Lívia Loosli; Sonia Regina Loureiro
7 de dezembro de 2010
Associação entre depressão materna e diferenças de gênero no comportamento de crianças: uma revisão sistemática Association between maternal depression and gender differences in child behavior: a systematic review Lívia LoosliI; Sonia Regina LoureiroII IMestranda em Saúde Mental, Departamento de Neurociências e Ciências do Comportamento, Faculdade de Medicina de Ribeirão Preto, Universidade de São Paulo (USP), Ribeirão Preto, SP. Psicóloga, Ambulatório de Psiquiatria Infantil, Hospital das Clínicas, Faculdade de Medicina de Ribeirão Preto, USP
RESUMO A depressão materna tem sido considerada uma condição de adversidade ao desenvolvimento infantil, sendo associada a problemas comportamentais, com manifestações diversas para meninos e meninas. O objetivo deste estudo foi identificar e analisar, na literatura indexada, artigos que abordem a associação entre depressão materna e diferenças de gênero relativas ao comportamento de crianças. Procedeu-se a uma busca nas bases de dados MEDLINE, PubMed, PsycINFO, Web of Science, LILACS, SciELO e Index Psi, por meio das palavras-chavematernal depression and gender e maternal depression and child sex, considerando-se a produção dos últimos 5 anos (2004 a 2009). Foram identificados e analisados sistematicamente 21 artigos empíricos. Observou-se a predominância de delineamentos longitudinais prospectivos, com amostras de comunidade, sem confirmação diagnóstica para a depressão materna, analisada conjuntamente com outras variáveis contextuais. As coletas de dados foram realizadas com instrumentos e informantes diversos. Os estudos longitudinais e transversais confirmaram o impacto negativo da depressão materna sobre as variáveis das crianças, apontando a presença de diferenças entre os gêneros, caracterizadas da seguinte forma: na idade escolar, problemas externalizantes e de conduta para os meninos e internalizantes e depressivos para as meninas; no período pré-escolar, predomínio de problemas externalizantes para os meninos; na adolescência, problemas internalizantes para as meninas. Tais achados sugerem a necessidade da utilização de estratégias de intervenção diferenciadas para meninos e meninas expostos à depressão materna, focalizando as tarefas típicas de desenvolvimento, com especial atenção para ambos os gêneros na idade escolar e para as moças na adolescência. Descritores: Depressão, mães, comportamento infantil, gênero, saúde. ABSTRACT Maternal depression has been identified as an adverse condition for child development, and has been associated with behavioral problems, with different manifestations for boys and girls. The objective of the present study was to identify and analyze articles published in indexed journals that address the association between maternal depression and gender differences in relation to child behavior. The review was conducted on the electronic databases MEDLINE, PubMed, PsycINFO, Web of Science, LILACS, SciELO, and Index Psi, using the keywordsmaternal depression and gender and maternal depression and child sex, and was restricted to articles published in the last 5 years (2004 to 2009). Twenty one empirical articles were identified and systematically analyzed. There was a predominance of prospective longitudinal studies, employing non-clinical samples, without a confirmed diagnosis of maternal depression, which was analyzed in combination with others context variables. Data collection procedures were performed using a variety of measures and informants. Longitudinal and cross-sectional studies confirmed the negative impact of maternal depression on child variables, pointing to the presence of differences between genders, as follows: during school-age years, externalizing and conduct problems for boys and internalizing and depressive problems for girls; during preschool age, predominance of externalizing problems for boys; during adolescence, internalizing problems for girls. These results suggest the need for different intervention strategies aimed at boys and girls who have been exposed to maternal depression, focusing on developmental tasks and with special attention to both genders during school age and to girls during adolescence. Keywords: Depression, mothers, child behavior, gender, health. INTRODUÇÃO A depressão, segundo a Organização Mundial da Saúde1, é um transtorno mental no qual ocorre significativa alteração do humor ou afeto, estando frequentemente associada à incapacidade funcional e ao prejuízo na qualidade de vida, em razão de sua sintomatologia caracterizada por tristeza, apatia, diminuição da capacidade de concentração, da autoestima e da autoconfiança. A prevalência anual de depressão na população geral varia de 3 a 11%, sendo um dos transtornos mentais mais frequentes, atingindo principalmente as mulheres, numa proporção duas a três vezes maior do que os homens, e caracterizando-se, na maioria dos casos, como um transtorno crônico e recorrente2. As mulheres casadas parecem mais susceptíveis à depressão do que as solteiras, sendo que a idade de início situa-se entre os 20 e 40 anos, com média de 27 anos3. Por atingir mulheres jovens e em idade fértil, com a possibilidade de tornarem-se mães ou mesmo de já terem seus filhos, a depressão tem implicações diversas para o exercício da maternidade, para a interação mãe-criança e para o ambiente familiar. Diversos estudos ressaltam que a convivência das crianças com mães que apresentam transtornos psiquiátricos, incluindo a depressão, configura-se como um fator de risco para o desenvolvimento dos filhos4-6. Em uma recente revisão da literatura, Mendes et al.7 analisaram estudos empíricos relativos ao impacto da depressão materna na saúde mental de crianças em idade escolar. Os autores relataram que, independentemente dos delineamentos dos estudos, os resultados demonstraram o impacto negativo que tal psicopatologia materna exerce sobre a saúde mental dos filhos, favorecendo a presença de problemas de comportamento, psicopatologia infantil, rebaixamento cognitivo, prejuízos no autoconceito, no desempenho social e na regulação emocional das crianças, independentemente do momento da primeira exposição à depressão materna, configurando-se, assim, como condição de adversidade ao desenvolvimento infantil. Estudos diversos destacam que os prejuízos que a depressão materna tende a acarretar ao desenvolvimento infantil podem apresentar manifestações diferentes, dependendo do gênero da criança. Alguns estudos apontam que o gênero masculino evidencia mais problemas externalizantes de comportamento do que o feminino, que por sua vez apresenta mais problemas comportamentais internalizantes8,9. Contudo, a literatura da área demonstra inconsistência em relação a esses achados, reconhecendo que meninos e meninas diferem no desenvolvimento de problemas comportamentais no contexto de convivência com a depressão materna e apontando para a necessidade de mais estudos sobre como tais diferenças são manifestadas em função do gênero9. No que se refere às diferenças de gênero quanto ao desenvolvimento das crianças em geral, independentemente da condição adversa específica da depressão materna, a literatura aponta que quase todas as formas de transtorno são mais comuns em meninos do que em meninas, sendo a única exceção a depressão na adolescência, duas vezes mais comum para as moças em comparação aos rapazes10. O estudo transcultural de Crijnen et al.11 identificou um predomínio de problemas comportamentais em meninos em idade escolar, que em geral apresentaram escores mais altos para o total de dificuldades e também para os problemas comportamentais externalizantes, e escores mais baixos para a internalização, quando comparados às meninas. Confirmando tais achados, o estudo de Bolsoni-Silva et al.12, apesar de não identificar diferenças de gênero em um grupo de pré-escolares considerados socialmente habilidosos, identificou tais diferenças no grupo de crianças com dificuldades comportamentais, com a predominância de comportamentos externalizantes para os meninos e maior competência social para as meninas. Dada a relevância do impacto da depressão materna sobre o desenvolvimento de meninos e meninas e a possibilidade de manifestações diversas, objetivou-se identificar e analisar artigos empíricos recentes, publicados em periódicos indexados, que versam sobre a temática da depressão materna e as diferenças de gênero relativas ao comportamento de crianças, prioritariamente em idade escolar. A priorização de tal faixa etária se deveu à identificação de uma maior procura por atendimento clínico especializado de psicologia e psiquiatria para crianças nesse período do desenvolvimento, devido a dificuldades de aprendizagem e/ou comportamento13,14. MÉTODO Procedeu-se a uma busca sistemática nas bases de dados MEDLINE, PubMed, PsycINFO, Web of Science, LILACS, SciELO e Index Psi, utilizando-se as palavras-chave maternal depression and gender e maternal depression and child sex e adotando-se como critério publicações no período de 2004 a 2009 (últimos 5 anos). Realizou-se inicialmente a leitura de 713 resumos identificados, sendo excluídos capítulos de livros, dissertações, revisões e estudos que não abordassem a relação entre depressão materna e gênero das crianças. Vale ressaltar que, dentre as revisões selecionadas na busca, não se identificou nenhuma que abordasse o tema da depressão materna e analisasse também a questão do gênero das crianças enquanto desfecho primário. Foram adotados os seguintes critérios de inclusão: apenas artigos empíricos, publicados nos idiomas inglês, português ou espanhol, com população de humanos, na faixa etária de 6 a 12 anos prioritariamente, podendo incluir os períodos de desenvolvimento pré-escolar e adolescência desde que a idade escolar também fosse abordada. RESULTADOS E DISCUSSÃO A Tabela 1 apresenta as principais características dos delineamentos adotados nos estudos analisados. Todos os 21 estudos constataram o impacto negativo da depressão materna sobre as variáveis das crianças. Considerando-se as diferenças desse impacto para meninos e meninas, do total de artigos analisados, 20 confirmaram a presença de diferenças em algum momento do desenvolvimento da criança, e apenas um estudo24não identificou diferenças entre os gêneros. Em relação aos 20 estudos que apresentaram diferenças entre os gêneros, nove adotaram delineamentos transversais e 11 longitudinais, que serão analisados separadamente a seguir. Diferenças de gênero de crianças em idade escolar: estudos transversais A Tabela 2 apresenta os principais resultados relatados nos nove estudos transversais com relação ao impacto da depressão materna e diferenças de gênero no comportamento de crianças em idade escolar. Pode-se observar que os estudos abordaram as seguintes variáveis das crianças: problemas de comportamento, psicopatologia infantil e estratégias de regulação emocional. Dentre os nove artigos analisados, cinco17,18,28,32,35abordaram mais de um tipo de variável, com destaque para o estudo de Drabick et al.28, que analisou conjuntamente sintomas depressivos e problemas de conduta das crianças; já os outros quatro artigos abordaram problemas de comportamento internalizantes e externalizantes17,18,32,35. Os estudos relataram impacto negativo da depressão materna para meninos e meninas, já que ambos apresentaram problemas de comportamento ou psicopatologia. Contudo, os nove estudos apontaram que as manifestações apresentam-se de forma diferenciada entre os gêneros, com predomínio de externalização ou problemas de conduta para os meninos e de internalização, sintomas depressivos e prejuízo na regulação emocional para as meninas. Destaca-se, por suas peculiaridades, o estudo de Silk et al.31, como o único que avaliou estratégias de regulação emocional em um grupo de crianças filhas de mães que tiveram depressão com início antes dos 14 anos, em comparação com um grupo controle, por meio de observação em laboratório envolvendo uma tarefa de espera com indução de emoções negativas. Os autores identificaram que as meninas do grupo de mães com história precoce de depressão utilizaram mais espera passiva e menos distração ativa, além de mostrarem prejuízos nos domínios cognitivos e comportamentais quanto à regulação emocional, sugerindo que a depressão materna se mostrou mais fortemente relacionada à dificuldade de regulação emocional para meninas do que para meninos. Tais achados podem ser relacionados a problemas de comportamento, já que as dificuldades na regulação emocional constituem-se em risco para o desenvolvimento de problemas comportamentais. Influência da depressão materna no relato de problemas das crianças: estudos transversais Dentre os estudos transversais, destacam-se quatro17,22,23,35 que abordaram a questão da influência da depressão materna para a percepção e para o relato das mães sobre os problemas de seus filhos, aspectos esses analisados a seguir. O primeiro estudo, de Gartstein et al.17, teve como objetivo examinar o quanto a depressão materna influencia o relato das mães, em comparação ao de professores, sobre os problemas de comportamento externalizantes e internalizantes de seus filhos, tendo como fonte uma amostra de comunidade. Os autores identificaram que os relatos de mães e professores foram concordantes em relação a identificar mais sintomas externalizantes nos meninos do que nas meninas. Porém, detectaram distorção no relato das mães, sendo que, quanto maior o número de indicadores de depressão apresentados pelas mães, mais problemas internalizantes e externalizantes para os meninos e internalizantes para as meninas foram relatados. O segundo estudo, de Kiss et al.23, comparou o relato de mães e filhos em uma amostra de crianças com diagnóstico confirmado de transtorno depressivo maior, apontando diferenças de gênero segundo o relato das próprias crianças, sendo que as meninas relataram mais sintomas depressivos do que os meninos. Em comparação ao relato das mães, estas informaram mais sintomas depressivos do que os meninos com relação a tais indicadores, não se observando diferenças entre os relatos das mães e das filhas. Os autores concluíram que mães e filhas têm maior probabilidade de concordar a respeito da presença de sintomas depressivos nas crianças quando comparadas com mães e filhos. O terceiro artigo, de Fossum et al.22, comparou o relato de mães, pais e professores em uma amostra de crianças com diagnóstico clínico ou subclínico confirmado de transtorno de conduta ou transtorno oposicional desafiante, segundo os critérios do DSM-IV. Os autores não detectaram diferenças de gênero nos relatos de pais e mães, porém identificaram tais diferenças nos relatos dos professores, que perceberam os meninos como significativamente mais agressivos e menos competentes socialmente do que as meninas. No quarto estudo, de Luoma et al.35, realizado com uma amostra de comunidade, a comparação teve por foco o relato independente de ambos os pais. Os autores verificaram que a depressão materna foi associada a mais problemas comportamentais nas crianças segundo mães e pais, sugerindo que as percepções das mães depressivas sobre os problemas de seus filhos foram confirmadas pelos pais. Porém, em relação ao gênero, observaram diferenças, já que as mães relataram mais problemas externalizantes para os meninos e internalizantes para as meninas em comparação ao relato dos pais. Pode-se observar que as amostras utilizadas nos quatro estudos analisados foram diversas, o que pode ter influenciado a direção dos achados. Todos os estudos detectaram diferenças entre os gêneros de acordo com alguma fonte de informação, apesar da presença de discordâncias específicas conforme a fonte dos relatos. Tais discordâncias são sugestivas de que as crianças podem apresentar um repertório comportamental variável, dependendo de com quem interagem e do ambiente em que se encontram, o que pode favorecer a variação no relato sobre o comportamento das mesmas em função das fontes de informações adotadas nos estudos. Diferenças de gênero entre as crianças: estudos longitudinais Do total de 12 estudos com delineamento longitudinal, 11 identificaram diferenças entre os gêneros em alguma fase do desenvolvimento ou de acordo com o relato de alguma das fontes de informação. A Tabela 3 apresenta os principais achados identificados nos 11 estudos longitudinais quanto às diferenças de gênero nas diversas fases do desenvolvimento das crianças. De acordo com a Tabela 3, pode-se observar que todos os 11 estudos avaliaram a fase escolar e incluíram, além desta, a fase pré-escolar ou a adolescência, com destaque para três artigos16,33,34 que abrangeram desde a pré-escola até a adolescência. As variáveis abordadas para as crianças foram psicopatologia e problemas de comportamento, sendo que três estudos26,33,34 analisaram tanto comportamentos internalizantes quanto externalizantes. De modo geral, no período pré-escolar, observou-se que os estudos detectaram predomínio de problemas para os meninos, com três artigos que identificaram, separadamente, mais problemas externalizantes15, hiperatividade29 e ansiedade21 para os meninos do que para as meninas. Apenas um estudo identificou mais problemas de comportamento internalizantes em meninas no período pré-escolar25. Na fase escolar, os estudos identificaram a presença de problemas de comportamento e psicopatologia tanto para meninas quanto para meninos, porém com direcionalidades diferentes para cada gênero. Relataram a manutenção de problemas de comportamento externalizantes19, hiperatividade29 e ansiedade21 para os meninos, enquanto que as meninas apresentaram mais problemas de comportamento internalizantes em três estudos20,25,33 e externalizantes15 em um único artigo. Apenas um estudo26 relatou diferenças em relação a recursos, identificando a presença de mais comportamentos pró-sociais para as meninas do que para os meninos no período escolar. Dentre os artigos longitudinais, destacam-se, por suas peculiaridades, os estudos de Miner & Clarke-Stewart19, Cortes et al.27 e Bureau et al.16, que identificaram diferenças de gênero apenas em condições específicas, dependendo da fonte de informação ou da fase de desenvolvimento em que as crianças foram analisadas. O estudo de Miner & Clarke-Stewart19 foi desenvolvido com uma amostra normativa da população dos Estados Unidos, com o objetivo de investigar diferenças na trajetória de comportamentos externalizantes de crianças desde os 6 meses até os 9 anos de idade, em função de diversas variáveis preditoras, incluindo a depressão materna. Os resultados apontaram diferenças de gênero segundo o relato dos professores, que identificaram que os meninos exibiram mais problemas externalizantes do que as meninas aos 9 anos. Nenhuma diferença de gênero foi observada com relação ao relato das mães, porém estas referiram mais comportamentos externalizantes do que os professores. Esses achados chamam a atenção para a diversidade do repertório comportamental das crianças em função do ambiente em que se encontram e de suas interações. Cortes et al.27 examinaram diferenças de gênero na relação entre sintomas depressivos maternos e a trajetória de sintomas depressivos em crianças de 8 a 15 anos de idade provindas de uma amostra não clínica. Utilizaram como fonte de informação apenas os relatos das crianças e adolescentes sobre seus sintomas depressivos. Os autores detectaram que filhos e filhas de mães deprimidas mostravam níveis elevados e similares de sintomas depressivos durante os anos escolares elementares, ou seja, dos 8 até os 12 anos de idade. Porém, com a entrada na adolescência, os escores dos meninos declinavam rapidamente, enquanto que os das meninas mantinham a trajetória elevada de sintomas depressivos, sugerindo que as diferenças de gênero começavam a se acentuar no início da adolescência, com as moças apresentando mais sintomas depressivos do que os rapazes. O estudo de Bureau et al.16 foi desenvolvido com uma amostra de comunidade exposta a alto risco psicossocial, tendo por objetivo examinar a relação entre sintomas depressivos maternos e sintomas depressivos das crianças. Os autores não constataram diferenças entre os gêneros aos 8 anos de idade das crianças; no entanto, na adolescência, aos 19 anos, identificaram mais sintomas depressivos para os rapazes do que para as moças, segundo os relatos das próprias crianças e jovens. Tal resultado é divergente em relação à literatura da área8-10e também aos outros estudos longitudinais desta revisão que incluíram a adolescência em suas avaliações e identificaram predomínio de sintomas internalizantes para o gênero feminino20,27,33 nessa fase do desenvolvimento. Os autores discutiram os achados relacionando-os ao tamanho pequeno da amostra (inicialmente, 79 díades mãe-criança, sendo que apenas 36 completaram as avaliações nos três períodos de coleta dos dados) e argumentando que se tratava de participantes expostos a alto risco psicossocial, o que, segundo os próprios autores, poderia diminuir a probabilidade de generalização dos resultados, exigindo cautela na interpretação dos dados16. Outro estudo que apontou resultado divergente em relação aos achados predominantes dos artigos desta revisão foi o de Blatt-Eisengart et al.15, sendo o único que detectou predomínio de problemas externalizantes para meninas em idade escolar. Os autores investigaram as diferenças de gênero na relação entre sintomas depressivos maternos e problemas de comportamento externalizantes em crianças de 2 a 7 anos de idade, utilizando uma amostra proveniente da comunidade. Os resultados apontaram que, aos 2 anos de idade, a depressão materna foi preditora de sintomas externalizantes para os meninos de maneira mais forte do que para as meninas. Essa relação diminuiu para os meninos com o passar do tempo, dos 2 anos até a 1ª série (7 anos), e tornou-se mais forte para as meninas, sugerindo que os meninos mais novos, aos 2 anos, e as meninas mais velhas, aos 7 anos, podem ser mais afetados pela depressão materna, apresentando problemas de comportamento externalizantes. Os autores afirmaram que meninos e meninas podem ser vulneráveis à depressão materna em idades diferentes e de formas diversas. Destaca-se, ainda, dentre os estudos longitudinais que apresentaram diferenças entre os gêneros, o estudo de Essex et al.26, que abordou os períodos pré-escolar e escolar em uma amostra não clínica e teve como objetivo identificar a forma como fatores de risco biológicos e dos ambientes escolar e familiar (incluindo a depressão materna), presentes desde o nascimento, operavam conjuntamente para a emergência de problemas de comportamento internalizantes e externalizantes em crianças aos 9 anos. Apesar de avaliarem as dificuldades, os autores identificaram diferenças entre os gêneros apenas quanto aos recursos, sendo que as meninas apresentaram mais comportamentos pró-sociais que os meninos durante a transição para a fase escolar, sugerindo que a direcionalidade dos sintomas pode estar associada às regras sociais vigentes para os gêneros. Outro estudo a ser destacado é o de Burt et al.34, realizado com uma amostra não clínica exposta à pobreza, abrangendo desde o período pré-escolar até a adolescência, com o objetivo de avaliar o papel mediador do ambiente familiar na relação entre sintomas depressivos maternos e sintomas internalizantes e externalizantes de adolescentes. Os autores identificaram que os fatores do ambiente familiar foram considerados mediadores da relação entre depressão materna e sintomatologia nos adolescentes apenas para as famílias de rapazes, não sendo detectados efeitos de mediação relativos ao contexto familiar para a amostra de moças. O estudo concluiu que o impacto da relação entre depressão materna e psicopatologia na adolescência era maior para as moças do que para os rapazes. Considerando os resultados relatados pelos estudos longitudinais que abordaram diversas fases do desenvolvimento, verifica-se a importância da idade das crianças para a avaliação do impacto da depressão materna sobre os problemas de comportamento e/ou sintomatologia, já que diferenças entre os gêneros ocorreram em períodos diversos do desenvolvimento, com predomínio de problemas para meninos ou meninas, dependendo da idade em que se encontravam por ocasião das avaliações. Além desse fator, as fontes dos relatos sobre as variáveis comportamentais de desfecho também devem ser consideradas como fonte de divergência, possivelmente em função de diferenças de contextos de referência. Um único estudo, de Lau et al.24, não identificou diferenças entre os gêneros. O estudo teve como objetivo examinar as trajetórias relativas aos fatores de risco sociais, cognitivos e genéticos e seus efeitos e interações com os sintomas depressivos das crianças. Com delineamento longitudinal, utilizou uma amostra não clínica de 300 pares de gêmeos, monozigóticos e dizigóticos, avaliados aos 7 e 8 anos de idade, sendo 57% meninas e 43% meninos. Dentre os fatores de risco sociais estavam os problemas emocionais maternos, incluindo a depressão e a ansiedade, que foram avaliados utilizando-se o instrumento Past History Schedule, respondido pelas mães quando as crianças tinham 8 anos de idade. As crianças responderam sobre seus próprios sintomas depressivos por meio do Children's Depression Inventory (CDI), também aos 8 anos de idade. Os autores não identificaram diferenças relativas aos sintomas depressivos entre meninos e meninas. Contudo, tais achados precisam ser considerados com cautela, já que não foi realizada confirmação diagnóstica da depressão materna e já que a única medida utilizada foi o relato das crianças sobre seus sintomas depressivos. A peculiaridade de este ser o único estudo analisado que teve como amostra irmãos gêmeos também deve ser levada em consideração. Analisando-se de um modo geral os aspectos metodológicos dos estudos revisados, destacam-se as seguintes limitações de alguns estudos: a não confirmação diagnóstica e não caracterização da recorrência e gravidade da depressão materna; a utilização de amostras de conveniência; a pouca diversidade de fontes de relato; poucas informações sobre psicopatologia paterna, que pode ter influenciado as variáveis analisadas; e, finalmente, o não balanceamento/homogeneidade quanto aos grupos de meninos e meninas, dificultando as comparações. Tais limitações apontam para a necessidade de novos estudos, que definam a gravidade e a recorrência da depressão materna e que considerem as tarefas de desenvolvimento típicas de cada fase como critérios de avaliação e desfecho. Da mesma forma, são necessários estudos que considerem o balanceamento das amostras em relação ao gênero e que abordem as práticas parentais educativas, que, culturalmente, parecem diferir para meninos e meninas. CONSIDERAÇÕES FINAIS Com base na análise sistemática da literatura recente relativa a estudos empíricos, conclui-se que o impacto da depressão materna apresenta-se de forma diferenciada para meninos e meninas no que se refere a problemas de comportamento e indicadores emocionais. Constatou-se que, no período escolar, ambos os gêneros demonstraram a presença de dificuldades, porém com direcionalidades diferentes, sendo que o gênero masculino apresentou predomínio de problemas de comportamento externalizantes e o feminino, mais problemas comportamentais internalizantes. Na fase pré-escolar, ocorreu predomínio de problemas externalizantes para os meninos, enquanto que, na adolescência, as moças apresentaram mais dificuldades relativas a manifestações internalizantes. Tais tendências podem ser consideradas apesar da diversidade dos estudos no que se refere aos delineamentos adotados, longitudinais ou transversais, aos tipos de medidas utilizadas, tanto observacionais quanto de autorrelato, e à presença de outras variáveis contextuais avaliadas além da depressão materna. Em comparação à literatura que aborda diferenças de gênero no desenvolvimento de crianças em geral10-12, os achados da presente revisão são convergentes em relação a mais problemas comportamentais externalizantes para os meninos nos períodos pré-escolar e escolar, e também quanto a mais problemas internalizantes para as moças na adolescência. A presença de mais problemas de comportamento internalizantes para as meninas em idade escolar identificada nos estudos incluídos na revisão aponta para uma maior vulnerabilidade do gênero feminino na condição de exposição à depressão materna nessa fase específica do desenvolvimento. Considera-se que, no período escolar, o predomínio de problemas externalizantes para meninos e internalizantes para meninas pode guardar associação com a maior procura por atendimento clínico em psicologia e psiquiatria nessa faixa etária. Os achados desta revisão trazem implicações clínicas e recomendações para a área da saúde mental, destacando-se a importância de programas de prevenção e identificação precoce da depressão materna no sentido de promover o tratamento efetivo dessas mães. Além disso, recomenda-se a utilização de estratégias de intervenção diferenciadas para meninos e meninas expostos a essa condição e que estejam apresentando dificuldades, numa tentativa de minimizar o impacto negativo da depressão materna sobre o desenvolvimento dessas crianças, com especial atenção para os meninos pré-escolares, para ambos os gêneros na idade escolar e para as moças na adolescência. REFERÊNCIAS 2. Fleck MP, Berlim MT, Lafer B, Sougey EB, Del Porto JA, Brasil MA, et al. Revisão das diretrizes da Associação Médica Brasileira para o tratamento da depressão (versão integral). Rev Bras Psiquiatr. 2009;31(Supl 1):S7-17. 3. Lima MS. Depressão: epidemiologia e impacto social. Rev Bras Psiquiatr. 1999;21(Supl 1):S1-5. 4. Elgar FJ, Waschbusch DA, McGrath PJ, Stewart SH, Curtis LJ. Temporal relations in daily-reported maternal mood and disruptive child behavior. J Abnorm Child Psychol. 2004;32(3):237-47. 5. Luoma I, Tammine T, Kaukonen P, Laippala P, Puura K, Salmelin R, et al. Longitudinal study of maternal depressive symptoms and child well-being. J Am Acad Child Adolesc Psychiatry. 2001;40(12):1367-74. 6. Najman JM. Mothers' mental illness and child behavior problems: cause-effect association or observation bias? J Am Acad Child Adolesc Psychiatry. 2000;39(5):592-602. 7. Mendes AV, Loureiro SR, Crippa JAS. Depressão materna e saúde mental de escolares. Rev Psiquiatr Clin. 2008;35(5):178-86. 8. Najman JM, Williams GM, Nikles J, Spence S, Bor W, O'Callaghan M, et al. Bias influencing maternal reports of child behavior and emotional state. Soc Psychiatry Psychiatr Epidemiol. 2001;36(4):186-94. 9. Elgar FJ, McGrath PJ, Waschbusch DA, Stewart SH, Curtis LJ. Mutual influences on maternal depression and child adjustment problems. Clin Psychol Rev. 2004;24:441-59. 10. 11. Crijnen AAM, Achenbach TM, Verhulst FC. Comparisons of problems reported by parents of children in 12 cultures: total problems, internalizing and externalizing. J Am Acad Child Adolesc Psychiatry. 1997;36(9):1269-77. 12. Bolsoni-Silva AT, Marturano EM, Pereira VA, Manfrinato JWS. Habilidades sociais e problemas de comportamento de pré-escolares: comparando avaliações de mães e de professoras. Psicol Reflex Crit. 2006;19(3):460-9. 13. Santos PL. Problemas de saúde mental de crianças e adolescentes atendidos em um serviço público de psicologia infantil. Psicol Estudo. 2006;11(2):315-21. 14. Campezatto P von M, Nunes MLT. Caracterização da clientela das clínicas-escola de cursos de psicologia da região metropolitana de Porto Alegre. Psicol Reflex Crit. 2007;20(3):376-88. 15. Blatt-Eisengart I, Drabick DAG, Monahan KC, Steinberg L. Sex differences in the longitudinal relations among family risk factors and childhood externalizing symptoms. Dev Psychol. 2009;45(2):491-502. 16. Bureau JF, Easterbrooks MA, Lyons-Ruth K. Maternal depressive symptoms in infancy: unique contribution to children's depressive symptoms in childhood and adolescence? Dev Psychopathol. 2009;21(2):519-37. 17. Gartstein MA, Bridgett DJ, Dishion TJ, Kaufman NK. Depressed mood and maternal report of child behavior problems: another look at the depression-distortion hypothesis. J Appl Dev Psychol. 2009;30(2):149-60. 18. Foster CE, Webster MC, Weissman MM, Pilowsky DJ, Wickramaratne PJ, Rush AJ, et al. Course and severity of maternal depression: associations with family functioning and child adjustment. J Youth Adolesc. 2008;37(8):906-16. 19. Miner JL, Clarke-Stewart KA. Trajectories of externalizing behavior from age 2 to age 9: relations with gender, temperament, ethnicity, parenting, and rater. Dev Psychol. 2008;44(3):771-86. 20. Jenkins JM, Curwen T. Change in adolescents internalizing symptomatology as a function of sex and the timing of maternal depressive symptomatology. J Am Acad Child Adolesc Psychiatry. 2008;47(4):399-405. 21. Pagani LS, Japel C, Vaillancourt T, Côté S, Tremblay RE. Links between life course trajectories of family dysfunction and anxiety during middle childhood. J Abnorm Child Psychol. 2008;36(1):41-53. 22. Fossum S, Mørch WT, Handegård BH, Drugli MB. Childhood disruptive behaviors and family functioning in clinically referred children: are girls different from boys? Scand J Psychol. 2007;48(5):375-82. 23. Kiss E, Gentzler AM, George C, Kapornai K, Tamás Z, Kovacs M, et al. Factors influencing mother-child reports of depressive symptoms and agreement among clinically referred depressed youngsters in Hungary. J Affect Disord. 2007;100(1-3):143-51. 24. Lau JYF, Rijsdijknal F, Gregory AM, McGuffin P, Eley TC. Pathways to childhood depressive symptoms: the role of social, cognitive and genetic risk factors. Dev Psychol. 2007;43:1402-14. 25. Sterba SK, Prinstein MJ, Cox MJ. Trajectories of internalizing problems across childhood: heterogeneity, external validity, and gender differences. Dev Psychopathol. 2007;19(2):345-66. 26. Essex MJ, Kraemer HC, Armstrong JM, Boyce WT, Goldsmith HH, Klein MH, et al. Exploring risk factors for the emergence of children's mental health problems. Arch Gen Psychiatry. 2006;63(11):1246-56. 27. Cortes RC, Fleming CB, Catalano RF, Brown EC. Gender differences in the association between maternal depressed mood and child depressive phenomena from grade 3 through grade 10. J Youth Adolesc. 2006;35(5):815-26. 28. Drabick DA, Beauchaine TP, Gadow KD, Carlson GA, Bromet EJ. Risk factors for conduct problems and depressive symptoms in a cohort of Ukrainian children. J Clin Child Adolesc Psychol. 2006;35(2):244-52. 29. Romano E, Tremblay RE, Farhat A, Cote S. Development and prediction of hyperactive symptoms from 2 to 7 years in a population-based sample. Pediatrics. 2006;117(6):2101-10. 30. Silk JS, Shaw DS, Forbes EE, Lane TL, Kovacs M. Maternal depression and child internalizing: the moderating role of child emotion regulation. J Clin Child Adolesc Psychol. 2006;35(1):116-26. 31. Silk JS, Shaw DS, Skuban EM, Oland AA, Kovacs M. Emotion regulation strategies in offspring of childhood-onset depressed mothers. J Child Psychol Psychiatry. 2006;47(1):69-78. 32. Forbes EE, Shaw DS, Fox NA, Cohn JF, Silk JS, Kovacs M. Maternal depression, child frontal asymmetry, and child affective behavior as factors in child behavior problems. J Child Psychol Psychiatry. 2006;47(1):79-87. 33. Leve LD, Kim HK, Pears KC. Childhood temperament and family environment as predictors of internalizing and externalizing trajectories from ages 5 to 17. J Abnorm Child Psychol. 2005;33(5):505-20. 34. Burt KB, Van Dulmen MH, Carlivati J, Egeland B, Sroufe LA, Forman DR, et al. Mediating links between maternal depression and offspring psychopathology: the importance of independent data. J Child Psychol Psychiatry. 2005;46(5):490-9. 35. Luoma I, Koivisto AM, Tamminen T. Fathers' and mothers' perceptions of their child and maternal depressive symptoms. Nord J Psychiatry. 2004;58(3):205-11. Correspondência Suporte financeiro: Conselho Nacional de Desenvolvimento Científico e Tecnológico (CNPq). Rev. psiquiatr. Rio Gd. Sul, ahead of print Epub 15-Out-2010
IIDoutora em Psicologia Clínica, USP. Professora, Departamento de Neurociências e Ciências do Comportamento, Faculdade de Medicina de Ribeirão Preto, USP
Foram identificados 21 artigos que atendiam aos critérios mencionados, sendo estes submetidos a leitura integral e análise sistemática dos principais aspectos metodológicos dos delineamentos e dos resultados relativos às diferenças de gênero no comportamento de crianças que convivem com a depressão materna.
Lívia Loosli
Rua Amadeu Amaral, 340/113, Bairro Vila Seixas, CEP 14020-050, Ribeirão Preto, SP. Tel.: (16) 8152-9162.
E-mail: liloosli@yahoo.com.br
Não foram declarados conflitos de interesse associados à publicação deste artigo.
Artigo original: