Artigos Científicos

A evolução histórica dos conceitos de transtorno de humor e transtorno de personalidade: problemas no diagnóstico diferencial

Rodolfo Nunes Campos; João Alberto de Oliveira Campos; Marsal Sanches

10 de janeiro de 2011

Rev. psiquiatr. clín. vol.37 no.4 São Paulo  2010

A evolução histórica dos conceitos de transtorno de humor e transtorno de personalidade: problemas no diagnóstico diferencial

 

Historical evolution of mood disorders and personality disorders concepts: difficulties in the differential diagnostic

 

Rodolfo Nunes CamposI; João Alberto de Oliveira CamposII; Marsal SanchesIII

IMédico colaborador do Grupo de Doenças Afetivas (Gruda) do Instituto de Psiquiatria do Hospital das Clínicas da Faculdade de Medicina da Universidade de São Paulo (IPq-HCFMUSP) 
IIProfessor titular de Psiquiatria da Faculdade de Medicina da Universidade Federal de Goiás (UFG) 
IIIProfessor-assistente do Departamento de Psiquiatria da Faculdade de Ciências Médicas da Santa Casa de São Paulo (FCMSCSP)

Endereço para correspondência


RESUMO

CONTEXTO: Os conceitos de transtornos de humor e de personalidade sofreram diversas mudanças nas últimas décadas. Historicamente, esses conceitos foram construídos em paralelo, isto é, transtornos de humor e personalidade são considerados como transtornos independentes em relação ao diagnóstico, ao prognóstico e ao tratamento. Recentemente, entretanto, novas propostas na conceituação nosológica desses transtornos levantaram a questão de uma possível sobreposição dessas entidades, tornando o diagnóstico diferencial entre esses transtornos muitas vezes difícil. 
OBJETIVOS: Realizar uma revisão de literatura sobre a evolução dos conceitos de transtorno de humor e personalidade sob uma perspectiva histórica, focando em publicações relacionadas ao diagnóstico. 
MÉTODO: Revisão compreensiva da literatura utilizando o banco de dados MEDLINE (1990-2007). 
RESULTADOS: Ao contrário do conceito de transtorno de humor, que se apresenta estável e relativamente sem modificações desde suas primeiras descrições, o conceito de transtorno de personalidade mostra considerável variação ao longo dos diferentes achados de literatura. Assim, ambos os grupos de transtornos têm sido conceituados tanto categorial como dimensionalmente. Esta última abordagem pode ser, em parte, responsável pelas dificuldades algumas vezes encontradas no diagnóstico diferencial desses transtornos. 
CONCLUSÃO: O diagnóstico diferencial entre transtornos de humor e personalidade ainda representa um sério problema na prática clínica e não pode ser completamente esclarecido com base nas evidências disponíveis. O melhor entendimento da base fisiopatológica desses transtornos, bem como a identificação mais precisa de seus marcadores biológicos, pode ajudar a redefinir seus conceitos e seus status nosológicos atuais.

Palavras-chave: Transtorno de humor, transtorno bipolar, transtorno depressivo, transtorno de personalidade, história, diagnóstico diferencial.


ABSTRACT

BACKGROUND: The concepts of mood and personality disorders have faced countless changes over the last decades. Historically, these concepts have been built in parallel, that is, mood and personality disorders have been considered as independent disorders with respect to diagnosis, prognosis and treatment. Recently, however, new proposes on the nosological conceptualization of these disorders have raised the question of a possible overlap between these nosological entities, making the differential diagnosis between these disorders difficult at times. 
OBJECTIVES: To carry out a literature review on the evolution of mood and personality disorders concepts under a historical perspective, focusing on diagnostic-related issues. 
METHOD: A comprehensive MEDLINE literature search (1990-2007) was conducted. 
RESULTS: Contrarily to the concept of mood disorder, which seems to be stable and relatively unchanged since its first description, the concept of personality disorder shows considerable variation over the different literature findings. Thus, both groups of disorders have been conceptualized not only in a categorical point of view but also according to a dimensional approach. The last one may be at least partially accountable for the difficulties sometimes observed in the differential diagnosis of these disorders. 
DISCUSSION: The differential diagnosis between mood and personality disorders may still represent a serious problem in clinical settings, and can not be completely clarified in light of available evidence. A better understanding of the pathophysiological basis of these disorders, as well as the more accurate identification of their biological markers can help redefining their concepts and their nosological current status.

Keywords: Mood disorder, bipolar disorder, depressive disorder, personality disorder, history, differential diagnosis.


Introdução

Desde o período grego clássico são feitas descrições de quadros de transtornos de humor e tentativas de conceituar tais entidades sob a perspectiva médica ou filosófica. Hipócrates desenvolveu a primeira classificação dos transtornos mentais, discriminando sistematicamente a mania, a melancolia e a paranoia. Aretaeus da Capadócia, já no século I d.C., descreveu a mania e a melancolia como fenômenos diferentes da mesma doença, sendo essa a primeira concepção da bipolaridade. Afirmou ainda que a etiologia desses quadros era biológica, isto é, consequência de um distúrbio cerebral, mostrando-se diferente dos estados secundários a um motivo psicológico1,2.

A discussão acerca do conceito de transtorno bipolar ressurge novamente no século XIX. Griesinger, em 1845, assinalou como "usual" a mudança da melancolia para a mania e essa ideia foi decisiva no desenvolvimento posterior desse conceito pela escola Francesa1. Em 1854, Falret e Baillarger apresentam, respectivamente em la folie circulaire e em la folie à double forme, uma descrição explícita do transtorno bipolar como doença única. A principal diferença era o fato de Falret considerar os episódios separados por intervalos, o que não importava para Baillarger3. A origem e a evolução do conceito de transtorno de personalidade, como é entendido atualmente, foram marcadas pela multiplicidade de descrições e termos, que devem ser considerados em seu devido momento histórico. Até o fim do século XIX, transtorno de personalidade significava uma desintegração da consciência, como o sonambulismo ou a anestesia histérica, por exemplo, e diversos foram os termos que apresentaram a mesma confusão ao longo dos anos. Podemos encontrar tentativas de definição dessas entidades, que, apesar de suas diferenças, admitiam que poderia ocorrer o prejuízo de funções mentais separadamente sem a necessidade da ocorrência de delírios para caracterizar essas insanidades4.

Os casos de Manie Sans Délire, descritos por Pinel, referiam-se a pacientes apresentando um furor persistente e "psicose sem alteração no intelecto"5. Acreditava-se que ocorreria uma desordem no plano afetivo, mas sem significar depressão, euforia ou ansiedade, mas simplesmente agressividade.

Esquirol acreditava também que as faculdades mentais poderiam ser alteradas independentemente, assim como considerava Pinel. Porém, não concebia poder existir um estado patológico em que o homem não pudesse resistir em cometer atos que sua mente rejeitasse. Propôs, então, a monomania, como uma espécie de insanidade caracterizada por delírios fixos e específicos4. Assim como Pinel, recebeu várias críticas por assumir o funcionamento independente das faculdades mentais e ainda por tentar explicar que o comportamento era a única evidência dos referidos delírios.

Moral insanity (insanidade moral) é o termo cunhado por Prichard para designar uma gama de desordens do comportamento que guardavam como característica comum a ausência de delírios4. Muitos casos descritos como exemplos não são suficientes para ser diagnosticados e outros indicam certamente um diagnóstico atual diferente dos transtornos de personalidade. Apesar disso, Prichard teve a importante contribuição de reforçar a concepção do funcionamento mental por faculdades e assim expandir o entendimento dos transtornos psiquiátricos.

Kraepelin, em 1913, descreveu a "disposição pessoal", que modernamente se entende como personalidade pré-mórbida, e os "estados fundamentais" (depressivo, maníaco, irritável e ciclotímico) que designavam as manifestações subclínicas habituais da insanidade maníaco-depressiva e associavam-se aos subtipos específicos do transtorno6.

 

Objetivo

O presente trabalho visa avaliar criticamente como evoluíram, na literatura científica, os conceitos de transtorno de humor e transtorno de personalidade, bem como a implicação dessa evolução no diagnóstico diferencial entre esses dois grupos de transtornos.

 

Método

Foi realizada uma revisão sistemática da literatura por meio do banco de dados MEDLINE/PubMed, utilizando os termos mood disorder, affective disorder, personality disorder, history of concept, diagnosis e differential diagnostic, para artigos publicados a partir de 1990 em inglês, espanhol ou português. Como critérios de inclusão para a análise, consideraram-se os artigos que abordavam cada tema (transtorno de humor e/ou transtorno de personalidade) quanto ao seu conceito e à sua evolução, bem como o diagnóstico diferencial entre eles. Os artigos foram selecionados por intermédio de seu título e resumo. Aqueles pertinentes à revisão foram avaliados na íntegra e procedeu-se à busca em suas referências seguindo os mesmos critérios. Uma busca manual em livros-texto de referência e outros artigos foi realizada visando permitir uma exposição didática do trabalho, esclarecendo pontos ainda não explicitados.

 

Resultados

Foram encontrados 136 artigos na primeira busca e, destes, 16 foram avaliados na íntegra. A segunda busca nas referências selecionadas forneceu mais 47 artigos para análise pormenorizada. Foram consultados 18 livros-texto abordando temas específicos não contemplados até então, visando a uma análise crítica do tema proposto.

 

Discussão

Evolução histórica do conceito de transtorno de humor

Kraepelin, ao dicotomizar as psicoses endógenas em "dementia praecox" e "psicose maníaco-depressiva", forneceu os limites do que atualmente se considera o espectro bipolar. Apontava como características definidoras dessa diferenciação o curso episódico, o prognóstico benigno e a história familiar de doença maníacodepressiva e, em 1913, na oitava edição de seu tratado, coloca virtualmente todas as formas de melancolia pertencendo à "doença maníaco-depressiva"2. O reconhecimento dos estados mistos foi uma importante contribuição para embasar a ligação das duas fases da doença7,8. As ideias desenvolvidas por Kraepelin não estavam para ele encerradas, mas sim suscetíveis à influência das pesquisas e observação clínica, mostrando uma atitude flexível diante da evolução do sistema classificatório em psiquiatria1.

O conceito unitário kraepeliniano foi desafiado, principalmente, pela escola Wernicke-Kleist-Leonhard no início do século XX. Cada um desses autores dividia, de forma semelhante, os transtornos de humor em unipolares e bipolares, com múltiplos subgrupos, o que tornou a classificação complicada e dificultou sua aceitação na comunidade científica. Assim, a ideologia proposta por Kraepelin permaneceu reinando até 1966, quando foram publicados os trabalhos de Angst e Perris, independentemente, apoiando a diferenciação entre transtornos unipolares e bipolares9. Ambos os trabalhos mostraram que a "mania unipolar" está ligada aos transtornos bipolares, o que não ocorre com a depressão unipolar, que guarda características distintas no curso, genética, gênero e personalidade pré-mórbida.

Distimia e ciclotimia

O termo distimia foi usado inicialmente para designar transtornos afetivos e separá-los dos transtornos não afetivos, sendo Carl Flemming, em 1844, um dos primeiros a utilizá-lo nesse sentido. Kahlbaum, em 1863, popularizou o termo e propôs que os sistemas de classificação deveriam considerar as observações clínicas e não somente conclusões baseadas em teorias e distinguiu os transtornos do humor (distimia), transtornos da inteligência (paranoia) e transtornos da vontade (diastrefia)10.

A obra de Kraepelin subtraiu a distimia, como terminologia, mas continuou descrevendo o fenômeno correspondente, que participaria das formas subclínicas da doença maníaco-depressiva e teria como substrato o "temperamento depressivo". Ao observar formas suaves de alterações do humor em familiares de pacientes hospitalizados por depressão ou mania, Kraepelin considerou que alguns casos poderiam ser mórbidos mesmo sem apresentar episódios severos e bem delimitados11.

Kurt Schneider, em 1923, descreveu a "psicopatia depressiva" como uma variação da normalidade nos traços de temperamento, sendo incorporada ao que modernamente se denomina transtorno de personalidade12. Posteriormente, essa visão seria utilizada e reformulada por Akiskal como ponto de partida na conceituação dos transtornos subafetivos.

No decorrer do século XX, até a década de 1970, a psiquiatria psicodinâmica exerceu forte influência e o diagnóstico de depressão neurótica ou psicogênica obscureceu o de distimia. A partir da década de 1960, os sistemas diagnósticos então vigentes começaram a ser colocados à prova com as pesquisas de Angst, Perris e Winokur (que retomavam a escola de Wernicke-Kleist-Leonhard) e com as publicações de autores como Akiskal e Kendell, que apontavam a falta de confiabilidade na detecção dos transtornos afetivos. Disso resultou a inclusão da distimia no capítulo dos transtornos de humor no DSM-III (Diagnostic and Statistical Manual of Mental Disorders - Third Edition) e na CID-9 (Classificação Internacional de Doenças - Nona Revisão), e o surgimento dos antidepressivos consolidou a mudança que se apresentaria no prognóstico dos transtornos afetivos10,1.

O termo ciclotimia foi primeiramente citado por Hecker em 1877 na descrição de uma gama de casos que poderiam receber o diagnóstico atual de transtorno bipolar tipo I13. Mas foi Kahlbaum que, em 1882, distingue os casos de "insanidade total" e os "transtornos parciais da alma". Estes incluíam a hipertimia, a ciclotimia e a distimia e apresentavam um curso favorável que nem sempre requeria internação e guardam relação direta com o que se denomina nos dias de hoje de transtornos subafetivos10.

Kraepelin manteve a ciclotimia em sua obra, considerando uma predisposição ou forma subclínica da psicose maníaco-depressiva. O temperamento ciclotímico era caracterizado por ele como "flutuações mais ou menos regulares do estado psíquico para o lado maníaco ou depressivo"2.

Nas décadas seguintes, o termo apresentou-se de forma contraditória, a partir dos conceitos elaborados por Kretschmer e Schneider. Para Kretschmer o temperamento ciclotímico poderia ser encontrado em indivíduos normais, mas também representaria o continuum entre temperamento e psicose. Schneider rejeitava a possibilidade de ligação entre a normalidade e as psicoses e utilizava o termo ciclotimia como sinônimo de psicose maníaco-depressiva. Ele descreveu três tipos psicopáticos com traços afetivos (depressivo, hipertímico e emocionalmente lábil) como variações da norma que não guardavam relação com as psicoses14.

Até a década de 1970, prevalecia a concepção de ciclotimia como temperamento, e estudos tentaram incluir essa entidade como um transtorno afetivo15, o que seria consolidado no DSM-III e, posteriormente, na CID-10 e no DSM-IV.

Brieger e Marneros10 afirmaram que é mais adequado o uso de ciclotimia somente como um transtorno subafetivo e que pesquisas são necessárias para validar sua distinção com o transtorno bipolar tipo II.

Os transtornos de humor nas modernas classificações psiquiátricas (CID e DSM)

Tanto a CID-9 como o DSM-II enfatizavam os aspectos da personalidade na neurose depressiva e na ciclotimia, e, com a influência da teoria psicodinâmica na psiquiatria, esses quadros ficavam destinados a receber tratamento fundamentalmente psicoterápico12.

Seguindo o trabalho de Akiskal15, entre outros pesquisadores, e ainda levando em consideração dados obtidos no Research Diagnostic Criteria (RDC), a ciclotimia foi incluída no capítulo de transtornos de humor do DSM-III e, posteriormente, na CID-10 e no DSM-IV, juntamente com a distimia, seguindo a influência da escola neokraepeliniana2.

Apesar dos progressos obtidos com os sistemas classificatórios atuais, esses critérios operacionais ainda mostram limitação na prática clínica. As principais críticas a essa abordagem são a desconsideração dos antecedentes familiares, o não discernimento entre episódio depressivo unipolar e bipolar, a duração prevista para os episódios (tanto depressivos como hipomaníacos) e os critérios restritivos na definição de episódios mistos16.

O espectro bipolar do humor

O termo "bipolar" passou a ser usado referindo-se a transtornos do humor a partir dos trabalhos de Kleist e seus seguidores, no início do século XX17. Porém, as raízes do atual espectro bipolar surgem ao ser feita a distinção entre bipolar tipo I (com episódios maníacos) e bipolar tipo II (com episódios hipomaníacos) por Dunner em 1976. Klerman, em 1981, expandiu essa distinção referindo-se a bipolar tipo III como quadro de episódios maníacos ou hipomaníacos secundários à farmacoterapia9.

Angst2 também havia proposto uma classificação incluindo a hipomania, a ciclotimia, a mania e a depressão em várias combinações.

Akiskal e seu grupo de colaboradores têm sido um dos principais expoentes na defesa de uma abordagem mais ampla do espectro bipolar do humor16. Trabalhos levando em consideração o temperamento, a epidemiologia, a história familiar e a resposta a medicações são apresentados como forma de validar uma abordagem menos restritiva15,18. Outra importante contribuição foi a proposta de que os estados mistos seriam explicados pela ocorrência de um episódio de humor de polaridade oposta ao temperamento usual do indivíduo19.

Em uma classificação recente, Akiskal e Pinto20 propuseram que o espectro bipolar fosse composto por oito categorias, que englobariam a combinação de depressão com mania, hipomania e hipertimia, o transtorno esquizoafetivo e os quadros precipitados por antidepressivos e abuso de substâncias.

À medida que novas propostas surgem e as fronteiras diagnósticas do transtorno bipolar expandem-se, aumenta a discrepância com os sistemas classificatórios em vigor (CID e DSM). A exclusão de todas as formas de depressão unipolar e a não consideração do curso prolongado e história familiar como critério de inclusão diagnóstica no espectro bipolar mostram-se como pontos problemáticos, tanto teóricos como clinicamente2.

Os transtornos de personalidade: evolução histórica do conceito

Desde a antiguidade tenta-se classificar os modos habituais de reação emocional dos indivíduos, o temperamento21. A teoria humoral de Hipócrates, posteriormente desenvolvida por Galeno, relacionava quatro humores aos quatro temperamentos: sangue (sanguíneo), bile amarela (colérico), bile negra (melancólico) e linfa (linfático). Cada vez mais o temperamento designa o caráter fisiológico da personalidade, apesar de ser difícil explicar como se dá sua ligação com os fatores biológicos22. A teoria dos temperamentos promoveu a noção moderna de que os tipos psicológicos são determinados por um substrato orgânico.

O caráter representa o cerne imutável do comportamento individual que o diferencia dos outros, a maneira psíquica de um indivíduo reagir aos acontecimentos no que concerne à esfera afetiva e volitiva23. Apresenta manifestações irredutíveis como o traço de caráter, que é a forma mínima do modo de sentir e agir em situações determinadas sem se submeter à intervenção imediata da consciência do eu24. Inclui a constituição e o temperamento modificados pela experiência e aprendizagem.

Etimologicamente a palavra personalidade designa máscara, como a máscara do ator que no teatro antigo era fixa e imutável durante toda sua apresentação. O conceito de personalidade delimitado no campo científico médico-psicológico diz respeito à função na qual se considera um eu único e permanente, uma acentuação enfática da pessoa além dos valores gerais de ser pessoa25. Jaspers26 definia como sendo a totalidade das relações compreensíveis e individuais da vida psíquica.

O conceito kraepeliniano de "estados fundamentais" foi retomado modernamente, especialmente nos trabalhos de Cloninger e Akiskal. Apesar de diferenças metodológicas e conceituais nos trabalhos desses autores, ambos tentam estabelecer uma relação de especificidade entre a gama de temperamentos de cada indivíduo e os diferentes tipos de transtorno de humor e personalidade.

O Temperament and Character Inventory (TCI), desenvolvido por Cloninger et al.27, é um questionário autoaplicável desenhado para quantificar diferenças individuais por meio das dimensões de temperamento e caráter. É composto por quatro traços de temperamento e três de caráter, em que cada dimensão pode ter uma pontuação diferente para resultar em um único desfecho possível27. Esse instrumento sugere que os traços de caráter indicariam a presença e a severidade do transtorno de personalidade e os traços de temperamento permitiriam uma distinção entre os clusters de transtorno de personalidade28.

Akiskal iniciou, no fim dos anos 1970, a construção de um instrumento clínico para coleta de dados diagnósticos, o Mood Clinic Data Questionnaire (MCDQ). Baseava-se nos conceitos clássicos de Kurt Schneider e Kraepelin sobre os traços e transtornos de personalidade em vez da abordagem proposta pelo DSM-II, a qual julgava não confiável. Sucederam-se as colaborações de grupos de pesquisadores de outros locais, o que proporcionou a evolução do questionário até o atual TEMPS-A (Temperament Evaluation of the Memphis, Pisa, Paris, and San Diego Autoquestionnaire), que continua sendo traduzido e aplicado em outras populações. A sua aplicação objetiva mensurar traços que poderiam tornar sujeitos vulneráveis a episódios afetivos29. Considerou que o temperamento seria uma forma protraída de traços subafetivos e que haveria diversas combinações entre sua polaridade com a fase afetiva predominante, culminando nas diferentes apresentações clínicas dos transtornos de humor6.

Tipologias

As tipologias constituem um sistema descritivo abreviado que tenta prever o comportamento do indivíduo, considerando o tipo como uma estrutura específica da personalidade e seu conjunto de modos particulares de reação. Podem basear-se em critérios de classificação morfológicos, fisiológicos, psicológicos ou mistos. Várias são as tipologias já propostas, muitas delas guardando estreitas relações entre si. Podemos citar as tipologias morfofisiológicas (Kretschmer, Sheldon), psicofisiológicas (Pavlov), psicológicas puras (Freud, Jung, Rorschach) e clínicas (Schneider).

Tipologia de Kretschmer

Baseando-se em suas observações de casos patológicos, Kretschmer, em 1921, utiliza dados constitucionais cuidadosamente aferidos e, considerando os tipos patológicos como graus extremos da normalidade, torna os achados aplicáveis também aos indivíduos normais21. Expandiu a noção de modelos de comportamento prémórbido para envolver toda a gama de temperamentos encontrados na população.

Definiu quatro tipos constitucionais: pícnico, leptossomático ou astênico, atlético e displásico. Cada um desses tipos, determinados por dados antropométricos, era relacionado diretamente a um temperamento e, nas formas extremas, a uma patologia, sendo que os displásicos não guardavam uma unidade temperamental e caracterológica. O temperamento ciclotímico relacionando-se ao tipo pícnico, o esquizoide ao tipo leptossomático e o viscoso ao tipo atlético, estando predispostos, respectivamente, à psicose maníacodepressiva, à esquizofrenia e à epilepsia30. Dessa forma concebia um continuum que considerava o temperamento em indivíduos normais, tipos psicopáticos e as respectivas psicoses (incluindo aqui o transtorno bipolar do humor). Os transtornos psicóticos foram considerados como formas extremas de reação, derivadas tanto do temperamento (psicoses endógenas: esquizofrenia e ciclotimia) como do caráter (delírio sensitivo paranoide)6.

Neurose de caráter

Este termo, encontrado na literatura psicanalítica, designa um tipo de neurose no qual o conflito psicológico manifesta-se na forma de traços de caráter ou modelos de comportamento mais do que sinais e sintomas claramente identificáveis31. O tema já havia sido abordado por Freud de forma difusa em sua obra e partiu de uma concepção descritiva e radicada na moralidade para ser gradativamente incorporado ao interesse analítico32. Freud, no artigo Caráter e Erotismo Anal33, observa a relação do erotismo infantil e seu desaparecimento, por um processo de substituição, na formação de determinados traços de caráter. Em outro momento, descreve tipos de caráter que apresentam dificuldades no processo analítico, sendo essas dificuldades decorrentes mais dos traços de caráter do que diretamente pelos sintomas apresentados34.

Em 1931, Freud escreve o artigo Tipos Libidinais, que aponta uma visão mais sistematizada do caráter e seus desvios35. Admite que, para o entendimento da humanidade, deve-se ter, idealmente, uma combinação regular de características físicas e mentais, mas que só tipos psicológicos poderiam ser descritos até então. Estabelece a situação libidinal como critério para sua classificação, mas ressalta que outros critérios poderão ocorrer. Descreve três tipos principais (erótico, narcísico e obsessivo), sendo possível a combinação de características mistas. Esses tipos abrangem os limites da normalidade e podem representar a ligação com o patológico. Acredita existir, nos tipos mistos, um terreno mais favorável ao surgimento das neuroses, mas reforça também que não esclarecem a sua gênese.

Posteriormente, Wilhelm Reich segue investigando esse tema e distingue a neurose, na qual os sintomas estariam localizados e definidos, da neurose de caráter, em que os sintomas estariam difusos e sem clara localização32.

A neurose de caráter engloba tipos que guardam relação direta com os transtornos de personalidade, mas sua abordagem explicativa causal distanciou seu emprego da clínica psiquiátrica, que segue sob a concepção descritiva fenomenológica.

Personalidades psicopáticas de Kurt Schneider

Em 1923, é publicada, pela primeira vez, a obra As personalidades psicopáticas, de Kurt Schneider, que foi reeditada inúmeras vezes, revelando a importância e a aceitação que ocupou na psiquiatria clínica desde então. Marcada pela nitidez conceitual característica do autor, inicia definindo conceitos básicos para a compreensão do tema e revisão da literatura pertinente para depois expor detalhadamente cada um dos tipos.

Schneider considera a personalidade psicopática como um subconjunto específico das personalidades anormais, sendo estas definidas a partir de norma como termo médio, no sentido de diretriz, o que possibilita a delimitação no campo de atuação da psiquiatria por não considerar a norma de valor, no sentido moral.

Torna-se, portanto, impossível descrever todas as personalidades anormais, tanto pela sua diversidade como pela carência de importância clínica de vários de seus tipos. Por isso define, de forma arbitrária e com base em questões práticas, personalidades psicopáticas como aquelas personalidades que sofrem por sua anormalidade ou que fazem sofrer a sociedade14. Não denomina patológicas as anomalias psíquicas correspondentes, pois concebe a enfermidade, em psicopatologia, sob conceitos corporais. Considera a personalidade composta pelo aspecto disposicional e pelo exógeno ou vivencial, entendendo que as influências do ambiente e das experiências não desempenham papel essencial no desenvolvimento da personalidade.

É delineada uma tipologia assistemática, isto é, os tipos são designados por suas características que se sobressaem, não sendo comparáveis entre si. Cuidados devem ser tomados nessa consideração tipológica, pois a variedade do modo de ser psíquico e suas anormalidades não tem correspondência com o modelo de diagnóstico de enfermidades. Essas formações adaptam-se ao modelo clínico categorial, mas não se referem à totalidade psíquica do homem nem consideram a influência das vivências.

Schneider não estabelece relações de transição entre as personalidades psicopáticas e as neuroses e as psicoses (incluindo aqui o transtorno bipolar do humor), mas admite que a personalidade configure a apresentação clínica dos casos.

Os transtornos de personalidade na CID e no DSM

A CID-10 descreve os transtornos de personalidade como padrões de comportamento arraigados e permanentes, que abrangem as esferas pessoal e social do indivíduo, determinados por condições de desenvolvimento que surgem na infância ou adolescência. Diferencia ainda a alteração de personalidade, que é adquirida na idade adulta, após estresse grave, privação ambiental extrema, transtorno psiquiátrico ou doença cerebral.

De forma semelhante, o DSM-IV-TR define os transtornos de personalidade e, sendo um sistema multiaxial, os codifica em um eixo separado (eixo 2) dos demais transtornos mentais (eixo 1). Divide os transtornos de personalidade em três classes baseando-se em similaridades descritivas: A (estranho-excêntrico), B (dramáticoemotivo) e C (ansioso-medroso). Considera que, para se realizar o diagnóstico diferencial, deve-se levar em conta que esse padrão de comportamento não ocorre somente na vigência de outro transtorno do eixo 1, o que tornaria particularmente difícil a distinção com aqueles transtornos que têm um início precoce e curso crônico. Admite ainda que se devam distinguir os traços de personalidade, que só devem ser diagnosticados como um transtorno de personalidade quando forem inflexíveis, mal adaptativos, persistentes e causarem prejuízo funcional e sofrimento subjetivo (DSM-IV-TR).

Os sistemas classificatórios atuais apresentam os transtornos de personalidade como um set de critérios diagnósticos distintos entre si que guardam relação com as descrições clínicas clássicas e são amplamente aceitos e influentes36. Tentativas de uma abordagem dimensional têm sido feitas na busca de estabelecer uma relação fidedigna com a visão categorial em vigor, porém ainda não é possível estabelecer um novo paradigma na abordagem diagnóstica que seja aplicado com confiança na população geral.

 

Conclusão

O diferencial entre transtornos de humor e de personalidade: perspectivas históricas

Os transtornos de humor e de personalidade são descritos desde a antiguidade e seus conceitos evoluíram de forma distinta ao longo do tempo. Essas entidades são definidas a partir de conceitos psicopatológicos clássicos e sua delimitação é ainda incerta em muitos casos e alvo de controvérsia.

Apesar da influência crescente da abordagem dimensional entre transtornos de humor e transtornos de personalidade, pesa ainda na decisão clínica a diferenciação desses transtornos em categorias distintas5, e o cerne diagnóstico dos referidos fenômenos ainda é composto de definições elementares da psicopatologia descritiva.

A sistematização do diagnóstico diferencial entre transtornos de personalidade e transtornos do humor ainda não se aplica à prática clínica em função da discordância dos conceitos eminentemente teóricos e da impossibilidade de demonstração de uma base biológica segura no discernimento de cada quadro nosológico. Observa-se, porém, historicamente, a tendência de mudança dos parâmetros utilizados para a diferenciação entre esses dois grupos de transtornos. Se, no passado, essa diferenciação era realizada a partir das características etiológicas, psicopatológicas e conceituais, hoje o diferencial tende a se basear, principalmente, nas características evolutivas do quadro em questão, bem como em sua resposta ao tratamento.

É possível que a controvérsia referente aos limites entre eixo I e eixo II se acentue nas próximas edições do DSM e da CID. Trata-se de um tópico revestido de grande importância, uma vez que a caracterização de determinados transtornos de personalidade como novas categorias diagnósticas de eixo I (ou sua incorporação a categorias de eixo I já existentes) tem importantes implicações do ponto de vista terapêutico, prognóstico e, por vezes, ético-legal.

 

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 Endereço para correspondência: 
Rodolfo Nunes Campos 
Grupo de Estudo de Doenças Afetivas, Instituto de Psiquiatria, HCFMUSP 
Rua Dr. Ovídio Pires de Campos, 785, PO Box 3671 
05403-010 - São Paulo, SP 
Telefone: (11) 3069-6648. Fax: (11) 3069-7894 
E-mail: rodolfoncampos@hotmail.com


Artigo original:

http://www.scielo.br/scielo.php?script=sci_arttext&pid=S0101-60832010000400004&lng=pt&nrm=iso&tlng=pt

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