suggest a correlation between music preference, especially for heavy metal, and suicide, this study aimed at to know the association of music preference with potential indicators of suicide risk.
METHODS: Participants were two hundred undergraduate students from a public University in João Pessoa city (Brazil). They were 22 years old (SD = 4.77). They answered the Shorted Test of Music Preference, which measures the music preference with respect to fourteen music genres, and the Reasons for Living Inventory (RFL), which intents to know the reasons for living reported by people.
RESULTS: Results indicated the total score of the RFL correlated itself with the preference for the music genres named as conventional (positive) and alternative (negative). Moreover, the preference for conventional genre was a predictor of lower suicide risk among youths.
CONCLUSIONS: This research demonstrates the importance of one more variable, in the present work the music preference, to understand the suicidal risk between young persons. However, other studies must be carried out in the Brazilian context so that it is possible to understand better this relation.
Keywords: Music, preference, suicide, youths.
"Vinho é bom, mas whisky é mais rápido
Suicídio é lento com licor
(Ozzy Osbourne – Suicide Solution, 1980)".
Existem evidências empíricas na psicologia que indicam que adolescentes que preferem o gênero musical heavy metal, subgênero do rock, são mais vulneráveis ao suicídio1,2. Bandas como Black Sabbath, Judas Priest, Hellhammer, Suicidal Tendencies, Slayer, Sepultura, Macabre, Destruction, Death, Obituary, Genocídio, Holocausto, Brujeria, Infierno, entre tantas outras, chamam a atenção imediata pelos nomes que têm, além dos temas que abordam (e que já merecem um estudo à parte). Veja-se como exemplo a música Possessed (Suicidal Tendencies): "I'm a prisoner of a demon... It stays with me wherever I go, I can't break away from its hold. This must be my punishment for selling my soul!" (Sou prisioneiro de um demônio, ele fica comigo onde quer que eu vá e não posso fugir de seu domínio. Deve ser minha punição por vender minha alma) ou Fade to Black (Metallica): "I have lost the will to live, simply nothing more to give. There is nothing more for me, need the end to set me free" (Eu perdi a razão de viver, simplesmente não tenho mais nada a dar, não existe nada mais para mim, preciso do fim para me libertar)3.
Além disso, a história mundial do rock em geral é marcada por episódios lamentáveis que ganharam destaque em todas as formas de mídia e são lembrados até hoje.
O SUICÍDIO NO MUNDO ROCK: DADOS HISTÓRICOS
De acordo com o site Wiplash.net4, especializado em rock e heavy metal, de 1974 a 1999 cerca de 33 rock stars, entre bateristas, guitarristas ou vocalistas de bandas de rock e ramificações deste estilo, cometeram suicídios, além de diversas outras mortes por overdose de drogas, outras mortes por acidentes e causas desconhecidas. Desde o início do rock, nos anos 1950, diversos astros do rock, tais como Chuck Berry, Little Richard ou Elvis Presley, mostravam um estilo de vida prenhe de comportamentos de risco à saúde, incluindo bebedeiras, uso e abuso de drogas, comportamentos sexuais arriscados e atos violentos5.
No que se refere aos fãs, observa-se que também muitos deles cometeram o suicídio3. Conforme levantamento realizado por este autor, na década de 1980 registram-se sete suicídios de fãs do AC/DC, Pink Floyd, Ozzy Osbourne, Judas Priest. E que muitos suicídios foram atribuídos à influência da música Suicide Solution de Ozzy Osbourne e o astro foi processado por isso. Outros fatos ainda são registrados na década de 1990, principalmente muitos homicídios e atos de vandalismos cometidos por fãs de death e black metal. No entanto, importam aqui especialmente os comportamentos de suicídio. Neste sentido, mais recentemente, talvez o fato que mais tenha chamado a atenção da mídia ocorreu em abril de 1999, também nos Estados Unidos. Eric Harris e Dylan Kleybold mataram 12 de seus pares, um professor e depois a si mesmos, no Columbine High School, em Littleton, no Colorado. Esse trágico fato já foi matéria de dois filmes e certamente também marcou a história do rock, visto que, após cinco dias do crime trágico, descobriu-se que os jovens assassinos idolatravam o pop rock Marilyn Manson e que gostavam igualmente de música eletrônica, techno germânico e de grupos de death metal.
Em suma, pela interpretação dos fatos ocorridos (além dos estudos que serão apresentados na próxima seção), torna-se legítima a preocupação no tocante à preferência musical como relacionada ao comportamento ou, pelo menos, ao risco de suicídio entre jovens e adolescentes. Certamente, pode-se inferir que essas notícias, quando se propagaram na mídia, causaram forte impacto e mal-estar social. Nesse contexto, formou-se em setembro de 1985 um grupo de mães em Washington, denominado Parents' Music Resource Center (PMRC). Seu propósito era testificar para os membros do Comitê Legislativo de Ciência, Transporte e Comércio dos Estados Unidos o teor das composições das músicas de rock, mais especificamente de heavy metal, consideradas pelo grupo como pornográficas e violentas, incluindo temas que vão da exaltação ao demônio a comportamentos de suicídio, uso de drogas, ocultismo e antipatriotismo6. De acordo com McNamara e Ballard7, a influência do rock no comportamento tem sido assunto de debate desde seu começo. Acrescentam esses autores que, já nos anos 1960, iniciaram-se as tentativas de censura, devido ao teor das letras com referências a Satanás, sexo, drogas, violência e protesto. Acrescente-se o incentivo a comportamentos suicidas e autodestrutivos.
Os suicídios na cena rock e heavy metal podem ser entendidos com base no "efeito Werther". Sobre esse conceito, explica-se que: "O romance de Goethe, Die Leiden des Jungen Werthers, o qual acaba com o suicídio do seu protagonista (Werther), provocou uma onda de suicídios de imitação após a sua primeira publicação em 1774"8. O processo de imitação, verificado no âmago da teoria da aprendizagem social, reveste-se de importância capital para o entendimento da influência dos meios de comunicação, como o cinema ou a literatura, nos livros; no caso de Goethe, ou de letras de músicas no caso da influência do heavy metal9 ou do country10.
Além do interesse popular e midiático, pesquisadores no âmbito da psicologia também se interessaram em conhecer as relações entre preferência musical e comportamento suicida, especificamente de risco ou vulnerabilidade ao suicídio1,2.
MÚSICA E SUICÍDIO: ESTUDOS NA PSICOLOGIA
Apesar de ter despertado grande interesse público, com consequentes críticas e preocupações sociais, poucos estudos em psicologia objetivaram verificar empiricamente a relação entre preferência por gêneros musicais e suicídio11. A revisão para o presente estudo demonstra que esse quadro está se modificando nos últimos anos, mas é evidente que muitas pesquisas devem ainda ser realizadas em contextos diversos.
Por meio de uma pesquisa correlacional com estudantes adolescentes, observaram-se associações entre preferência por rock/metal, pensamentos suicidas, atos deliberados de se autoferir, depressão, delinquência, uso de drogas e problemas familiares12. Todas as correlações reportadas foram significativas e mais fortes para as adolescentes do sexo feminino. Stack, Gundlach e Reeves13, num estudo ecológico realizado em 50 estados estadunidenses, chegaram à conclusão de que os fãs de heavy metal compartilham fatores de risco, como uso de drogas14, depressão e problemas familiares12, que implicam vulnerabilidade moderada e alta tendência ao suicídio. Ressalte-se que Stack e Gundlach10 já haviam observado em 49 áreas metropolitanas uma relação entre country music e taxas de suicídios entre pessoas de cor branca, independentemente de fatores de risco como o divórcio e a pobreza.
De acordo com esses resultados10, os fãs de heavy metal apresentaram uma maior aceitação do suicídio do que os que não eram fãs. Nessa mesma direção9, verificaram que a preferência por heavy metal relacionou-se à ideação suicida numa amostra de estudantes. Em contraposição à pesquisa de Stack e Gundlach10, esses autores não encontraram relação entre country e Western music com preocupação suicida e depressão. Foram verificadas ainda associações entre preferência musical e escalas de psicoticismo e extroversão.
Por outro lado, Martin e Koo15 desejavam saber se a morte por suicídio do astro grunge de Seattle, Kurt Cobain, exerceu alguma influência nos suicídios de jovens na Austrália. Esses autores verificaram (por meio das taxas anuais de suicídio) que o suicídio de Cobain teve um pequeno impacto no suicídio de jovens australianos e que não existe nenhuma evidência que mostre aumento das taxas de suicídio por arma de fogo (método escolhido pelo astro) naquele país.
Utilizando o inventário Reasons for Living (RFL-48)16 em uma amostra de 121 estudantes (M = 17,2 anos) de psicologia, Sheel e Westfeld2 verificaram que os fãs de heavy metal mostraram-se mais vulneráveis ao suicídio. Especificamente, estes apresentaram as pontuações mais baixas nos fatores responsabilidade para com a família (RF), crenças de sobrevivência e enfrentamento (SCB) e objeções morais para o suicídio (MO). Lacourse, Claes e Villeneuve1 também verificaram relação entre preferência por heavy metal e risco de suicídio, oferecendo uma explicação a partir da teoria da alienação adolescente14,17. Concretamente, argumentam que o individualismo societal e o declínio das instituições sociais (por exemplo, a família, a escola e a religião) produzem sentimentos de anomia e alienação em jovens que têm a necessidade de participar de subculturas, baseadas em gostos musicais (por exemplo, a cultura heavy metal), cujos valores, atitudes e estados psicológicos cultivados podem reforçar o risco e a tentativa de suicídio. No caso, a preferência dos jovens por esse estilo musical estaria relacionada ao isolamento emocional, à hiperindividualização, além da alienação que, por sua vez, associa-se ao suicídio e ao uso de drogas18. Há que se ponderar, entretanto, que Lacourse, Claes e Villeneuve1 verificaram que a correlação entre a preferência por heavy metal e o risco de suicídio não se mostrou significativa quando considerado separadamente o grupo de meninos (r = 0,13; p > 0,05); porém, no caso das meninas esta foi significativa (r = 0,26; p < 0,01). Esses dados, portanto, sugerem que a teoria da alienação adolescente pode ser mais adequada para explicar o comportamento das meninas.
Os estudos revistos trataram de investigar a hipótese de que a preferência musical estaria relacionada ao suicídio, mais especificamente foi dada maior atenção ao estilo musical heavy metal. No entanto, a preferência por outros estilos também tem sido associada ao suicídio, como a preferência por country10, blues19 ou ópera20. Outro ponto em comum dos estudos é que essas associações foram observadas em amostras de adolescentes que demonstravam preferência pelo gênero musical específico que fundamenta uma subcultura, como o caso da cultura heavy metal (HM), estudada por Arnett14,17. Outros exemplos dessa perspectiva são os estudos de Stack et al.10,13,19,20, que consideraram a preferência musical como um elemento importante que configura culturas baseadas em estilos de música.
Compartilha-se desse pressuposto no presente estudo, e o crescimento do suicídio entre os jovens, ocupando o grupo de maior risco em 30 países21, justifica a composição da amostra empregada. Outro ponto a se destacar é que, no presente estudo, se planejou verificar as associações entre preferência musical e o risco de suicídio, utilizando-se um conjunto de gêneros musicais, mais especificamente 14 gêneros musicais. Além disso, destaque-se que, de acordo com o levantamento realizado para esse estudo, nenhuma pesquisa foi encontrada no país que tivesse como escopo a verificação da relação ora analisada. Portanto, o objetivo desta pesquisa consistiu em conhecer as relações entre a preferência musical e o risco de suicídio numa amostra de jovens brasileiros, buscando contribuir para a pesquisa e prática na psicologia, psiquiatria, sociologia e disciplinas correlatas.
MÉTODO
Participantes
Tratou-se de uma amostra acidental (não probabilística). Participaram voluntariamente da pesquisa 200 estudantes de diversos cursos de uma universidade pública da cidade de João Pessoa, PB (Brasil). A idade média dos participantes foi de 22 anos (DP = 4,77), sendo a maioria do sexo feminino (51%), solteira (88%) e de classe média (60%). Com relação ao curso, esses estudantes foram predominantemente de Psicologia (29%) e Administração (18%).
Instrumentos
Os participantes receberam um caderno composto pelas seguintes medidas:
Escala Abreviada de Preferência Musical (Short Test of Music Preference; STOMP)22. Visa mensurar a preferência musical com relação a 14 gêneros musicais (os itens propriamente), respondidos em escala tipo Likert, variando de 1 = Detesto a 7 = Gosto muito, e distribuídos nos quatro fatores: a) Fator I: Reflexivo e Complexo: itens 1) música clássica; 2) blues; 5) folk e 10) jazz; b) Fator II: Intenso e Rebelde: itens 9) alternativa; 11) rock e 13) heavy metal; c) Fator III: Convencional: itens 3) country (sertaneja); 8) cânticos (gospel); 12) pop e 14) músicas-temas de filmes; e d) Fator IV: Energético e Rítmico: itens 4) dance/eletrônica; 6) rap/hip-hop e 7) soul/funk. Com o objetivo de verificar a estabilidade dessas dimensões, os autores utilizaram um teste-reteste, que demonstrou índices satisfatórios (rs = 0,77, 0,80, 0,89 e 0,82, respectivamente). Gouveia, Pimentel, Santana, Chaves e Rodrigues23, por meio de análises fatoriais confirmatórias (χ2/gl = 2,59, GFI = 0,89, AGFI = 0,84 e RMSEA = 0,09; Δχ2 (5) = 128,25, p < 0,001), oferecem relativo apoio empírico à adequabilidade da estrutura multidimensional (com 4 fatores) dessa medida. No estudo desses autores, a consistência interna (alfa de Cronbach) do conjunto de itens da STOMP situou-se em 0,68.
A Escala de Razões para Viver16 objetiva aferir as razões que as pessoas têm para viver, as quais as impedem de cometer suicídio. Trata-se, portanto, de uma medida indireta de risco de suicídio, visto que sua maior pontuação geral é um indicativo de menor risco de suicídio. É composta por 48 itens divididos em seis fatores: 1) Crenças de sobrevivência e enfrentamento (SCB): itens 1, 2, 3, 4, 5, 6, 7, 8, 9, 10, 11, 12, 13, 14, 15, 16, 17, 18, 19, 20, 21, 22, 23 e 24; 2) Responsabilidade para com a família (RF): itens 25, 26, 27, 28, 29, 30 e 31; 3) Interesses relacionados às crianças (filhos) (CRC): itens 32, 33 e 34; 4) Medo do suicídio (FS): 35, 36, 37, 38, 39, 40 e 41; 5) Medo da desaprovação social (FSD): 42, 43 e 44; e 6) Objeções morais (MO): itens 45, 46, 47 e 48. Os coeficientes as variaram de 0,72 a 0,89. Essa confiabilidade também foi comprovada para o presente contexto, no qual se verificou um índice de consistência interna total de 0,90.
No final do questionário foram incorporadas perguntas de caráter demográfico, como sexo, idade, estado civil e curso universitário.
Procedimento
Todos os sujeitos da pesquisa assinaram um Termo de Consentimento Livre e esclarecido e a pesquisa foi aprovada pelo Comitê de Ética em Pesquisa da Universidade Federal da Paraíba. Os aplicadores permaneceram atentos em sala para possíveis dúvidas quanto à forma de resposta. Depois de coletados e verificados os questionários respondidos, foram dirigidos os agradecimentos pela colaboração voluntária da turma.
Análises estatísticas
Tanto a tabulação dos dados como as subsequentes análises estatísticas foram realizadas no SPSS (Statistical Package for the Social Sciences, versão 13). Foram efetuadas estatísticas descritivas (média, tendência central, dispersão), análise múltipla da variância (MANOVA), análise de correlação de Pearson e análises de regressão múltipla.
RESULTADOS
Análises preliminares
De acordo com a análise das médias dos participantes em cada gênero musical, observa-se que o rock foi o gênero mais preferido pelos estudantes (M = 5,40, DP = 1,71), seguido da música pop (M = 5,19, DP = 1,43); os menos preferidos foram o country (M = 2,79, DP = 1,58) e o folk (M = 3,11, DP = 1,56), com cinco valores missing. De fato, esses gêneros são muito mais comuns no contexto em que se desenvolveu a escala empregada. Verificaram-se ainda as seguintes médias para músicas-temas de filmes (M = 4,99, DP = 1,52), jazz (M = 4,65, DP = 1,51), música clássica (M = 4,65, DP = 1,62), alternativa (M = 4,56, DP = 1,59), blues (M = 4,49, DP = 1,06), dance (M = 4,30, DP = 1,85), rap (M = 3,96, DP = 1,79), soul/funk (M = 3,68, DP = 1,83), gospel (M = 3,63, DP = 2,16) e heavy metal (M = 3,29, DP = 2,03).
Além disso, buscou-se ainda saber se existiam diferenças estatisticamente significativas nas médias dos fatores da RFL segundo o sexo dos participantes. De acordo com a MANOVA, verificou-se que o gênero é significativo e estatisticamente importante para se entender o risco de suicídio [Lambda de Wilks = 0,94, F (5, 182) = 2,354, p = 0,042].
Foi possível observar diferenças estatisticamente significativas em dois fatores da RFL. Especificamente, o grupo dos rapazes apresentou médias menores (M = 4, 20) do que o de moças (M = 4,47) no fator SCB (F = 9,30, p < 0,003); no fator FS (rapazes: M = 4,29 e moças: M = 4,57; F = 5,56, p < 0,019); e na pontuação total da escala RFLTotal (rapazes: M = 4,04 e moças: M = 4,27; F = 6,58, p < 0,011). Isso significa dizer que as participantes apresentaram menor risco de suicídio em geral, dado que, quanto maior a pontuação no fator, menor risco de suicídio dos respondentes.
Correlações entre preferências musicais e razões para viver
Inicialmente, verificou-se que todos os fatores da RFL-48 estão positiva e significativamente correlacionados entre si. De igual modo, observaram-se correlações positivas e significativas entre as dimensões de preferência musical: reflexivo e complexo com intenso e rebelde (r = 0,52, p < 0,01) e intenso e rebelde com energético e rítmico (r = 0,24, p < 0,01). Porém, o interesse principal consistiu em verificar as correlações entre as dimensões da STOMP e os fatores da RFL-48. Os resultados dessa análise são apresentados na tabela 1.
É particularmente interessante destacar as correlações entre a dimensão Convencional [country (sertaneja), cânticos (gospel), pop e músicas-temas de filmes] e os fatores da RFL. Nesse sentido, observou-se que a referida dimensão relacionou-se à pontuação total na RFL (r = 0,29), ao fator SCB (r = 0,26), RF (r = 0,30), FS (r = 0,27) e FSD (r = 0,18), sendo todas as correlações estatisticamente significativas (p < 0,05). De acordo com esses resultados, a preferência dos jovens pelos estilos musicais country (sertaneja), cânticos (gospel), pop e músicas-temas de filmes associou-se diretamente às razões para viver mantidas pelos participantes do estudo.
Também merecem destaque as correlações observadas entre a dimensão Reflexivo e Complexo e os fatores de razões para viver. Observou-se que essa dimensão relacionou-se à pontuação total na RFL (r = -0,18) e aos fatores RF (r = -0,15), FS (r = -0,15) e MO (r = -0,17), todas as correlações a um p < 0,05. Logo, a preferência dos jovens demonstrada para os estilos música clássica, blues, folk e jazz relacionou-se inversamente às razões para viver.
Na tabela 1, constata-se igualmente uma correlação entre a dimensão intenso e rebelde e o fator RF (r = -0,15), assim como da dimensão energético e rítmico com o fator FSD (r = -0,15), ambas a um p < 0,05. Portanto, na amostra considerada, a preferência por estilos musicais alternativa, rock e heavy metal estaria inversamente correlacionada às razões para viver, mais especificamente à responsabilidade para com a família. Ademais, observou-se ainda que a preferência por dance/eletrônica, rap/hip-hop e soul/funk estaria inversamente correlacionada às razões para viver, concretamente ao medo da desaprovação social que gera o suicídio.
Foram realizadas também análises de regressão para verificar o poder preditivo24 da preferência musical (variável independente) na pontuação total dos participantes no risco de suicídio (variável dependente: RFL total), de acordo com os grupos divididos por sexo. Considerando-se os resultados da análise de regressão (método stepwise), conforme descritos na tabela 2, foi possível verificar que apenas a preferência por estilos do fator convencional predisse significativamente as razões para viver entre os participantes do sexo feminino (n = 94; β = 0,24, p < 0,016). Tendo-se em conta que quanto maior a pontuação em razões para viver menor o risco de suicídio, tem-se que os participantes deste grupo, que demonstraram maior preferência pelos estilos musicais convencionais, foram aqueles também que apresentaram menor risco de suicídio.
As análises para o grupo dos participantes do sexo masculino (n = 94) revelaram que, no primeiro modelo (Modelo 1), mais uma vez, a dimensão convencional explica significativamente as razões para viver mantidas pelos participantes (β = 0,28, p < 0,013). No modelo 2, foi incluída a dimensão Intenso, a qual prediz inversamente as razões para viver dos participantes do sexo masculino (β = - 0,26, p < 0,012). Isso significa que, quanto maior a preferência dos participantes desse grupo para com os estilos música alternativa, rock e heavy metal, em menor grau eles apresentavam razões para viver e, consequentemente, maior risco de suicídio. Como pode ser observado na tabela 2, o modelo 2 é responsável por maior percentual da explicação da variabilidade (14%) das respostas dos jovens à escala RFL, indicando que as variáveis independentes, que compõem esse modelo, predizem satisfatoriamente o risco de suicídio.
Em suma, puderam ser empiricamente observadas associações estatisticamente significativas entre dimensões de preferência musical e razões para viver (risco de suicídio). Ademais, de acordo com as regressões efetuadas, verificou-se que a variável Preferência Musical pode ser tida como um preditor do risco de suicídio. Foram ainda observadas diferenças com relação ao sexo. Todos esses resultados são discutidos sequencialmente.
DISCUSSÃO
Vários estudos indicam uma relação entre preferência musical e suicídio1,2,10,13,19,20, mas não foi encontrado nenhum que tivesse verificado essas relações em países de língua portuguesa. De fato, todos os estudos aqui citados foram realizados com participantes que falam a língua inglesa. Estes, portanto, entendem perfeitamente o conteúdo das letras dos principais estilos relacionados ao suicídio, especificamente o rock e o heavy metal1,2,9,12, a country music10, mas também o blues19.
Como contribuições da presente pesquisa, pode-se destacar que foi empiricamente verificado que: (a) a preferência musical relacionou-se ao risco de suicídio; b) a preferência musical agiu como um preditor para o risco de suicídio; (c) verificando-se estas relações, enunciadas nas letras (a) e (b), especificamente em uma amostra do contexto do Nordeste brasileiro, de jovens que têm como referência principal de comunicação a língua portuguesa. Neste sentido, possivelmente, ter verificado relações entre preferência musical e risco de suicídio nesse contexto seja o principal contributo deste estudo. Neste marco, corroborou-se a correlação positiva entre preferência por rock e heavy metal e risco de suicídio, observada nos estudos prévios1,2,9,12 e que obviamente serviram de base para este.
Como se pode perceber, esta pesquisa deu ênfase especial ao rock, particularmente ao estilo heavy metal, visto que este chamou mais a atenção da mídia e do público em geral no tocante à sua relação com o comportamento suicida. Isso, consequentemente, instigou um maior número de pesquisas interessadas na relação heavy metal-suicídio. Foi verificado realmente que a preferência por rock e heavy metal correlacionou-se inversamente às razões para viver. Além desses estilos, pôde-se perceber que o gênero música alternativa também se correlacionou ao risco de suicídio. É importante destacar, por outro lado, que essa relação não pode ser considerada forte e que só ocorreu com um fator da RFL, o fator RF. Sheel e Westfeld2, também utilizando a escala RFL, verificam que adolescentes fãs de heavy metal obtiveram uma menor pontuação total nesse instrumento. Estes também apresentaram médias menores do que os adolescentes que não se identificaram como fãs de metal em vários fatores, especificamente nas subescalas RF, SCB e MO. Os autores também verificaram que as fãs de heavy metal (as garotas) apresentaram maior risco de suicídio do que os garotos.
Portanto, dando apoio empírico às pesquisas supracitadas, no presente estudo foi verificada uma relação inversa entre os estilos rock, heavy metal e alternativa e a responsabilidade com a família para se continuar a viver ou para não cometer suicídio. Sendo assim, a preferência por rock, heavy metal e alternativa correlacionou-se diretamente ao risco de suicídio. Além dessa correlação, observou-se que a preferência por esses estilos pode ser tida como uma preditora para o risco de suicídio e isso só ocorreu para a amostra de participantes do sexo masculino. Ressalte-se que essa diferença por sexo contrasta com resultados de outras pesquisas1,2, nas quais se verificou maior vulnerabilidade no grupo das garotas.
Tendo em vista que os que mais demonstraram preferência pelo heavy metal (HM) podem ser considerados fãs, interpretam-se essas relações como fazendo parte da chamada cultura HM14,17. As características que conformam tal cultura, de acordo com a teoria da alienação adolescente, tornariam esses jovens e adolescentes mais vulneráveis ao risco e a tentativas de suicídio. Os dados da presente pesquisa apoiam essa assertiva. Nessa cultura baseada na preferência musical (HM), os comportamentos dos seus membros representam normas e atitudes específicas, assim como valores relacionados a comportamentos e atitudes antissociais25,26, um estilo próprio de vestir-se e de se comunicar, um conjunto de gostos comuns (por exemplo, por filmes de terror ou esportes radicais, como o skate)25,27, que releva uma tendência à busca de sensações7, além da presença marcante de tatuagens e outras formas de modificações corporais, como o body piercing.
Nesta perspectiva, é fundamental conhecer a rede de interconexões entre todos esses comportamentos (como os autodestrutivos), valores e atitudes que perfazem, diferenciam e dão identidade a esses grupos25. Cabe aqui mencionar que outros estudos têm demonstrado relações entre adolescentes que têm tatuagens e baixa autoestima, delinquência, abuso de drogas, comportamento sexual de risco, participação em rituais satânicos e suicídio28. Outro estudo mostra que 21% dos jovens que cometeram suicídio tinham tatuagem29. Todas essas inter-relações podem, pois, serem entendidas como elementos próprios das culturas HM14,17 e de outras culturas juvenis (alternativas), como roqueiros, motoqueiros, hippies, punks e skins (também chamadas tribos urbanas)30,31,33. Estas produzem e reproduzem estilos de vidas para seus membros ou para jovens e adolescentes que se identificam com os grupos alternativos27. Esses jovens, por fazerem parte dessas culturas, também compartilhariam fatores de risco (preditores) para o suicídio, como o uso de álcool, busca de sensações e a anomia1,14,17,32.
Outra dimensão de preferência musical a se destacar diz respeito a reflexivo e complexo, que se relacionou significativamente a vários fatores de razões para viver. Especificamente, observou-se que essa dimensão se relacionou à pontuação total na RFL, nos fatores RF, FS e MO, revelando que a preferência dos jovens universitários para os estilos música clássica, blues, folk e jazz se correlacionou inversamente às razões para viver e, apesar de serem estatisticamente significativas as associações encontradas também não foram de grande magnitude. Mas é importante lembrar que Stack19 já havia verificado correlação do estilo musical blues com o suicídio.
No entanto, encontraram-se mais correlações entre a dimensão Convencional e o risco de suicídio (na pontuação total da RFL, nos fatores SCB, RF, FS e FSD). Estas também são as correlações mais fortes. Isso implica que a preferência dos jovens deste estudo pelos estilos musicais country, gospel, pop e músicas-temas de filmes associou-se diretamente e mais fortemente do que o fizeram as outras dimensões de preferência, às razões para viver mantidas por esse grupo. Destaque-se também que a preferência musical pelos gêneros dessa dimensão foi a melhor preditora do risco de suicídio na amostra masculina e a única variável preditora na amostra feminina. Esses resultados se contrapõem à pesquisa de Stack e Gundlach10, os quais verificaram uma relação direta entre country music e taxas de suicídio. Certamente, o significado e a importância do country é muito maior no contexto estadunidense e possivelmente esta relação não ocorra em outros cenários. Lester e Wipple9 também não confirmam essa relação, não encontrando correlação entre country music e preocupação suicida e depressão.
Evidentemente, novas pesquisas devem ser desenvolvidas para o melhor entendimento da relação entre preferência musical e suicídio. Essas pesquisas devem ter em conta a relação country-suicídio, pois os resultados a respeito não são conclusivos. No que se refere ao heavy metal como relacionado (como um indicador ou um fator de vulnerabilidade) ao suicídio, todavia, parece haver uma relação mais consistente, mas que deve ser averiguada em outros contextos e considerando-se a magnitude e não apenas a direção dessa relação. Estilos diversos, como o blues, ainda merecem mais pesquisas empíricas. A detecção de variáveis mediadoras e moderadoras também contribuirá para um conhecimento mais aprofundado da relação entre preferência musical e (risco de) suicídio.
REFERÊNCIAS
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Endereço para correspondência:
Carlos Eduardo Pimentel
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