Artigos Científicos

Adaptação transcultural para o português brasileiro do Parental Bonding Instrument (PBI)

Simone Hauck et al;

24 de maio de 2010

Rev. psiquiatr. Rio Gd. Sul v.28 n.2 Porto Alegre maio/ago. 2006 

Adaptação transcultural para o português brasileiro do Parental Bonding Instrument (PBI)

 

Simone HauckI; Sidnei SchestatskyII; Luciana TerraIII; Laís KnijnikIV; Patrícia SanchezV; Lucia Helena Freitas CeitlinVI

IMédica Especialista em Psiquiatria. Mestranda em Psiquiatria, UFRGS, Porto Alegre, RS. Médica, HCPA, Porto Alegre, RS
IIMédico Especialista em Psiquiatria. Mestre em Saúde Pública, Harvard University, Boston, EUA. Doutorando em Psiquiatria, UFRGS, Porto Alegre, RS. Professor adjunto, Departamento de Psiquiatria e Medicina Legal, Faculdade de Medicina, UFRGS, Porto Alegre, RS
IIIPsicóloga. Auxiliar de Pesquisa, NET TRAUMA, HCPA, Porto Alegre, RS
IVMédica Especialista em Psiquiatria. Supervisora e auxiliar de pesquisa, NET TRAUMA, HCPA, Porto Alegre, RS
VMédica Especialista em Psiquiatria. Mestranda em Psiquiatria, UFRGS, Porto Alegre, RS
VIMédica Especialista em Psiquiatria. Mestre em Saúde Pública, Harvard University, Boston, EUA. Doutora em Clínica Médica, UFRGS, Porto Alegre, RS. Professora adjunta, Departamento de Psiquiatria e Medicina Legal, Faculdade de Medicina e Pós-Graduação em Ciências Médicas, UFRGS, Porto Alegre, RS

Correspondência


RESUMO

OBJETIVO: O artigo apresenta a adaptação transcultural do Parental Bonding Instrument, um questionário auto-aplicável desenvolvido em 1979 e usado desde então para avaliar a percepção da qualidade do vínculo com os pais até os 16 anos.
MÉTODO: Foram realizadas as etapas de equivalência conceitual, equivalência dos itens, equivalência semântica, equivalência operacional, equivalência funcional e aprovação da versão final pelo autor original do instrumento.
RESULTADOS: Os critérios de equivalência foram satisfeitos, tendo a versão final sido aprovada pelo autor do instrumento original.
CONCLUSÃO: A adaptação do Parental Bonding Instrument disponibiliza para uso um instrumento que já demonstrou ser extremamente útil em pesquisas de risco e resiliência nas últimas décadas, ao avaliar a percepção de características do comportamento dos pais tradicionalmente associadas ao desenvolvimento da personalidade.

Descritores: Tradução, pais, apego ao objeto, instrumento de vínculo parental.


 

INTRODUÇÃO

A importância da relação com os pais na infância no desenvolvimento da personalidade é tradicionalmente reconhecida pelos diferentes teóricos da psicologia. Estudos em humanos e em modelos animais evidenciaram que, além dos aspectos constitucionais, o comportamento real dos pais no sentido de oferecer carinho e proteção sem restringir a autonomia é central no desenvolvimento da capacidade de lidar com situações adversas na vida adulta e na diminuição do risco para psicopatologia, além de possibilitar o estabelecimento de vínculos saudáveis1-10. Esse efeito parece ocorrer através de fatores comportamentais, mas também devido a alterações neurobiológicas definitivas e modelagem da expressão gênica, tendo impacto direto em fatores de risco e resiliência herdados geneticamente11-23.

Com o objetivo de medir a contribuição do comportamento dos pais no desenvolvimento de um vínculo adequado entre pais e filhos, o Parental Bonding Instrument (PBI) foi elaborado em 1979 através de análises fatoriais sucessivas, a partir de 114 itens retirados da literatura e considerados qualidades parentais importantes para o desenvolvimento normal24. O PBI é um instrumento auto-aplicável tipo Likert (0 a 3), com 25 perguntas em relação ao pai e à mãe, em que o sujeito responde o quão parecido aquele comportamento é com o comportamento dos pais até os seus 16 anos. Esse instrumento mede dois construtos: o primeiro, afeto, mais consistente e claramente bipolar (afeto, calor, disponibilidade, cuidado, sensibilidade versus frieza e rejeição), e o segundo, controle ou proteção (controle, intrusão versus encorajamento da autonomia).

O PBI foi amplamente utilizado nas últimas décadas, e a falta de afeto, principalmente quando associada a excesso de controle (affectionless control), foi associada a patologias na vida adulta, como depressão, ansiedade, suicídio, transtornos de personalidade, entre outras1-8,25-29. Recentemente, a estabilidade do PBI em uma coorte de 20 anos, em uma população primariamente não-clínica - controlando para gênero, saúde física e mental, incluindo alterações de humor e neuroticismo, aspectos do estilo de vida, trabalho e rede social, além de eventos de vida significativos (positivos e negativos), sendo o nascimento de filhos uma variável independentemente analisada -, demonstrou que o PBI é, de fato, um instrumento psicometricamente robusto, estável ao longo do tempo e com mínima influência das variáveis em estudo, consolidando-se como um instrumento muito útil em pesquisas de risco e resiliência30. Além do mais, o PBI foi adaptado, validado e utilizado em diversas culturas sem alteração significativa do construto31-35. Já foi consistentemente evidenciado que fatores emocionais e alterações de humor parecem não afetar a percepção desses vínculos, mesmo quando o instrumento é primariamente aplicado em populações severamente doentes e replicado após intervalos consideráveis de tempo35,36.

A adaptação de instrumentos de pesquisa em diferentes culturas tem recebido atenção especial, por envolver questões culturais e de linguagem que podem comprometer de forma importante a validade conceitual e as propriedades psicométricas do instrumento. A adaptação de um instrumento para uma cultura diferente daquela para o qual foi originalmente desenvolvido e validado envolve diversas etapas. Embora não haja consenso, é bem estabelecido que a avaliação semântica é apenas um dos passos necessários ao processo de adaptação.

O modelo de adaptação proposto por Herdman et al. utiliza uma abordagem que admite a possibilidade de interlocução, mas não assume a priori a equivalência entre construtos nas diferentes culturas. O roteiro proposto inclui a apreciação da equivalência dos conceitos e dimensões apreendidas pelo instrumento original na cultura-alvo da nova versão, bem como a adequação de cada item do instrumento no sentido de avaliar os conceitos na população onde o instrumento pretende ser utilizado. Somente após essa etapa verifica-se a equivalência semântica, os aspectos operacionais e, por fim, as propriedades psicométricas da nova versão37. Esse roteiro foi utilizado em nosso meio por Moraes et al., que adaptaram um sistema de pontuação para a verificação da equivalência semântica na adaptação transcultural do instrumento Revised Conflict Tactics Scales (CTS2), para identificar violência entre casais no nosso meio38. Seguindo Moraes et al., Fiszman et al. utilizaram essa metodologia na adaptação do instrumento Dissociative Experiences Scale em nossa cultura39.

Sendo assim, esse estudo tem por objetivo apresentar o processo de adaptação transcultural do PBI para o português brasileiro no que diz respeito à equivalência conceitual, equivalência dos itens, equivalência semântica, equivalência operacional, equivalência funcional e aprovação da versão final pelo autor original do instrumento.

 

MÉTODO

Foi utilizado neste estudo uma adaptação do método utilizado por Moraes et al. para validação do instrumento CTS238.

Avaliação da equivalência conceitual e de itens

Essa etapa constituiu na discussão dos conceitos e dos itens do instrumento por um grupo de especialistas, composto por dois psiquiatras, dois terapeutas de família, dois psicanalistas, um psiquiatra da infância e da adolescência, uma assistente social e um médico comunitário. O foco da discussão inicial foi a consideração das diferentes formas de expressão de afeto em nosso meio, das peculiaridades da relação entre pais e filhos que pudessem diferir nas diferentes culturas, bem como das questões relacionadas ao cerceamento de liberdade e ao encorajamento de autonomia na nossa cultura. Após essa etapa, cada item foi avaliado no sentido de verificar se este media a dimensão proposta em nossa população, tanto em relação ao afeto quanto ao controle (restrição versus encorajamento de autonomia). Nessa primeira fase, foi realizada uma revisão bibliográfica que priorizou as publicações que deram origem ao instrumento, bem como aquelas que utilizaram o PBI ao longo das últimas décadas. Essa etapa visa conhecer os conceitos e definições teóricas que embasam o construto, bem como as estratégias utilizadas para a escolha dos itens que compõem a escala.

Avaliação da equivalência semântica

A avaliação da equivalência semântica foi composta por diversas etapas. Primeiramente, a equipe de pesquisa foi separada em dois grupos, que realizaram a tradução para o português brasileiro de forma independente, gerando as versões V1 e V2. Após essa etapa, foi realizado um piloto que incluiu pacientes com diferentes psicopatologias, com nível de instrução que variou entre 1 e 13 anos completos de estudo, e estudantes de psicologia, enfermagem e medicina voluntários. A idade dos participantes do primeiro piloto variou de 16 a 67 anos. Um dos grupos aplicou a V1 em pacientes do Centro de Atenção Psicossocial do Hospital de Clínicas de Porto Alegre (CAPS-HCPA) e em estudantes de medicina e enfermagem voluntários, enquanto o outro grupo aplicou a V2 em pacientes do Ambulatório de Psiquiatria do HCPA, em pacientes internados na Unidade de Psiquiatria do HCPA e em estudantes de psicologia e medicina voluntários. Nessa fase, o entendimento dos itens foi cuidadosamente discutido com os participantes.

A partir do piloto, o grupo se reuniu para elaborar uma terceira versão (V3), considerando os resultados obtidos e rediscutindo os aspectos relacionados à equivalência dos itens. Foi, então, verificada a equivalência semântica entre a V3 e a versão original do instrumento (VO). Existem diversos critérios a serem considerados na fase de equivalência semântica, que engloba o significado referencial (idéias e objetos), conotativo (resposta emocional evocada por cada palavra e pela sentença como um todo), afetivo (uma palavra da tradução pode refletir um julgamento moral do tradutor, por exemplo), além da própria questão da estruturação gramatical da sentença, em que, de fato, deve-se modificar a ordem das palavras no sentido de manter o significado ou a ênfase do original sempre que necessário. Com esse objetivo, optou-se por apresentar a V3 a dois tradutores independentes, que não conheciam o instrumento original, não-psiquiatras, um deles tendo como língua nativa o inglês e fluente em português (T1), e o outro tendo como língua nativa o português e fluente em inglês (T2). A partir dessas retrotraduções e da comparação com o instrumento original, os autores pontuaram a equivalência entre os pares de itens e o instrumento original quanto ao significado referencial (A1), com notas variando de 0 a 100%, e quanto ao significado geral (A2), seguindo o sistema de pontuação de Morais et al.: inalterado (IN), pouco alterado (PA), muito alterado (MA) e completamente alterado (CA)38,39. Essa pontuação foi realizada por três autores de forma independente, e o grupo discutiu eventuais divergências com o objetivo de obter um consenso (Tabela 1).

 

 

Avaliação da equivalência operacional e funcional

A equivalência operacional consiste na possibilidade da utilização do questionário na mesma formatação, modo de administração e métodos de mensuração do instrumento original. O quanto o instrumento mede em nosso meio o que se propõe a medir na cultura onde foi originalmente desenvolvido constitui a equivalência funcional. Nesse sentido, a versão final do PBI (anexo 1) foi novamente aplicada em uma população semelhante à do primeiro piloto, quando foram verificadas a equivalência operacional e a equivalência funcional.

Por fim, a versão final foi novamente retrotraduzida e apresentada ao autor do instrumento original, juntamente com a discussão das diferentes etapas do processo de adaptação.

 

RESULTADOS

Apreciação da equivalência conceitual e de itens

A discussão do grupo de especialistas e a revisão bibliográfica sugeriram que os conceitos relacionados ao comportamento parental e utilizados na elaboração do instrumento eram igualmente relevantes nas diferentes culturas. Além disso, de forma geral, os itens foram considerados adequados na avaliação das duas dimensões estudadas: afeto, calor, disponibilidade, cuidado, sensibilidade versus frieza e rejeição e controle e intrusão versus encorajamento da autonomia. Foi considerada também a utilização prévia do PBI em culturas bastante distintas sem modificação do construto e com propriedades psicométricas semelhantes, bem como sua capacidade de discriminar populações com diferentes patologias nas diferentes culturas em que já foi validado. A partir do primeiro piloto, o grupo reconsiderou os aspectos relacionados à equivalência dos itens, a partir do entendimento do significado dos mesmos pelos sujeitos e levando em conta a VO. No item 16, a tradução de Made me feel like I wasn't wanted para "Fazia com que eu sentisse que não era desejado" foi interpretada por uma parte dos sujeitos no sentido sexual, optando-se pela palavra "querido" na versão resultante. Além disso, o item 20 foi modificado, a partir do piloto, porque diversos sujeitos entenderam que "Sentia que eu não poderia cuidar de mim mesmo, a menos que ela/ele estivesse por perto" referia-se a um sentimento do sujeito e não dos pais. Optou-se, então, por acrescentar ela/ele no início da frase: "Ela/ele sentia que eu não poderia cuidar de mim mesmo, a menos que ela/ele estivesse por perto". Essa etapa deu origem à V3.

Avaliação da equivalência semântica

Quanto ao significado referencial, utilizou-se a média das avaliações quando houve divergência nos resultados. Nos itens pontuados com uma equivalência inferior a 90% (2, 11, 17 e 20), houve uma rediscussão da adequação da tradução para o português. Quanto ao significado geral, não houve divergência entre os juízes, e todos os itens foram considerados inalterados, exceto o 11 e o 17. Durante essa etapa, optamos por substituir a palavra "triste" por "chateado" na questão 17, por critério conotativo.

Finalmente, a versão final (anexo 1) foi aplicada novamente em uma população-piloto, que não referiu dificuldades no preenchimento do instrumento; porém, em termos de equivalência operacional, discutimos com o autor do instrumento original a possibilidade de apresentar a versão para o pai e a mãe em separado, devido à conjugação dos adjetivos conforme o gênero na nossa cultura. Apresentamos a versão final (anexo 1) conforme o modelo de formatação do original, que foi novamente retrotraduzida e enviada ao autor do instrumento original. Na discussão da versão final com o autor, ele considerou adequadas as duas formas de operacionalização, bem como a versão final do PBI para o português brasileiro (close enough to be completely acceptable - "suficientemente semelhante para ser completamente aceitável").

 

DISCUSSÃO

A equivalência funcional de uma adaptação transcultural supõe que o instrumento mede o que se propõe nas diferentes culturas e engloba todo o processo descrito, além da avaliação das propriedades psicométricas do instrumento na cultura para o qual se pretende utilizá-lo. Nesse sentido, é importante comparar se os resultados dos estudos que utilizem esse instrumento em nosso meio serão semelhantes àqueles encontrados em outras culturas, bem como se faz necessário para a sua validação final a utilização de estudos de análise fatorial da consistência interna através do teste á de Cronbach40 e a medida adequada dos itens através da análise de itens de Rasch41.

No entanto, o presente estudo disponibiliza para uso uma versão inicial, criteriosamente adaptada quanto aos aspectos de equivalência conceitual, equivalência de itens e equivalência semântica, de uma ferramenta de pesquisa de risco e resiliência amplamente utilizada nas últimas décadas, estável ao longo do tempo e aparentemente representativa da parentagem real. É importante salientar que o conhecimento dos aspectos do relacionamento entre pais e filhos que promovem saúde mental possibilita o desenvolvimento de estratégias de saúde pública em nível primário, como a educação dos pais no sentido de estarem cientes desses aspectos. Além disso, o reconhecimento da importância do comportamento dos pais na formação da personalidade tem encontrado ressonância em estudos atuais, que demonstram o impacto direto desse comportamento na modelagem neurobiológica e comportamental.

 

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Correspondência:
Simone Hauck
Hospital de Clínicas de Porto Alegre - Serviço de Psiquiatria
Rua Ramiro Barcelos, 2350, Largo Eduardo Zaccaro Faraco
CEP 900035-903 - Porto Alegre, RS
E-mail: shauck@terra.com.br
Tel.: (51) 9112.8585 / 3026.7251 / 2101.8439

 

O presente estudo foi realizado no Serviço de Psiquiatria, Núcleo de Estudos do Trauma (NET TRAUMA), Hospital de Clínicas de Porto Alegre (HCPA), e Departamento de Psiquiatria e Medicina Legal, Faculdade de Medicina, Universidade Federal do Rio Grande do Sul (UFRGS), Porto Alegre, RS.

 

 


Artigo original:

http://www.scielo.br/scielo.php?script=sci_arttext&pid=S0101-81082006000200008&lng=pt&nrm=iso&tlng=pt

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