Artigos Científicos

Transtornos da aprendizagem: conceito, quadro clínico e avaliação DIAGNÓSTICA

Patrícia Gouveia Ferraz

2 de dezembro de 2006

Transtornos da aprendizagem: conceito, quadro 

clínico e avaliação DIAGNÓSTICA.

                                                           Patrícia Gouveia Ferraz[1]

1.1-   Histórico do conceito:

 

As observações iniciais sobre as anormalidades da leitura e escrita, datam de 1887, quando Berlin, médico oftalmologista alemão, descreveu em adultos lesionados, o termo “dislexia” (Cypel, 1994). Em 1925, Samuel T. Orton reuniu 65 crianças com várias dificuldades de leitura, escrita e soletração, e atribuiu a isto o fato da maioria ser de canhotos, ambidestros ou apresentarem lateralidade cruzada (Cypel, 1994). Na mesma época, Dupré descreveu um grupo de crianças que apresentavam dificuldades no aprendizado escolar, cujo comportamento caracterizava-se pela inquietude, curta fixação da atenção e atitude desajeitada (Dupré, 1925). Em 1947, o tema é retomado por Strauss e Lethinen, que se referem a estas crianças como portadoras de “lesão cerebral mínima”, termo largamente utilizado porém sem maiores comprovações através de exames que demonstrassem estas “lesões”. Em 1962, em Oxford, Inglaterra, o termo “lesão” foi substituído por “disfunção cerebral mínima”. A partir de então surgiram várias publicações sobre esta “disfunção”, cuja principal manifestação era a dificuldade escolar, fazendo com que estes dois conceitos tivessem o mesmo significado (Cypel, 1994).

Esta “disfunção” nunca foi devidamente caracterizada, e outros fatores que influenciam no aprendizado escolar começaram a ser notados e melhor estudados, levando este termo ao desuso.

O termo “dislexia” é amplamente utilizado na denominação das anormalidades do desenvolvimento das habilidades escolares, principalmente leitura e escrita, e cuja definição é imprecisa( Stanovich, 1994).

O conceito de “dificuldade de aprendizagem” passou por várias etapas, no entanto ainda hoje não há um consenso sobre sua definição. Hammill (1990) publicou uma síntese da sucessão histórica desses conceitos, fulcrado em uma literatura anglófona.

A primeira definição de que se tem relato é a proposta por Kirk, apresentada em 1963, afirmando que “Uma dificuldade de aprendizagem refere-se a um retardamento, transtorno, ou desenvolvimento lento em um ou mais processos da fala, linguagem, leitura, escrita, aritmética ou outras áreas escolares, resultantes de um handicap causado por uma possível disfunção cerebral e/ou alteração emocional ou de conduta. Não é o resultado de retardamento mental, de privação sensorial ou fatores culturais e instrucionais.” Esta definição foi reestudada e reapresentada mais tarde no National Advisory Committee on Handicapped Children (1968) e na United States Office of Education (1977).

Garcia,1998, com base na definição do “National Joint Committee on Learning Disabilities” de 1988, define dificuldade de aprendizagem como um termo geral que se refere a um grupo heterogêneo de transtornos que se manifestam por dificuldades significativas na aquisição e uso da escuta, fala, leitura, escrita, raciocínio ou habilidades matemáticas. Esses transtornos são intrínsecos ao indivíduo, supondo-se à disfunção do sistema nervoso central, e podem ocorrer ao longo do ciclo vital. Podem existir junto com as dificuldades de aprendizagem, problemas nas condutas de auto-regulação, percepção e interação social, mas que não constituem, por si próprias, uma dificuldade de aprendizagem. Ainda que estas possam ocorrer concomitante com outras condições incapacitantes (por exemplo: deficiência sensorial, retardo mental, transtornos emocionais graves) ou por influências extrínsecas (diferenças culturais, instrução inapropriada ou insuficiente) não são o resultado dessas condições ou influências.

A Organização Mundial de Saúde na Classificação Internacional de Doenças CID-10 (WHO, 1992), denomina de transtornos específicos do desenvolvimento das habilidades escolares - F81, e os coloca no bloco dos Transtornos do desenvolvimento psicológico - F80.

A Associação Americana de Psiquiatria, no seu Manual Diagnóstico e Estatístico de Transtornos Mentais (DSM), apresenta definições também descritivas, no sentido de que não propõe causas nem teorias na base destas definições.

Até o DSM-III-R (APA, 1989), os transtornos da aprendizagem eram denominados como Transtornos das Habilidades Escolares e estavam relacionados sob o diagnóstico do Eixo II de transtornos específicos do desenvolvimento. No DSM-IV (APA, 1995), estão numa seção separada, a dos Transtornos Geralmente Diagnosticados pela Primeira Vez na Infância ou Adolescência.

A definição destes transtornos, conforme o DSM-IV (APA, 1995) é: “um funcionamento acadêmico substancialmente abaixo do esperado, tendo em vista a idade cronológica, medidas de inteligência e educação apropriadas à idade.” A estes transtornos incluem-se transtornos de leitura, transtorno da matemática, transtorno da expressão escrita e transtorno da aprendizagem sem outra especificação.

Essas inabilidades não se devem a transtornos físicos ou neurológicos demonstráveis ou a um transtorno global do desenvolvimento, ou a um retardo mental. Atualmente acredita-se que estes transtornos têm origem em anormalidades do processo cognitivo, derivadas, em grande parte, de algum tipo de disfunção biológica ainda não testadas e comprovadas através dos métodos convencionais de análise laboratorial e de imagem do sistema nervoso central.

 Como em outros transtornos do desenvolvimento, essas condições são substancialmente mais comuns em meninos do que em meninas, numa razão que varia de 3:1 a 5:1 (Lewis, 1995; Ackerman et al., 1983; Finucci e Childs, 1981; Rutter et al., 1976).

1.2-   Critérios Diagnósticos:

A definição dos critérios para o diagnóstico dos transtornos da aprendizagem esbarra na dificuldade conceitual  e na grande variedade de denominações sinônimas. A definição proposta por Garcia,1998, por exemplo , fala de “dificuldade de aprendizagem” e “transtornos da aprendizagem” como a mesma entidade. Sabe-se empiricamente que a “dificuldade” aparece em várias situações intrínsecas ao indivíduos e relacionadas ao ambiente externo, conforme representado graficamente na figura 1. E por definição os transtornos da aprendizagem não podem ser explicados por estas condições.

 


 


Figura 1- Fluxograma de avaliação da dificuldade de aprendizagem  (Ostrander, 1993)

 

 

 

De acordo com a CID-10 (WHO, 1992) encontramos outros cinco tipos de dificuldades para este diagnóstico. Primeiro, há necessidade de diferenciar os transtornos das variações normais durante o processo escolar. Segundo, há necessidade de considerar o curso do desenvolvimento, considerando gravidade e mudança no padrão. Terceiro, a dificuldade de se estabelecer o que é ensinado e aprendido. As habilidades de uma criança dependem das circunstâncias familiares e escolares, bem como das características pessoais. Quarto, a dificuldade de diferenciar, em uma criança, anormalidades do processo cognitivo que causam dificuldades de leitura daquelas que derivam ou estão associadas à pobreza das habilidades de leitura. Lembrando que transtornos de leitura podem ser decorrentes de mais de um tipo de anormalidade cognitiva. Quinto, há incertezas sobre a melhor forma de subdividir os transtornos específicos do desenvolvimento das habilidades escolares.

As características de cada país em relação ao ensino formal variam, sendo este mais um fator complicador para se estabelecer definições operacionais de transtornos de habilidades escolares, com validade internacional.

O diagnóstico dos transtornos da aprendizagem é descritivo e feito quando os resultados de testes padronizados (Wisc, Bender etc.), aplicados individualmente, para leitura, matemática ou expressão escrita, são significativamente abaixo do esperado para a idade, escolarização e nível de inteligência, conforme DSM-IV (APA, 1995).

 

Transtorno da Leitura: caracteriza-se por um comprometimento do reconhecimento de palavras, leitura fraca e inexata, e baixa compreensão da leitura na ausência de déficits de inteligência ou de memória significativa (Kaplan, 1997).

O termo dislexia, amplamente usado no passado para transtorno de leitura, está em desuso, pois este transtorno é freqüentemente acompanhado por deficiências em outras aptidões acadêmicas, sendo mais adequado usar termos mais gerais como transtorno de aprendizagem (Kaplan, 1997).

De acordo com DSM-IV (APA, 1995), transtorno de leitura consiste em um rendimento da leitura substancialmente inferior ao esperado para idade cronológica, inteligência medida e escolaridade, sendo este o primeiro critério diagnóstico para este transtorno. O segundo é que a perturbação da leitura interfere significativamente no rendimento escolar ou nas atividades na vida diária que exigem leitura. E o terceiro critério é, na presença de um déficit sensorial, as dificuldades de leitura excedem aquelas geralmente a estes associadas.

Conforme a CID-10 (WHO, 1992), as crianças com transtornos específicos de leitura, com freqüência, têm história de comprometimento da fala, linguagem e ortografia.

Estudos epidemiológicos estimam 2 a 8% de crianças na idade escolar, nos Estados Unidos tenham transtorno de leitura (Kaplan, 1997).

Este transtorno provavelmente tem etiologia multifatorial; várias causas são inferidas, a partir de estudos realizados nos países desenvolvidos. Pode ser uma manifestação de atraso evolutivo ou maturativo. Um transtorno de leitura severo pode estar associado a problemas psiquiátricos, podendo resultar destes ou ser a causa de transtornos emocionais e comportamentais (Silver, 1995).

O transtorno de leitura, em geral torna-se notável aos 7 anos, durante a primeira série, podendo ser evidente antes ou depois, até os 9 anos.

As crianças com este transtorno cometem muitos erros de leitura oral. Esta se caracteriza por omissões, adições e distorções de palavras. Essas crianças têm dificuldade para distinguir os caracteres e os tamanhos de letras impressas, especialmente as que diferem apenas na orientação espacial e no comprimento do traço (Shephered et al., 1989).

 O ritmo de leitura é lento, freqüentemente com compreensão mínima, e soletrar é quase sempre muito ruim.

A maioria das crianças, com este transtorno,  não gosta de ler , escrever e evita fazê-lo, demonstrando grande ansiedade quando chamadas à leitura.

Transtorno da Matemática: consiste essencialmente numa deficiência na execução das habilidades aritméticas esperadas para a aptidão intelectual e nível educacional do indivíduo (Kaplan, 1997). Essas habilidades são medidas por testes padronizados aplicados individualmente, e as dificuldades excedem os prejuízos associados a quaisquer déficits neurológicos ou sensoriais existentes.

O transtorno da matemática, ou discalculia, só foi considerado transtorno psiquiátrico a partir de 1980, com a terceira edição do Manual de Diagnóstico e Estatística de Transtornos Mentais (DSM-III). A partir do DSM-IV (APA, 1995), o transtorno de matemática faz parte dos transtornos da aprendizagem.

Os critérios diagnósticos para este transtorno são muito parecidos com os critérios usados para o transtorno de leitura, acima descrita, conforme o DSM-IV (APA, 1995). Foram identificados quatro grupos de habilidades comprometidas neste transtorno: habilidades lingüísticas, aquelas relacionadas ao entendimento dos termos matemáticos; habilidades perceptivas, capacidade de reconhecer e compreender símbolos; habilidades matemáticas, conhecimento das quatro operações; e habilidades de atenção, cópia e observação correta de símbolos operacionais.

Dentre o grupo de crianças em idade escolar , que não apresentam retardo mental , cerca de 6% apresentam o transtorno da aprendizagem. A etiologia é desconhecida, provavelmente multifatorial. Pode-se detectar este problema já por volta da segunda ou terceira série, e alguns pesquisadores subdividem este transtorno em subcategorias (Kaplan, 1997).

O transtorno de matemática freqüentemente coexiste com outros transtornos específicos do desenvolvimento, problemas de ortografia, déficits de memória ou atenção e problemas emocionais e comportamentais podem estar presentes. Não há uma relação evidente entre os transtornos de linguagem e o transtorno de matemática, mas essas condições coexistem (Silver, 1995).

Transtorno da Expressão Escrita: baseia-se num desempenho consistentemente fraco do indivíduo na composição de textos (Kaplan, 1997). O desempenho na escrita é muito inferior ao esperado para a aptidão intelectual e escolaridade. É também chamado de disgrafia.

As crianças apresentam muito cedo as inaptidões para grafia na escola. Tanto as frases faladas como escritas apresentam um grande número de erros gramaticais, e de  organização de parágrafos. À medida que crescem apresentam frases cada vez mais curtas, primitivas e irregulares, incompatíveis com o avanço da escolaridade (Kaplan, 1997).

Nota-se nessas crianças um progressivo desinteresse para freqüentar a escola e para fazer as tarefas, culminando por vezes em transtornos de conduta. Adultos que não receberam intervenção reparadora sofrem na adaptação social, bem como de um desconfortável senso de incompetência, inferioridade e afastamento (Silver, 1995).

Transtorno da Aprendizagem Sem Outra Especificação: esta é uma nova categoria do DSM-IV (APA, 1995) para transtornos que não reúnem os critérios para qualquer transtorno de aprendizagem específico, mas que causam comprometimento e refletem aptidões abaixo das esperadas para a inteligência, escolaridade e idade do indivíduo. Podem incluir problemas nas três áreas: leitura, matemática e expressão escrita. Interferem significativamente no rendimento escolar, embora o desempenho nos testes que medem cada habilidade isoladamente não esteja acentuadamente abaixo do nível esperado, como dito acima.

Aos critérios do DSM-IV (APA, 1995) somam-se outros descritos alguns autores que ampliam a definição destes transtornos. Enumeramos a seguir alguns critérios que devem ser caracterizados para o diagnóstico dos transtornos de leitura, escrita e cálculo.

Os critérios de diagnóstico do DSM-IV (APA, 1995) são muito abrangentes e pouco descritivos. Encontramos na literatura especializada, critérios mais específicos que caracterizam melhor os transtornos da leitura , da matemática e da escrita.

Abaixo temos os critérios de diagnóstico para os transtornos da leitura (Sacristan, 1995):

·        dificuldade para diferenciar as letras;

·        dificuldade para unir letras e sílabas;

·        inversão de letras e sílabas;

·        substituição de letras e sílabas;

·        supressão ou adição de letras;

·        leitura oral lenta, sem pontuação;

·        falta de compreensão do que é lido

 

As dificuldades de escrita são divididas em três categorias: transtornos gramaticais, fonológicos e visoespaciais (Garcia, 1998).

As dificuldades de cálculo são definidas a partir do não cumprimento dos requisitos esperados para idade e condição maturacional. Estes requisitos têm como base à teoria de evolução de Piaget (Garcia, 1998)  que para crianças de 3 a 6 anos espera-se:

-         capacidade para compreender igual e diferente, ordenar objetos pelo tamanho, cor e forma, classificar objetos por suas características; compreender conceitos de longo, curto, pequeno e grande;

-         fazer a correspondência de 1 a 1; usar objetos para soma simples;

-         contar até 10; nomear formas e figuras complexas.

Entre 6 e 12 anos a criança deve;

-         agrupar objetos  de 10 em 10; dizer as horas, reconhecer dinheiro, medir objetos, medir volume,

-         somar e subtrair, resolver problemas simples mentalmente

-         contar a cada 2,5 e 10, julgar lapsos de tempo, estimar soluções.

O diagnóstico dos transtornos da aprendizagem apresenta um desafio para o clínico, principalmente quando necessário diferencia-los de outros que acometem a infância.

 

 

1.3-   Avaliação diagnóstica:

O diagnóstico dos transtornos específicos da aprendizagem é geralmente feito quando a criança está na escola, pois estes não se tornam evidentes até o momento em que não existe demanda do trabalho acadêmico. A entrada na escola, nos países ocidentais se dá por volta dos sete anos (Selikowitz, 1998). Crianças na fase pré escolar podem apresentar extensa variação em suas habilidades e potencial cognitivo e não devem ser consideradas portadoras dos transtornos específicos da aprendizagem, uma vez que os testes padronizados para esta fase do desenvolvimento não são bons previsores  de habilidades futuras (Selikowitz, 1998; Batshaw el al, 1997).

A avaliação deve ser multidisciplinar, considerando todos os aspectos intrínsecos e extrínsecos ao sujeito (figura 1). Deve contar com profissionais médicos generalistas (pediatra), especialistas (neurologistas, psiquiatras da infância), psicólogos, pedagogos, educadores, fonoaudiólogos, especialistas em linguagem dentre outros. Todos os profissionais dentro de suas habilidades técnicas, devem avaliar o sujeito em seu momento do desenvolvimento neuropsicomotor, emocional e social, devem buscar causas, patologias e/ou comorbidades. O sucesso da intervenção/reabilitação está intimamente ligado ao diagnóstico correto e completo do sujeito com dificuldade para aprender.

A idade do aparecimento dos sintomas dos transtornos específicos da aprendizagem está ligada ao potencial cognitivo, inteligência do indivíduo, quadros associados, como transtornos hipercinéticos, baixa auto estima, distúrbios de conduta, que podem mascar a dificuldade específica. Crianças com inteligência preservada podem desenvolver mecanismos compensatórios e ocultar suas dificuldades por vários anos (Garcia, 1998). As dificuldades de aprendizagem transitórias tendem a desaparecer com o amadurecimento neuropsíquico do indivíduo. Os critérios diagnósticos são determinados para crianças na idade escolar (DSM-IV (APA, 1995).

Uma criança pode ter dificuldade para aprender por vários motivos. Retardo mental, paralisia cerebral, epilepsia e prejuízos sensoriais podem interferir no processo de aprendizagem. Os transtornos específicos do desenvolvimento da aprendizagem, também chamados de learning disabilities (LD), se referem a um grupo de transtornos cuja dificuldade de aprendizagem não é resultado direto dessas ou outras condições incapacitantes ou privações. Ao contrário, estas crianças apresentam prejuízos em algum aspecto do desenvolvimento viso-perceptivo e da linguagem, que interferem na aprendizagem (Batshaw el al, 1997).

A definição dos critérios diagnósticos conforme o DSM-IV (APA, 1995)afirma o seguinte: os transtornos da aprendizagem são diagnosticados quando os resultados do indivíduo em testes padronizados e individualmente administrados de leitura, matemática ou expressão escrita estão substancialmente abaixo do esperado para sua idade, escolarização e nível de inteligência. Os problemas de aprendizagem interferem significativamente no rendimento escolar ou nas atividades da vida diária que exigem habilidades de leitura, matemática ou escrita. Variados enfoques estatísticos podem ser usados para estabelecer que uma discrepância é significativa. Substancialmente abaixo da média em geral define uma discrepância de mais de 2 desvios-padrão entre rendimento e QI. Uma discrepância menor entre rendimento e QI (isto é, entre 1 e 2 desvios-padrão) ocasionalmente é usada, especialmente em casos onde o desempenho de um indivíduo em um teste de QI foi comprometido por um transtorno associado no processamento cognitivo, por um transtorno mental comórbido ou condição médica geral, ou pela bagagem étnica ou cultural do indivíduo. Em presença de um déficit sensorial, as dificuldades de aprendizagem podem exceder aquelas habitualmente associadas com o déficit. Os Transtornos da Aprendizagem podem persistir até a idade adulta.

O profissional deve assegurar-se de que os procedimentos de testagem da inteligência refletem uma atenção adequada à bagagem étnica ou cultural do indivíduo. Isto geralmente pode ser conseguido com o uso de testes nos quais as características relevantes do indivíduo são representadas na amostra de estandardização do teste ou pelo emprego de um examinador familiarizado com aspectos da bagagem étnica ou cultural do indivíduo. A testagem individualizada sempre é necessária, para fazer o diagnóstico de Transtorno da Aprendizagem.

 

 

1.4-      Diagnóstico diferencial

 

Uma vez que a escola é um lugar de manifestação de perturbações do sujeito em desenvolvimento, várias condições podem se manifestadas pela dificuldade de aprendizagem, sem que necessariamente seja um transtorno específico do desenvolvimento da aprendizagem, como descrito acima.

Os transtornos da aprendizagem devem ser diferenciados das variações normais na realização acadêmica e das dificuldades escolares devido à falta de oportunidade, ensino fraco ou fatores culturais. A escolarização inadequada pode resultar em fraco desempenho em testes estandardizados de rendimento escolar DSM-IV (APA, 1995). Crianças de bagagens étnicas ou culturais diferentes daquelas dominantes na cultura da escola ou cuja língua materna não é a língua do país, bem como as crianças que freqüentam escolas com ensino inadequado, podem ter fraca pontuação nestes testes. Crianças expostas a ambientes domésticos empobrecidos ou caóticos também.

Um prejuízo visual ou auditivo pode afetar a capacidade de aprendizagem e deve ser investigado, por meio de testes de triagem audiométrica ou visual. Um Transtorno da Aprendizagem pode ser diagnosticado na presença desses déficits sensoriais apenas quando as dificuldades de aprendizagem excedem aquelas habitualmente associadas aos mesmos. As condições médicas gerais ou neurológicas concomitantes devem ser codificadas no Eixo III.

No Retardo Mental, as dificuldades de aprendizagem são proporcionais ao prejuízo geral no funcionamento intelectual. Entretanto, em alguns casos de Retardo Mental Leve, o nível de realização na leitura, matemática ou expressão escrita está significativamente abaixo dos níveis esperados, dadas a escolarização e a gravidade do Retardo Mental do indivíduo. Nesses casos, aplica-se o diagnóstico adicional de Transtorno da Aprendizagem. Esse diagnóstico adicional de Transtorno da Aprendizagem deve ser feito no contexto de um Transtorno Invasivo do Desenvolvimento apenas quando o prejuízo escolar estiver significativamente abaixo dos níveis esperados, levando em conta o funcionamento intelectual e a escolarização do indivíduo. Em indivíduos com Transtornos da Comunicação, o funcionamento intelectual pode precisar ser avaliado por medições estandardizadas da capacidade intelectual não-verbal. Em casos nos quais o rendimento escolar estiver significativamente abaixo desta medida de capacidade, aplica-se diagnóstico de Transtorno da Aprendizagem.

O Transtorno da Matemática e o Transtorno da Expressão Escrita ocorrem, com maior freqüência, em combinação com o Transtorno da Leitura.

Características e transtornos freqüentemente associados mas que não são a causa da dificuldade escolar como desmoralização, baixa auto-estima e déficits nas habilidades sociais podem estar associados com os transtornos da aprendizagem. Os adultos com Transtornos da Aprendizagem podem ter dificuldades significativas no emprego ou no ajustamento social. Muitos indivíduos (10-25%) com Transtorno da Conduta, Transtorno Desafiador Opositivo, Transtorno de Déficit de Atenção / Hiperatividade, Transtorno Depressivo Maior ou Transtorno Distímico também têm Transtornos da Aprendizagem. Existem evidências de que atrasos no desenvolvimento da linguagem podem ocorrer em associação com os Transtornos da Aprendizagem (particularmente Transtorno da Leitura), embora esses atrasos possam não ser suficientemente severos para indicarem o diagnóstico adicional de Transtorno da Comunicação. Os Transtornos da Aprendizagem também podem estar associados com uma taxa superior de Transtorno do Desenvolvimento da Coordenação. Anormalidades subjacentes do processamento cognitivo (por ex., déficits na percepção visual, processos lingüísticos, atenção, memória ou uma combinação destes) freqüentemente precedem ou estão associadas com os Transtornos da Aprendizagem. Os testes estandardizados para a medição desses processos em geral são menos confiáveis e válidos do que outros testes psicopedagógicos. Embora predisposição genética, danos perinatais e várias condições neurológicas ou outras condições médicas gerais possam estar associados com o desenvolvimento dos Transtornos da Aprendizagem, a presença dessas condições não o prediz, invariavelmente, e existem muitos indivíduos com Transtornos da Aprendizagem sem essa história. Esses transtornos, entretanto, freqüentemente são encontrados em associação com uma variedade de condições médicas gerais (por ex., envenenamento por chumbo, síndrome alcoólica fetal ou síndrome do X frágil).

 

Conclusões

 

Os transtornos da aprendizagem acometem um número significativo de crianças na fase escolar. Trazem importante sofrimento e desgaste para os sujeitos, suas famílias e para as escolas.

O diagnóstico destes transtornos ainda é um grande desafio para o clínico e para os demais profissionais envolvidos com a criança. Não há consenso em relação ao conceito e critérios diagnósticos, sabe-se contudo que os aspectos intrínsecos de funcionamento cerebral e de processamento de linguagem estão relacionados  a estes transtornos.

O diagnóstico diferencial que envolve a análise global do indivíduo, deve considerar eventos psicopatológicos, atrasos do desenvolvimento, patologias orgânicas, perturbações emocionais (psicodinâmicas) e eventos externos ao sujeito.

A avaliação diagnóstica deve ser multidisciplinar, global e o mais acurada possível, permitindo assim estabelecer uma proposta eficaz de reabilitação.

 

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[1] Psiquiatra, Doutor pela Faculdade de Medicina da Universidade de São Paulo

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