Ana Beatriz Pedriali Guimarães; Patrícia Brunfentrinker Hochgraf; Silvia Brasiliano; Yara Kuperstein Ingberman
5 de maio de 2010
Aspectos familiares de meninas adolescentes dependentes de álcool e drogas
Family aspects of alcohol and drug-dependent adolescent girls
Ana Beatriz Pedriali GuimarãesI; Patrícia Brunfentrinker HochgrafII; Silvia BrasilianoIII; Yara Kuperstein IngbermanIV
IPsicóloga colaboradora do Programa de Atenção à Mulher Dependente Química do Instituto de Psiquiatria do Hospital das Clínicas da Faculdade de Medicina da Universidade de São Paulo (Promud-IPQ-HC-FMUSP)
IIPsiquiatra, doutora em Psiquiatria pela FMUSP e coordenadora médica do Promud
IIIPsicóloga e doutora em Ciências pela FMUSP. Coordenadora executiva do Programa de Atenção à Mulher Dependente Química (Promud)
IVPsicóloga e doutora em Psicologia Clínica pela Universidade de São Paulo (USP)
RESUMO
CONTEXTO: O consumo de drogas entre adolescentes tem sido alvo de várias pesquisas nos últimos anos. Sabe-se que a família pode ser um fator tanto de proteção quanto de risco para o uso de substâncias nessa fase.
OBJETIVO: O presente artigo é uma revisão da literatura sobre o tema família de adolescentes abusadoras e/ou dependentes de substâncias psicoativas, a fim de levantar quais dados a literatura já dispõe sobre esse assunto com o intuito de capacitar profissionais da área da saúde na atuação clínica bem como na prevenção desta síndrome.
MÉTODOS:Revisão bibliográfica no sistema MedLine (Index Medicus), ScieLO, PubMed, a partir das seguintes palavras-chave: adição, abuso de drogas, meninas, adolescência e família.
RESULTADOS:Observou-se que essas famílias em sua maioria possuem características disfuncionais como laços familiares conflitivos, pouca proximidade entre os membros, falta de uma hierarquia bem definida e pais que não dão exemplo positivo quanto ao uso de drogas. Diferenças entre gêneros também são apontadas: meninas necessitam maior apoio familiar que os meninos como fator protetor do envolvimento com grupo de pares desviantes. As meninas também são tão sensíveis ao abuso psicológico quanto ao físico, diferentemente dos meninos que consideram pior o abuso físico. Destaca-se ainda que a presença de relações de apoio com irmãs mais velhas é fator protetor para o abuso de substâncias em meninas. Outros temas, como transmissão transgeracional e estilo parental, também são abordados.
CONCLUSÕES:Conclui-se que este tema é pouco explorado na literatura, principalmente no que se refere a estudos que abordem isoladamente a relação entre meninas e dependência.
Palavras-chave: Família, adolescência, meninas, álcool, drogas.
ABSTRACT
BACKGROUND: Drug use among adolescents has been investigated in several recent studies. Family is recognizably both a protective and a risk factor for substance use during adolescence.
OBJECTIVE:This present article is a literature review on family aspects of female adolescents who are drug abusers and/or psychoactive drug dependents to gather information available on this issue for capacitating heath providers in clinical care and prevention of this syndrome.
METHODS:A literature review was conducted in MedLine (Index Medicus), SciELO, PubMed using the following key words: addiction, drug abuse, girls, adolescence and family.
RESULTS:The families of these adolescents were found to be mostly dysfunctional characterized by conflictive family relationships, poor family cohesion, ill-defined hierarchy, and negative parental role modeling for drug use. Gender differences were also remarkable: girls need more family support than boys to protect them against deviant peer group involvement; they are also more vulnerable to psychological rather than physical abuse while boys suffer more from physical abuse. Notably, support from older female siblings is a protective factor against substance abuse in girls. Transgenerational transmission and parental style are also addressed.
DISCUSSION: Drug abuse in girls has been little investigated and there have been few studies specifically focusing on the association between dependence and girls.
Keywords: Family, adolescence, girls, alcohol, drugs.
Introdução
Existe consenso na literatura sobre a heterogeneidade entre os dependentes de substâncias psicoativas. Aliada à necessidade de encontrar tratamentos e estratégias de prevenção mais eficazes, existe uma tendência entre os pesquisadores a delimitar subgrupos de dependentes que se beneficiariam de abordagens mais específicas. Entre esses subgrupos, destacam-se as mulheres e os adolescentes1.
Desde a Segunda Guerra Mundial, observa-se um significativo aumento nos transtornos relacionados com álcool e outras drogas na população feminina. O início do consumo de substâncias psicoativas ocorre cada vez mais cedo, aumentando o risco de dependência.
Neste artigo, o termo drogas é usado para referir-se às substâncias psicoativas em geral, incluindo o álcool.
A consideração conjunta desses dois subgrupos, mulheres e adolescentes, ou seja, a adolescente do sexo feminino, leva à caracterização de uma população ainda mais específica para o estudo das dependências químicas. Ressalta-se que existem poucas pesquisas sobre adolescentes dependentes de drogas e, muito menos ainda, sobre meninas nessas mesmas circunstâncias, o que mostra a importância da abordagem do presente tema. O propósito deste artigo é revisar a literatura para conhecer mais sobre as características familiares de meninas dependentes de drogas.
Gomide2 aponta que a família ainda é um lugar privilegiado para a promoção da educação. Mesmo que o jovem passe a conviver mais em outros ambientes, como escola, clubes e shoppings, é no seio da família que os valores morais e os padrões de conduta são adquiridos. Somente quando esses valores morais não são adquiridos adequadamente durante a infância é que os outros ambientes poderão ter influência de risco na adolescência.
Kumpfer e Alvarado3 relatam que famílias com fortes laços afetivos e pais com papéis efetivos são cruciais para a prevenção de comportamentos antissociais na adolescência. Esses comportamentos podem se manifestar de várias maneiras: roubos, uso de drogas, prostituição, entre outros. Entre as causas conhecidas do comportamento antissocial, está a dinâmica familiar em que a criança está inserida. Duncan et al.4 consideram que as famílias de adolescentes dependentes de álcool são mais disfuncionais que as famílias de adolescentes não dependentes dessa droga.
Diante disso, faz-se necessário um estudo para esclarecer quais aspectos da família são reconhecidamente importantes para o desenvolvimento e a manutenção da dependência química em meninas adolescentes.
Objetivo e métodos
O objetivo principal deste trabalho é revisar a literatura acerca das características familiares de meninas adolescentes que são dependentes de drogas, a fim de levantar quais dados existem sobre esse assunto. O intuito é capacitar profissionais da área da saúde na atuação clínica, bem como na prevenção dessa síndrome.
A composição do presente artigo resultou de pesquisas nas bases de dados MedLine (Index Medicus), SciELO e PubMed no período entre 1998 e 2008, a partir das seguintes palavras-chave: adição (addiction), abuso de drogas (drug abuse), meninas (girls), adolescência (adolescence) e família (family). Além de artigos científicos nacionais e internacionais, também foram consultados livros da área. Alguns artigos e livros de anos anteriores são citados segundo sua importância para a revisão do tema.
Resultados e discussão
Características familiares de meninas usuárias de álcool e drogas
Poucos são os trabalhos encontrados na literatura que se referem somente a famílias de meninas dependentes químicas. A maioria dos estudos é mista e avalia os mais variados aspectos familiares. As pesquisas que serão apresentadas a seguir mostram que diversos aspectos do universo familiar podem atuar como fatores que propiciam o envolvimento do adolescente com substâncias psicoativas.
O universo familiar dessa população é, na maioria das vezes, apontado como sendo disfuncional. Em estudo recente, Baumann et al.5 relatam que, em relação à dependência de medicamentos psicotrópicos (para alívio de dor de cabeça, insônia, ansiedade, cansaço e nervosismo), além de as meninas fazerem maior uso que os meninos, há associação desse uso com questões familiares em ambos os sexos. Tanto as meninas quanto os meninos vivem, segundo esses autores, em uma atmosfera familiar precária, ou seja, percebem a família como negativa, sem laços estreitos, não há apoio nem felicidade nesse ambiente, além de não existir uma hierarquia bem definida.
O trabalho de Yen et al.6 relaciona aspectos familiares à dependência de drogas e internet. Esses autores verificaram que há um alto grau de conflito entre os pais e a adolescente nessas famílias; eles brigam e discutem em função da inabilidade dos pais em pôr limites, o que faz com que a adolescente não respeite as normas e as regras estabelecidas por eles. Pais com alto grau de conflito com suas filhas permitem que exista um distanciamento dos laços afetivos, o que, muitas vezes, faz com que a adolescente se vincule à droga. Wild et al.7 também relatam que se a adolescente não tem um bom relacionamento com a família, este pode ser substituído pela relação com o grupo de pares desviantes, o que as coloca em risco de dependência de drogas.
Outro tema importante são as novas configurações familiares. Em decorrência do alto índice de divórcios ou mesmo de mães que assumem sozinhas a maternidade, hoje é bastante comum a família monoparental, ou seja, aquela na qual o filho é criado somente pelo pai ou pela mãe. Weitoft et al.8 relatam que as meninas parecem se adaptar melhor a esse estilo familiar que os meninos. Contudo, apesar de elas se adaptarem melhor a essa realidade, os adolescentes que são criados por ambos os pais ainda estão mais protegidos da dependência de drogas que os que são criados por famílias monoparentais4.
Todos os estudos parecem convergir para um consenso: famílias disfuncionais, ou seja, aquelas nas quais existe um funcionamento patológico com relação à comunicação, estabelecimento de regras e limites, e falta de afeto, costumam ser o tipo mais encontrado em adolescentes dependentes de drogas9. Corroborando esses achados, Diez10, em um estudo com 1.100 adolescentes de ambos os sexos que procurava identificar aspectos familiares relacionados ao consumo de álcool nessa população, encontrou insatisfação do adolescente com a família, comunicação familiar patológica na qual não existe espaço para expressar sentimentos, ideias e opiniões, falta de respeito entre os membros e falta de expressão de afeto e apoio. Não se sentir acolhido no seio familiar pode levar o adolescente a se envolver com o grupo de pares desviantes que fazem uso de substâncias, muitas vezes na tentativa de compensar o vazio deixado pela família. Guiot et al.11 demonstram, em seu estudo com adolescentes de ambos os sexos dependentes de álcool, que eles vêm de famílias mais distanciadas que não se envolvem em atividades conjuntas.
A coesão familiar, ou seja, a proximidade entre os familiares, parece influenciar a dependência de drogas. Florenzano et al.12, ao estudarem adolescentes de ambos os sexos, encontraram uma correlação entre famílias com baixo nível de coesão e jovens com envolvimento com drogas.
Outra questão abordada em alguns estudos é a comunicação familiar patológica, que seria outra característica das famílias de meninas dependentes de drogas. Pratta e Santos13 revelam, em seu estudo comparativo entre adolescentes dependentes e não dependentes de drogas, que um ambiente familiar no qual não existe espaço para expressar sentimentos, ideias e opiniões nem outra possibilidade de ser ouvido e/ou compreendido é apontado pelas adolescentes dependentes de drogas como um dos aspectos negativos da dinâmica familiar. Para esses autores, a comunicação familiar é fundamental, uma vez que funciona como um dos meios para que a relação entre pais e filhos seja satisfatória.
Além de pertencerem a lares conflitivos e disfuncionais, parece que essas meninas são mais sensíveis ao reagir a esse ambiente que os meninos. Para Tomori et al.14, as meninas relatam maior índice de conflito familiar e reagem mais ao estresse emocional decorrente de brigas/discussões com os pais ou a família em geral. Esse fato indica que o clima familiar influencia diretamente o estado emocional dessas meninas.
Transmissão transgeracional do uso de álcool e drogas
O uso de drogas pelos pais e outros familiares é certamente uma das grandes influências para que as adolescentes se tornem dependentes de drogas. A transmissão transgeracional dessa síndrome é um tema de estudo frequente na literatura nacional e internacional. Pais que fazem uso de alguma droga servem de modelo tanto para meninos quanto para meninas na experimentação e no início do contato com álcool e outras drogas15-19.
Segundo Walden et al.18, adolescentes com pais usuários de drogas apresentam um índice muito maior de uso de nicotina nessa fase. Pélissolo et al.20 relatam que o uso de ansiolíticos e hipnóticos entre as adolescentes está extremamente vinculado ao uso desses medicamentos pelos pais, principalmente pelas mães, no caso das meninas. Esses autores deixam bem clara a importância da relação mãe-filha na transmissão do uso indevido de medicamentos. As mães parecem ser ainda modelos mais fortes para meninas para o início do hábito de fumar17.
Outro estudo que aborda esse tema é o de Li et al.21, que aponta que adolescentes dependentes de drogas, quando comparados a jovens que não usam drogas, tendem a perceber a família muito mais envolvida com o uso de álcool e outras drogas. Em recente estudo brasileiro, Malcon et al.22 demonstraram a influência do modelo da mãe no hábito de fumar entre adolescentes. Diez10, em uma pesquisa com adolescentes que investigou a influência do modelo dos pais no consumo de bebidas alcoólicas pelos adolescentes, relatou que os filhos de pais que bebem abusivamente não aprendem a beber de maneira controlada e acabam se tornando abusadores de álcool na adolescência.
Guiot et al.11 também relatam que os pais devem mostrar aos filhos, por meio de modelo, qual o limite saudável do beber. Em seu estudo, esses autores observaram que adolescentes com uso abusivo de álcool pertencem a famílias que também fazem uso abusivo da substância e têm pais que não ensinam pelo modelo o limite esperado de um beber social.
Estilo parental
São várias as definições existentes na literatura sobre estilo parental. Neste artigo, a definição adotada é a de Wood et al.23, que considera estilo parental como o conjunto de atitudes, metas e modelos dos pais. As estratégias utilizadas pelos pais, a fim de promover a socialização de seus filhos, são denominadas práticas educativas, ou seja, o estilo parental é o resultado da integração das práticas educativas dos pais2. Alguns dos estudos encontrados correlacionam a forma como os pais educam seus filhos com a dependência de drogas na adolescência. Choquet et al.24 relatam que a falta de controle dos pais está mais associada à dependência de drogas em meninas. O apoio emocional proporcionado pelos pais também parece ser uma prática educativa que influencia mais as meninas, ou seja, as que nunca receberam apoio emocional dos pais foram consideradas como tendo alto risco para dependência de drogas no estudo. Além disso, esses autores afirmam que as meninas necessitam de um apoio maior da família como fator de proteção para dependência de drogas, enquanto os meninos necessitam de um apoio maior de seus pares, sugerindo que aparentemente as meninas respondem mais ao ambiente familiar25.
Outro aspecto bastante interessante quando se aborda a questão da população feminina adolescente é o papel materno. Shek26 deixa evidente essa importância quando relata, em recente estudo, que a relação com a mãe exerce um papel importante no desenvolvimento de comportamentos antissociais, inclusive no uso de drogas em meninas, porém não em meninos. Em geral, o dependente químico tem uma ligação muito forte com o progenitor do mesmo sexo e eles são tão próximos que a relação se torna patológica. Portanto, tanto o distanciamento quanto a proximidade patológica são fatores de risco para as dependências, o que seria de se esperar, já que nos dois casos a adolescente não é ouvida nem compreendida27. Farrell e White28 também abordam a questão do vínculo materno e paterno em adolescentes dependentes de drogas e relatam que uma relação conflitiva entre adolescente e mãe está bastante vinculada à dependência de drogas nesta fase, ao passo que uma boa relação com o pai é um fator protetor.
O monitoramento parental, ou seja, o interesse que os pais demonstram em relação à vida cotidiana dos filhos, como saber quem são seus amigos, que lugares frequentam, se eles têm um bom desempenho na escola, é também uma importante prática educativa que influencia a dependência de drogas na adolescência. As mães tendem a monitorar de modo diferenciado meninas e meninos, monitorando mais as filhas que os filhos, o que as protege mais do abuso de drogas2,25,29.
Outro estudo que aborda o tema do monitoramento parental é o de Yen et al.6, que indica que a supervisão parental inadequada (vigilância e ordens excessivas e/ou falta de regras e limites) está estreitamente associada ao abuso de drogas na adolescência. Além dessa prática educativa, esses autores abordam ainda a questão de como os pais reagem ao abuso de drogas dos filhos. Relatam que, quando os adolescentes percebem que os pais consideram normal o seu abuso de drogas, isso tem uma influência bastante negativa no processo de dependência desses adolescentes. Esses pais não conseguem ser efetivos com relação à disciplina de seus filhos já que consideram o abuso de drogas um fenômeno normal e esperado entre os adolescentes. Segundo Huebner et al.30, a dependência de tabaco em meninas também está associada a um monitoramento parental inadequado.
Um dos poucos estudos brasileiros que aborda o tema da família de adolescentes usuários de drogas é o estudo de De Micheli e Formigoni31. Para estas autoras, a família possui um papel crucial na dependência de drogas na adolescência e pouco monitoramento e cuidados por parte dos pais estão associados à dependência de drogas nessa população.
A falta de disciplina e de limites é frequentemente encontrada entre os adolescentes dependentes de drogas. Schenker e Minayo32 relatam que pais de dependentes de drogas têm dificuldade em passar normas e limites para seus filhos. Essas famílias parecem possuir uma inabilidade para criar e educar seus filhos, o que resulta em vínculos familiares precários. Sem essa relação de confiança e afeto entre pais e filhos, o adolescente não aceita a autoridade e o estabelecimento de regras dos pais. Esses autores identificam as características básicas das famílias de adolescentes dependentes de drogas como sendo as seguintes: administração insatisfatória da família, negligência, disciplina e monitoramento parentais inadequados (pais que não se interessam pelas atividades diárias de seus filhos), irritabilidade dos pais e processos familiares que envolvem interações baseadas em ameaças e medo.
A relação entre violência intrafamiliar e dependência de drogas na adolescência também é conhecida. Em um estudo recente com adolescentes abusadores de maconha, relatou-se que essa população, além de vivenciar situações de abuso físico, frequentemente observa pais, irmãos, vizinhos em outras situações de violência. O fato de presenciar atos de violência no ambiente doméstico faz com que esses adolescentes saiam de casa e acabem se envolvendo com companheiros desviantes e consequentemente também com álcool e outras drogas15.
Kaplan et al.33 relatam que adolescentes que foram abusados fisicamente têm 19 vezes mais chances de desenvolver dependência química, sendo essa chance igual tanto para meninas como para meninos que sofreram violência física. A violência intrafamiliar na adolescência, seja física, psicológica e/ou sexual, está também relacionada a outras afecções, como ansiedade, depressão etc.
Meninas dependentes de drogas com frequência relatam sofrer maus-tratos na família. É interessante notar que as meninas geralmente percebem como sendo pior o abuso psicológico (humilhações, xingamentos, agressões verbais) que o físico, diferentemente dos meninos que relatam sofrer mais com o abuso físico que o psicológico. Além de perceberem o abuso psicológico como pior, as meninas também relatam que o fato de presenciarem muitas situações de brigas e violência em casa influencia o uso de drogas. A fim de evitarem situações aversivas em família, elas passam a integrar grupos de pares desviantes, isto é, na tentativa de fugir de situações aversivas, encontram fontes de reforço em outros locais como grupo de pares desviantes ou por meio do uso de drogas34.
Relacionamento entre irmãos
Muitos estudos demonstram não só a influência dos pais, mas também dos irmãos, no desenvolvimento da dependência química na adolescência. Um fator importante, principalmente para meninas, é a relação com irmãs mais velhas. O modelo dessas irmãs é tão importante quanto o dos pais e, nos casos em que os pais não cumprem o seu papel de cuidadores, as irmãs mais velhas têm responsabilidade ainda maior de passar modelos saudáveis para essas meninas.
Em estudo recente, East e Khoo35 relataram que, para meninas com pais separados criadas somente pela mãe, ter uma boa relação com irmãs mais velhas parece diminuir o risco de envolvimento com drogas na adolescência.
Essa influência pode ser tanto benéfica quanto colocar essas meninas em risco, já que elas podem ter irmãs mais velhas que fazem uso abusivo de drogas. Dick et al.36 observaram que meninas com irmãs mais velhas nessas condições tinham maior envolvimento com drogas na adolescência. Outro estudo que aborda a questão da influência das irmãs no uso de drogas é o de Malcon et al.22. Estes autores encontraram forte relação entre uso de tabaco pelas adolescentes e suas irmãs como modelo para início do uso de drogas.
Conclusão
Como bem ressaltam Schenker e Minayo37, a família tem um papel tanto de coautora no surgimento do abuso de drogas na adolescência quanto de instituição protetora para a saúde dos adolescentes. A dependência de drogas é uma forma de lidar com os problemas dessa fase da vida, principalmente se o adolescente não possui uma estrutura familiar na qual se sente apoiado, acolhido e bem orientado.
Não se pretende com este estudo afirmar que a família é a única influência para o desenvolvimento da dependência química em meninas adolescentes. O objetivo do estudo é apenas enfocar essa questão importante que não pode mais ser deixada de lado quando se aborda esse tema, seja no âmbito do tratamento ou da prevenção.
Observou-se que famílias de meninas usuárias de drogas parecem ser mais disfuncionais não só na sua dinâmica como um todo, mas nas suas peculiaridades no que diz respeito à interação entre pais e filhos e entre irmãs.
A maioria dos estudos descritos neste artigo sugere que esse tema precisa ser investigado mais a fundo, principalmente com estudos que abordem somente a população feminina. Grande parte das pesquisas aqui relatadas é constituída de estudos mistos ou comparativos entre gêneros. Poucas são as referências que abordam aspectos familiares somente de meninas usuárias de álcool e outras drogas.
A literatura deixa bem claro que existem grandes diferenças no tratamento e na prevenção entre a população masculina e a feminina. É bem provável que, ao se abordar o assunto família com maior profundidade, essas diferenças fiquem mais evidentes.
Referências
1. Hochgraf PB, Andrade AG. A questão do gênero nas farmacodependências. In: Cordás TA, Salzano FT (eds.) Saúde mental da mulher. São Paulo: Atheneu; 2004. p. 85-103.
2. Gomide PIC. Pais presentes, pais ausentes. Petrópolis: Editora Vozes; 2004.
3. Kumpfer KL, Alvarado R. Family-strengthening approaches for the prevention of youth problem behaviors. Am Psychol. 2003;58:457-65.
4. Duncan SC, Duncan TE, Strycker LA, Chaumeton NK. Relations between youth antisocial and prosocial activities. J Behav Med. 2002;25:425-38.
5. Baumann M, Spitz E, Predine R, Choquet M, Chau N. Do male and female adolescents differ in the effect of individual and family characteristics on their use of psychotropic drugs? Eur J Pediatr. 2007;166:29-35.
6. Yen JY, Yen CF, Chen CC, Chen SH, Ko CH. Family factors of internet addiction and substance use experience in Taiwanese adolescents. Cyberpsychol Behav. 2007;10:523-29.
7. Wild LG, Flisher AJ, Bhana A, Lombard C. Associations among adolescents risk behaviours and self-esteem in six domains. J Child Psychol Psychiatry. 2004;45:1454-67.
8. Weitoft GR, Hjern A, Haglund B, Rosén M. Mortality, severe morbidity and injury in children living with single parents in Sweden: a population-based study. Lancet. 2003;361:289-95.
9. Pratta EMM, Santos MA. Reflexões sobre as relações entre drogadição, adolescência e família: um estudo bibliográfico. Estud Psicol. 2006;11:315- 22.
10. Diez JP. El modelado familiar y el papel educativo de los padres en la etiología del consumo de alcohol en los adolescentes. Rev Esp Salud Publ. 1998;72:251-66.
11. Guiot ER, Bautista CF, Icaza MEMM, Morón MA, Rodríguez MD. Consumo de alcohol y drogas em estudiantes de Pachuca, Hidalgo. Salud Publ Mex. 1999;41:296-308.
12. Florenzano RU, Sotomayor PC, Otava MT. Estudio comparativo del rol de la socialización familiar y factores de personalidad en las farmacodependencias juveniles. Rev Chil Pediatr. 2001;72(3):219-33.
13. Pratta EMM, Santos MA. Opiniões dos adolescentes de ensino médio sobre o relacionamento familiar e seus planos para o futuro. Paidéia. 2007;17:103-14.
14. Tomori M, Zalar B, Pleniscar BK. Gender differences in psychosocial risk factors among Slovenian adolescents. Adolescence. 2000;35:431-43.
15. Kilpatrick DG, Acierno R, Saunders B, Resnick HS, Best CL, Schnurr PP. Risk factors for adolescent substance abuse and dependence: data from a national sample. J Consult Clin Psychol. 2000;68:19-30.
16. Adalbjarnardottir S, Rafnsson FD. Perceived control in adolescent substance use: concurrent and longitudinal analyses. Psychol Addict Behav. 2001;15:25-32.
17. Björkqvist K, Bätman A, Äman SB. Adolescents' use of tobacco and alcohol: correlations with habits of parents and friends. Psychol Rep. 2004;95:418-20.
18. Walden B, Iacono WG, McGue M. Trajectories of change in adolescent substance use and symptomatology: impact of paternal and maternal substance use disorders. Psychol Addict Behav. 2007;21:35-43.
19. Scholte RHJ, Poelen EAP, Willemsen G, Boomsma DI, Engels RCME. Relative risks of adolescent and young adult alcohol use: the role of drinking fathers, mothers, siblings, and friends. Addict Behav. 2008;33:1-14.
20. Pélissolo A, Gourion D, Notides C, Bouvard M, Lépine JP, Siméoni MCM. Familial factors influencing the consumption of anxiolytics and hypnotics by children and adolescents. Eur Psychiatry. 2001;16:11-7.
21. Li X, Stanton B, Cottrell L, Burns J, Packk K. Patterns of initiation of sex and drug-related activities among urban low-income African-American adolescents. J Adolesc Health. 2001;28:46-54.
22. Malcon MC, Menezes AMB, Chatkin M. Prevalência e fatores de risco para tabagismo em adolescentes. Rev Saúde Publ. 2003;37:1-7.
23. Wood JJ, McLeod BD, Sigman M, Hwang WC, Cho BC. Parenting and childhood anxiety: theory, empirical findings and feature directions. J Child Psychol Psychiatry. 2003;44:135-46.
24. Choquet M, Hassler C, Morin D, Falissard B, Chau N. Perceived parenting styles and tobacco, alcohol, and cannabis use among French adolescents: gender and family structure differentials. Alcohol. 2008;43:73-80.
25. Griffin KW, Botvin GJ, Scheier LM, Diaz T, Miller N. Parenting practices as predictors of substance use, delinquency, and aggression among urban minority youth: moderating effects of family structure and gender. Psychol Addict Behav. 2000;14:174-84.
26. Shek DT. Paternal and maternal influences on the psychological well-being, substance abuse, and delinquency of Chinese adolescents experiencing economic disadvantage. J Clin Psychol. 2005;61:219-34.
27. Steinglass P, Bennett LA, Wolin SJ, Reiss D. La familia alcohólica. Barcelona: Gedisa; 2001.
28. Farrell AD, White RS. Peer influences and drug use among adolescents: family structure and parent-adolescent relationship as protective factors. J Cons Clin Psychol. 1998;66:248-58.
29. Webb JA, Bray JH, Getz JG, Adams G. Gender, perceived parental monitoring, and behavioral adjustment: influences on adolescent alcohol use. Am J Orthopsychiatr. 2002;72:392-400.
30. Huebner AJ, Shettler L, Matheson JL, Meszaros PS, PiercyFP, Davis SD. Factors associated with former smokers among female adolescents in rural Virginia. Addict Behav. 2005;30:167-73.
31. De Micheli D, Formigoni ML. Drug use by Brazilian students: associations with family, psychosocial, health, demographic and behavioral characteristics. Addiction. 2004;99:570-8.
32. Schenker M, Minayo MCS. A implicação da família no uso abusivo de drogas: uma revisão crítica. Cienc Saúde Col. 2003;8:299-306.
33. Kaplan SJ, Salzinger S, Weiner M, Mndel FS, Lesser ML, Labruna VE. Adolescent physical abuse: risk for adolescent psychiatric disorders. Am J Psychiatr. 1998;155:954-9.
34. Guimarães ABP. Meninas usuárias de drogas: relatos de aspectos familiares, início de uso, distúrbios alimentares e comportamentos sexuais de risco [dissertação]. Curitiba: Universidade Federal do Paraná; 2004.
35. East PL, Khoo ST. Longitudinal pathways linking family factors and sibling relationship qualities to adolescent substance use and sexual risk behaviors. J Fam Psychol. 2005;19:571-80.
36. Dick DM, Rose RJ, Viken RJ, Kaprio J. Pubertal timing and substance use: associations between and within families across late adolescence. Dev Psychol. 2000;36:180-89.
37. Schenker M, Minayo MCS. A importância da família no tratamento do uso abusivo de drogas: uma revisão da literatura. Cad Saúde Publ. 2004;20:649-59.
Endereço para correspondência:
Ana Beatriz Pedriali Guimarães
Rua Desembargador Motta, 3493, Mercês
80430-200 - Curitiba, PR
Telefax: (41) 3339-4302
E-mail: pedrialiguimaraes@yahoo.com.br
Artigo original: