Marcelo Gomes; André Palmini; Fabio Barbirato; Luis Augusto Rohde; Paulo Mattos
6 de agosto de 2010
Conhecimento sobre o transtorno do déficit de atenção/hiperatividade no Brasil
Knowledge about attention-deficit hyperactivity disorder in Brazil
Marcelo GomesI; André PalminiII; Fabio BarbiratoIII; Luis Augusto RohdeIV; Paulo MattosV
INovartis Biociências S.A
IIPrograma de Cirurgia de Epilepsia da Pontifícia Universidade Católica do Rio Grande do Sul
IIIPrograma TDAH Infanto-Juvenil da Santa Casa de Misericórdia do Rio de Janeiro
IVPrograma de Déficit de Atenção/Hiperatividade do Hospital de Clínicas de Porto Alegre da Universidade Federal do Rio Grande do Sul (UFRGS)
VGrupo de Estudos de Déficit de Atenção do Instituto de Psiquiatria da Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ)
RESUMO
OBJETIVO: Verificar o conhecimento da população sobre o transtorno do déficit de atenção/hiperatividade (TDAH) e de médicos, psicólogos e educadores sobre aspectos clínicos do transtorno.
MÉTODOS: 2.117 indivíduos com idade > 16 anos, 500 educadores, 405 médicos (128 clínicos gerais, 45 neurologistas, 30 neuropediatras, 72 pediatras, 130 psiquiatras) e 100 psicólogos foram entrevistados pelo Instituto Datafolha. A amostra da população foi estratificada por região geográfica, com controle de cotas de sexo e idade. A abordagem foi pessoal. Para os profissionais (amostra aleatória simples), os dados foram coletados por telefone em Belém, Fortaleza, Recife, Salvador, Brasília, Belo Horizonte, Rio de Janeiro, São Paulo, Curitiba e Porto Alegre.
resultados: Na população, > 50% acreditavam que medicação para TDAH causa dependência, que TDAH resulta de pais ausentes, que esporte é melhor do que drogas como tratamento e que é viável o tratamento psicoterápico sem medicamentos. Dos educadores, > 50% acreditavam que TDAH resulta de pais ausentes, que tratamento psicoterápico basta e que os esportes substituem os medicamentos. Entre psicólogos, > 50% acreditavam que o tratamento pode ser somente psicoterápico. Dos médicos, > 50% de pediatras e neurologistas acreditavam que TDAH resulta de pais ausentes.
CONCLUSÕES: Todos os grupos relataram crenças não respaldadas cientificamente, que podem contribuir para diagnóstico e tratamento inadequados. É urgente capacitar profissionais e estabelecer um programa de informação sobre TDAH para pais e escolas.
Palavras-chaves: Transtorno do déficit de atenção e hiperatividade, conhecimentos, atitudes e prática em saúde.
ABSTRACT
OBJECTIVE: To assess the knowledge of the general population concerning attention deficit/hyperactivity disorder (ADHD) and of physicians, psychologists and teachers concerning clinical aspects of the disorder.
METHODS: 2,117 individuals (age > 16 years), 500 teachers, 405 physicians (128 general practitioners, 45 neurologists, 30 neuropediatricians, 72 pediatricians, 130 psychiatrists) and 100 psychologists were interviewed by an independent research institute (Datafolha). Face-to-face interviews were conducted with a population sample stratified by geographic region, controlled by sex and age. Telephone interviews were conducted with the professional groups in Belém, Fortaleza, Recife, Salvador, Brasília, Belo Horizonte, Rio de Janeiro, São Paulo, Curitiba and Porto Alegre (simple random sampling).
RESULTS: Of the general population, > 50% believed that ADHD drugs lead to addiction, that ADHD results from absent parents, that sports are a better treatment than drugs and that treatment with psychotherapy without drugs is feasible. Among teachers, > 50% believed that ADHD results from absent parents, that ADHD can be treated with psychotherapy alone and that sports can replace drugs. Among psychologists, > 50% believed that ADHD can be treated with psychotherapy alone. Among physicians, > 50% of pediatricians and neurologists believed that ADHD results from absent parents.
CONCLUSION: All the groups reported beliefs that are not based on scientific evidence and that may contribute to inadequate diagnosis and treatment. It is urgent that these professional groups be trained and that an information program on ADHD be established for parents and schools.
Key-words: Attention deficit disorder with hyperactivity, health knowledge, attitudes, practice.
INTRODUÇÃO
O transtorno do déficit de atenção/hiperatividade (TDAH) é um problema de saúde importante cujas implicações variam desde dificuldades no desempenho escolar até problemas psicológicos e sociais (Brook e Geva, 2001; Mattos et al., 2006; Poeta e Rosa-Neto, 2004). A prevalência média em crianças e adolescentes gira em torno de 5% (Knipp, 2006; Polanczyk et al., no prelo; Rohde et al., 1999; Rohde e Halpern, 2004), e o TDAH persiste na vida adulta em cerca de 60% dos casos (Polanczyk e Rohde, no prelo).
Embora os sintomas primários do TDAH – desatenção, hiperatividade e impulsividade – sejam em geral facilmente reconhecíveis (Rohde e Halpern, 2004), o diagnóstico e o tratamento podem ser dificultados pela existência de mitos acerca da doença (Knipp, 2006). O diagnóstico do TDAH é clínico e se baseia, fundamentalmente, nos sintomas atuais, no caso de crianças, ou na combinação entre sintomas atuais e história clínica pregressa do comportamento, no caso de adultos. O tratamento do TDAH é multimodal, envolvendo intervenções psicossociais e psicofarmacológicas.
Conforme Rohde e Halpern (2004), os pacientes com o transtorno (ao menos as crianças) freqüentemente não apresentam manifestações clínicas do TDAH durante a consulta médica. Portanto, o diagnóstico definitivo depende da confiabilidade do relato de pais e professores, bem como da experiência de médicos e psicólogos para interpretar e avaliar os relatos e a história do paciente. Da mesma forma, o manejo bem-sucedido de pacientes com TDAH depende do entendimento da doença e do apoio dos que os cercam, já que a adesão ao tratamento é difícil mesmo quando há melhora (Knipp, 2006). Nesse contexto, é importante conhecer o nível de informação dos grupos que participam do processo de diagnóstico e tratamento desse transtorno.
Estudos em diversos países relatam lacunas no conhecimento de diferentes grupos sobre o TDAH. Conforme Bekle (2004), por exemplo, 53% dos estudantes de pedagogia e 48% dos professores concordaram com a afirmação de que o TDAH pode ser causado por açúcar ou outros aditivos alimentares. Esse mito também foi reafirmado por 44% de 486 cuidadores de crianças que freqüentavam turmas de educação especial na Flórida, nos Estados Unidos (Bussing et al., 1998). Em um grupo de pais de classe média com filhos em tratamento por TDAH, de 64% a 66% acreditavam que a dieta e o açúcar tinham influência no comportamento hiperativo. Além disso, 38% dos pais acreditavam que o acompanhamento psicoterápico era o melhor tratamento para TDAH e 55% manifestaram hesitação em usar a medicação com base em informações sobre estimulantes veiculadas na imprensa leiga (Bussing et al., 1998; Dosreis et al., 2003).
Na Austrália, um estudo com clínicos gerais mostrou que esses profissionais atribuíam o TDAH principalmente à ausência de disciplina e ao despreparo dos pais. Além disso, os clínicos acreditavam que o transtorno é excessivamente diagnosticado e que eles próprios não estavam preparados para diagnosticar e manejar pacientes com TDAH (Shaw et al., 2003). Em Israel, um estudo acerca do conhecimento e atitudes de estudantes de segundo grau em relação a seus colegas com TDAH ou dificuldades de aprendizagem concluiu que o conhecimento desse grupo sobre TDAH era insuficiente. Os estudantes expressaram impaciência com seus colegas portadores de TDAH, e a sua principal fonte de informação sobre o assunto eram a TV e os jornais (Brook e Geva, 2001).
Não existe, até o momento, nenhum levantamento desse tipo em nosso país. Dessa forma, o objetivo do presente estudo foi investigar o nível de informação da população leiga e de médicos, psicólogos e educadores brasileiros sobre (i) os atributos clínicos do TDAH (ii), o diagnóstico de TDAH e (iii) o manejo e o tratamento dos portadores de TDAH.
MÉTODOS
Para o presente estudo descritivo, quatro grupos foram entrevistados: população em geral com 16 anos ou mais (n = 2.117, erro amostral máximo de 2 pontos percentuais), educadores (n = 500, erro amostral máximo de 4 pontos percentuais), médicos (n = 405, erro amostral máximo de 5 pontos percentuais) e psicólogos (n = 100, erro amostral máximo de 10 pontos percentuais). Os dados foram coletados pelo Instituto Datafolha.
Para a população em geral, os dados foram coletados em todas as regiões brasileiras (61% em municípios do interior e 39% em municípios da região metropolitana). Para os grupos profissionais, foram coletados nas 10 principais capitais brasileiras: Belém, Fortaleza, Recife, Salvador, Brasília, Belo Horizonte, Rio de Janeiro, São Paulo, Curitiba e Porto Alegre. O trabalho de campo foi realizado entre 29 de junho e 5 de julho de 2006 para a população em geral e entre 31 de agosto e 20 de outubro de 2006 para os outros grupos.
Para a população, a amostra foi estratificada por região do país, com seleção aleatória dos entrevistados e controle de cotas de gênero e faixa etária com base em dados do IBGE. No caso dos educadores (diretores/vice-diretores, orientadores/coordenadores pedagógicos ou professores), a seleção foi aleatória, em listagem construída pelo Datafolha. Os dados finais foram ponderados considerando a proporção da população em cada uma das praças.
No caso dos médicos, a seleção foi aleatória simples em cadastro construído pelo Datafolha. Incluíram-se psiquiatras, clínicos gerais, pediatras, neurologistas e neuropediatras. Essas especialidades foram escolhidas por serem aquelas consideradas capacitadas para diagnosticar o transtorno (National Institute of Mental Health, 2006). O perfil de acordo com especialidades foi comparado aos dados do Conselho Federal de Medicina. No caso dos psicólogos, excluíramse aqueles que atendiam apenas em empresas ou aqueles dedicados a recursos humanos ou pesquisa. A amostra foi desproporcionalizada, com 10 entrevistas em cada uma das 10 capitais, sendo a seleção dos respondentes aleatória simples em cadastro construído pelo Datafolha.
As entrevistas foram realizadas da seguinte forma: para a população em geral, realizou-se uma abordagem pessoal dos entrevistados, com aplicação de um questionário estruturado com cerca de 15 minutos de duração. Após a coleta dos dados, em torno de 30% das entrevistas de cada entrevistador foram refeitas pessoalmente ou por telefone para checagem da correção dos dados. Para médicos, psicólogos e educadores, as entrevistas foram realizadas por telefone, tendo-se utilizado um questionário estruturado específico para cada grupo. Os questionários utilizados em cada etapa estão disponíveis no endereço eletrônico (www. tdah.org.br) da Associação Brasileira de TDAH.
Além do perfil demográfico, as entrevistas procuraram investigar se os entrevistados já tinham ouvido falar de TDAH antes e depois da leitura (conhecimento espontâneo e estimulado) da seguinte definição:
"A hiperatividade e o déficit, falta de atenção, considerados por alguns como um transtorno de comportamento, são denominados TDAH – transtorno do déficit de atenção e hiperatividade. Algumas características podem ser percebidas pelos que convivem com a pessoa que sofre desse transtorno:
• Pode ser muito agitada: por exemplo, mexe muito as mãos, os pés, não pára sentada, está sempre a 'mil por hora';
• Pode ter um comportamento agressivo e mudar muito rápido de humor;
• Pode ser desatenta e esquecida: por exemplo, costuma tirar notas baixas por não conseguir prestar atenção na aula, nem fazer as tarefas que são passadas pelo professor;
• Pode-se distrair com facilidade e esquecer o que tinha que fazer".
Investigou-se, ainda, a opinião dos entrevistados acerca dos atributos clínicos do TDAH, as fontes de informação sobre o tema, as condutas diagnósticas utilizadas por médicos e psicólogos, o tipo de tratamento recomendado e a fonte de indicação para tratamento (quem "identifica" o transtorno e sugere ao paciente que procure ajuda profissional).
Nas questões acerca dos atributos clínicos do TDAH, leram-se 11 frases aos entrevistados. Para cada uma delas, os entrevistados atribuíram um escore de 1 (discorda totalmente) a 5 (concorda totalmente). Os resultados foram expressos na forma de porcentagem de entrevistados que atribuíram os escores 4 e 5 a cada uma das perguntas em cada uma das quatro categorias (população em geral, educadores, médicos e psicólogos). As perguntas foram elaboradas para permitir uma visão ampla tanto sobre o grau de informação como também de desinformação – aí incluídos mitos – sobre a doença e seu manejo.
Para a comparação das características, conhecimento acerca do TDAH e opiniões entre os grupos (educadores, médicos e psicólogos), utilizou-se o Teste do Qui-quadrado para heterogeneidades e análise dos resíduos ajustados. O nível de significância considerado foi de 0,05. Os resultados estão apresentados em forma de freqüências relativas.
RESULTADOS
A tabela 1 apresenta as principais informações demográficas da população em geral, enquanto a tabela 2 mostra os dados de sexo e idade para os outros grupos estudados.
Nível de informação da população em geral sobre TDAH
Quanto ao conhecimento espontâneo sobre TDAH, constatou - se que, na população em geral, 9% (189 pessoas) haviam ouvido falar no transtorno; 91% responderam negativamente à pergunta "você já ouviu falar em transtorno do déficit de atenção e hiperatividade, o TDAH?".
O fato de o TDAH ser uma doença foi referido por 69% dos 189 entrevistados da população geral que já tinham ouvido falar sobre o transtorno; além disso, 89% acreditavam que o TDAH afeta crianças, 85%, que afeta adolescentes e 71%, que afeta adultos. Após a leitura de uma definição do TDAH (conhecimento estimulado), a proporção de indivíduos que afirmaram ter ouvido falar do transtorno na população geral subiu para 67%.
Como mostra a tabela 3, 65% dos entrevistados na população em geral acreditavam que as crianças têm TDAH porque os pais são ausentes, 23% acreditavam que se pode conviver bem com o TDAH sem tratamento e 19% acreditavam que uma criança hiperativa "precisa é de umas boas palmadas". As principais fontes de informação sobre TDAH para a população foram TV (33%), jornal (25%), revistas (24%), amigos/parentes (18%) e médicos (10%).
Com exceção da afirmação "a pessoa pode conviver com TDAH sem tratamento", houve diferença significativa entre os grupos em relação à proporção de entrevistados que concordavam com todas as outras afirmações (tabela 3). Tomando a população como categoria de referência, observou-se diferença significativa (p < 0,05) entre esse grupo e psicólogos, médicos e educadores em praticamente todas as questões. A população foi semelhante aos psicólogos e diferente de médicos e educadores em relação às afirmações "o TDAH é uma doença e deve ser tratada com medicamentos" e "a pessoa portadora de TDAH pode ser tratada com psicoterapia sem medicamentos". No primeiro caso, população em geral e psicólogos concordavam menos com a afirmação do que os médicos e mais do que os educadores. Na segunda afirmação, concordavam mais do que os médicos e menos do que os educadores. Além disso, população e educadores concordavam menos do que médicos e psicólogos com a afirmação de que os benefícios dos remédios para TDAH são maiores do que os seus efeitos colaterais.
Conhecimento dos profissionais sobre aspectos clínicos do TDAH
Dos educadores, 87% (432 entrevistados) manifestaram já ter ouvido falar sobre TDAH na questão espontânea. Desses, 50% não consideravam o TDAH uma doença, embora 67% tenham afirmado conhecer algum portador de TDAH. Ainda, 99% desses 432 educadores afirmaram que o TDAH ocorre em crianças, 92% que ocorre em adolescentes e 77% que ocorre em adultos. Após a leitura do conceito, 100% dos educadores afirmaram ter ouvido falar de TDAH.
Quanto aos atributos clínicos do TDAH (tabela 3), 77% dos educadores acreditavam que o portador pode ser tratado só com psicoterapia, 59% acreditavam que muitas crianças têm o diagnóstico de TDAH porque os pais são ausentes e não sabem impor limites e 52% acreditavam que a prática de esportes substitui o tratamento com medicamentos.
As principais fontes de informação sobre TDAH no caso dos educadores foram escola/faculdade (35%), livros (32%), revistas (27%), jornal (17%) e palestras/seminários/congressos/simpósios (13%).
Entre os psicólogos, 100% informaram já ter ouvido falar sobre o TDAH e 67% afirmaram ter contato com portadores de TDAH. Entretanto, como mostra a tabela 3, 66% acreditavam que o portador de TDAH pode ser tratado com psicoterapia e sem o uso de medicamentos, 45% acreditavam que é melhor para o hiperativo praticar esportes do que tomar medicamento, 43% acreditavam que a criança tem o diagnóstico de TDAH porque os pais são ausentes, 29% acreditavam que a medicação funciona como uma droga e causa dependência e 17% acreditavam que a pessoa pode conviver bem com o transtorno sem tratamento.
Entre os médicos como um todo, 98% demonstraram conhecimento sobre TDAH; de todas as especialidades médicas, apenas os clínicos gerais referiram não ter ouvido falar em TDAH (7% dos 128 clínicos gerais não conheciam TDAH mesmo após a leitura da definição). Dos médicos que conheciam TDAH, 50% (190 médicos) tratavam portadores dessa doença.
A tabela 4 mostra a opinião de cada especialidade médica sobre os atributos clínicos do TDAH. Chama a atenção o percentual de profissionais que acreditavam que muitas crianças têm diagnóstico de TDAH porque os pais são ausentes: 55% para pediatras, 53% para neurologistas, 45% para clínicos gerais, 42% para psiquiatras e 25% para neuropediatras. A comparação entre as categorias médicas revelou diferenças significativas para as afirmações "o TDAH é uma doença e deve ser tratada com medicamentos", para a qual os clínicos gerais manifestaram a menor concordância; "a pessoa pode conviver com TDAH sem tratamento" (maior concordância dos neuropediatras); "a medicação para o TDAH causa dependência" (maior concordância dos neurologistas); "quando se pensa nos remédios para TDAH, pode-se dizer que seus benefícios são maiores do que os efeitos colaterais", para a qual os clínicos gerais manifestaram a menor concordância; "é melhor para o hiperativo praticar esportes do que tomar medicamento" e "a prática de esportes substitui o tratamento com medicamentos" (em ambas, maior concordância dos pediatras).
Diagnóstico de TDAH
As condutas diagnósticas mais comumente utilizadas pelos 190 médicos e pelos 65 psicólogos que informaram atender pacientes com TDAH foram o relato de sintomas clínicos pelo paciente (respectivamente, 95% e 92%) e o relato de sintomas clínicos pelos pais/parentes ou professores do paciente (respectivamente, 95% e 92%). Os critérios diagnósticos do DSM-IV (American Psychiatric Association, 2000) foram utilizados para diagnóstico por 76% e 80% dos médicos e psicólogos que tratavam portadores de TDAH, e escalas de atenção e hiperatividade foram utilizadas por, respectivamente, 56% e 50%. O eletroencefalograma foi mencionado por 46% dos médicos que atendiam portadores.
Manejo e tratamento do TDAH
Noventa e quatro por cento dos 190 médicos que disseram tratar pacientes com TDAH prescreviam medicamentos, enquanto 86% indicavam também terapia psicológica e 6%, homeopatia (88% prescreviam mais de um tipo de tratamento simultaneamente). Em relação às especialidades médicas, a distribuição foi a seguinte: 100% dos psiquiatras e neuropediatras que tinham pacientes com TDAH prescreviam medicamentos; 87% dos clínicos gerais, 85% dos neurologistas e 64% dos pediatras. A terapia psicológica era indicada por 87% dos psiquiatras, 73% dos clínicos gerais, 92% dos pediatras, 87% dos neurologistas e 84% dos neuropediatras.
Os três medicamentos mais comumente prescritos foram Ritalina® (82%), Concerta® (41%) e Ritalina LA® (37%). A tabela 5 mostra os aspectos considerados por médicos e psicólogos como satisfatórios ou insatisfatórios nas estratégias atualmente disponíveis para tratamento de TDAH.
Quanto ao encaminhamento de pacientes, os médicos afirmaram que é a escola que indica 64% dos pacientes com TDAH ao consultório; 32% das indicações vêm de pais, 30%, de pediatras, 23%, de psicólogos e 15%, de psicopedagogos. Os psicólogos citaram a escola (56%), neurologistas (30%), pais (16%), o próprio paciente depois de receber informações sobre os sintomas (16%), psiquiatras (14%) e pediatras (12%).
DISCUSSÃO
O presente estudo apresenta um panorama do conhecimento e percepções acerca do TDAH no Brasil. Até onde se sabe, este é o primeiro estudo dessa natureza realizado em nosso país. A maior parte dos estudos publicados até o presente momento, em diversos países, sobre atitudes, conhecimento e percepções acerca do TDAH, incluiu populações pequenas e amostras de conveniência. Dessa forma, acreditamos que os resultados aqui descritos são válidos como primeira descrição sobre o conhecimento do TDAH no Brasil e servem como um alerta para a necessidade de um esforço direcionado para informar melhor tanto a população quanto os grupos profissionais pesquisados.
Como sugerido anteriormente (Bekle, 2004), embora o auto-relato dos grupos indique consciência acerca da entidade clínica TDAH, existem importantes equívocos quanto a essa entidade, potencialmente mais graves nos grupos profissionais, uma vez que estes se responsabilizarão pelo encaminhamento, diagnóstico e tratamento dos portadores. Isso fica especialmente evidente nos educadores, o único grupo profissional no qual parte dos entrevistados (uma parcela expressiva) afirmou que o TDAH não é uma doença.
Outro exemplo é que, para 77% dos educadores, a prática do esporte é mais vantajosa para o hiperativo do que o uso de medicamentos. É preocupante que grupos em posição privilegiada para triar e encaminhar possíveis casos de TDAH para especialistas não estejam adequadamente informados: a eficácia da prática de esportes não é respaldada por estudos científicos, representando meramente opiniões pessoais sem fundamentação adequada (Barkley, 2004; Silverstein e Allison, 1994).
De fato, os estudos têm demonstrado que mesmo as abordagens combinadas, por exemplo, medicação e psicoterapia comportamental, não são eficazes em comparação com o uso isolado de medicamentos (Barkley, 2004; Rohde e Halpern, 2004). Tendo em conta a importância do acompanhamento dos pacientes com TDAH para o sucesso do tratamento, assim como a freqüência do contato entre educadores e portadores de TDAH na escola, torna-se urgente o estabelecimento de um programa que possa informar corretamente esse grupo profissional.
Além disso, Shaw et al. (2003) apontam que, embora pareça existir certa preocupação com um excesso de diagnósticos de TDAH, ou ainda com diagnósticos errôneos, as evidências indicam que a situação é oposta, com a maioria dos portadores do transtorno permanecendo sem medicação ou, inclusive, sem diagnóstico (Lalonde et al., 1998; Shaw et al., 2003). Para Barkley (2004), há uma resistência pública em aceitar que o TDAH é uma entidade de base biológica, cuja provável origem seja neurogenética. É importante que grupos como os educadores reconheçam o caráter neurobiológico do TDAH para entender, entre outros aspectos, a ineficácia das punições (Brook e Geva, 2001) e encaminhar corretamente os casos. Os presentes resultados demonstram que, para os educadores brasileiros, o TDAH não se associa a uma disfunção do sistema nervoso central. Estudos futuros devem investigar de que forma a escola se prepara para identificar e acompanhar portadores de TDAH.
Os professores são um grupo especialmente sensível no ciclo diagnóstico do TDAH. No presente estudo, tanto os médicos como os psicólogos indicaram que a maioria dos casos de TDAH era encaminhada a eles por escolas. Da mesma forma, um grupo de médicos de família, pediatras e psiquiatras pediátricos nos Estados Unidos informou que os professores ou outro profissional da escola sugeriam o diagnóstico de TDAH em mais de 50% dos casos (contra 30% para os pais e 11% para médicos que prestam atenção primária) (Sax e Kautz, 2003). Além disso, Havey afirma que a falta de atenção no DSM-IV é definida, em grande parte, com base em atividades acadêmicas, e as observações e percepções dos professores são essenciais (Havey, 2007).
Recentemente, Havey (2007) comparou as percepções de professores americanos e holandeses sobre a incidência e o manejo de TDAH e enfatizou o grande número de fatores subjetivos que podem estar envolvidos no modo como esses profissionais identificam o TDAH e lidam com esse transtorno. Nesse sentido, torna-se extremamente importante o fornecimento de informações atualizadas e corretas e também a comparação entre educadores de diferentes países a fim de identificar fatores culturais que possam influenciar determinadas percepções.
Segundo Bussing et al. (1998), à semelhança do que ocorre com outras doenças crônicas, parece haver um descompasso entre o entendimento leigo e biomédico acerca do transtorno. No presente estudo, um dos grupos para quem se investigou a fonte de informações sobre TDAH, a população em geral, revelou que obtinha praticamente todas as informações de fontes leigas (como TV), sendo os médicos apenas a quinta opção citada. A imprensa foi citada também por outros autores (Brook e Geva, 2001; Bussing et al., 1998) que relataram lacunas no conhecimento acerca do TDAH nos grupos que pesquisaram.
Para os educadores, é digno de nota que a faculdade ou escola representem a fonte de informação mais citada (35%), podendo esse fato se originar da veiculação inadequada de informações nos cursos de graduação. Por outro lado, Bekle (2004) relata que, entre estudantes de pedagogia, aqueles que não haviam recebido nenhum ou pouco treinamento sobre TDAH manifestaram uma atitude mais positiva em relação ao transtorno do que aqueles que haviam recebido treinamento. Conforme essa autora, isso talvez indique que aqueles que receberam treinamento parecem ter uma compreensão inadequada de aspectos cruciais, refletindo a ineficácia do treinamento.
Entre os médicos, 7% dos clínicos gerais referiram não conhecer o TDAH mesmo após a leitura de uma definição. Shaw et al. (2003) constataram, na Austrália, que os clínicos gerais não se sentiam preparados para diagnosticar nem supervisionar o tratamento de TDAH. Uma suposta complexidade do diagnóstico, restrições de tempo, ausência de informação e treinamento acerca da doença e preocupação com o uso errôneo de medicação foram os motivos alegados pelos médicos naquele estudo para a sua relutância em tratar casos de TDAH. Esses aspectos não foram especificamente investigados no presente estudo.
Bekle (2004) afirma que a área de maior deficiência em relação ao conhecimento do TDAH parece ser aquela que envolve mitos. O presente estudo corrobora essa observação, como mostram os resultados sobre a opinião acerca dos atributos clínicos. Embora, por exemplo, 100% dos psicólogos afirmem conhecer o TDAH, para 12% o transtorno é um assunto inventado por laboratórios, e para 43% deles muitas crianças têm diagnóstico de TDAH porque os pais são ausentes.
Há ampla literatura sobre prevalência, perfil de comorbidades, genética e achados neuropsicológicos e de neuroimagem para sustentar que o TDAH é um transtorno neurobiológico com forte influência genética (Barkley, 2004; Rohde et al., 2005). Além disso, o percentual de entrevistados que acreditam, por exemplo, que o TDAH esteja de alguma forma relacionado à ausência relativa ou absoluta dos pais no dia-a-dia das crianças e adolescentes foi elevado em todos os grupos (o menor percentual foi de 43%, entre médicos), evidenciando lacunas importantes no conhecimento técnico de profissionais.
CONCLUSÕES
No Brasil, à semelhança do que se demonstrou em outros países, é insuficiente o conhecimento acerca do TDAH, tanto na população em geral quanto em profissionais envolvidos no seu diagnóstico e tratamento. Embora os médicos e os psicólogos tenham demonstrado ser o grupo com maior nível de conhecimento, ainda há lacunas e contradições explicitadas no auto-relato desses profissionais acerca do tema. É urgente o estabelecimento de um programa de capacitação e educação continuada para profissionais que lidam com TDAH, especialmente clínicos gerais e pediatras, educadores e psicólogos, assim como um efetivo programa de informação aos pais e escolas, de forma a garantir o diagnóstico correto e o tratamento bem-sucedido dos portadores de TDAH.
AGRADECIMENTOS
Este estudo foi possível pelo patrocínio do Laboratório Novartis, com a participação da Associação Brasileira do Déficit de Atenção, uma entidade sem fins lucrativos.
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Endereço para correspondência:
Marcelo Gomes
Av. Professor Vicente Rao, 90
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