Mário Henriques Marques; Maria dos Anjos Rodrigues Dixe
1º de julho de 2011
Crianças e jovens autistas: impacto na dinâmica familiar e pessoal de seus pais
Children and youth with autism: impact on their parents and family dynamics
Mário Henriques MarquesI; Maria dos Anjos Rodrigues DixeII
IMestre em Psicologia Clínica - Instituto Superior Miguel Torga, Coimbra
IIProfessora doutora na Escola Superior de Saúde - Instituto Politécnico de Leiria
RESUMO
CONTEXTO: O autismo é considerado uma perturbação do neurodesenvolvimento, com implicações severas no comportamento, comunicação e na interação social, tornando-se uma fonte de preocupações para os pais.
OBJETIVO: Determinar as necessidades dos pais de crianças e jovens com autismo e relacionar essas necessidades com funcionalidade, estratégias de coping familiar, estado emocional e a satisfação com a vida.
MÉTODOS: Um estudo correlacionado foi desenvolvido numa amostra não probabilística, de conveniência, constituída por 50 pais de crianças e jovens autistas. Os pais preencheram um questionário constituído por dados sociodemográficos, o Family Needs Survey (FNS); Family Adaptability and Cohesion Evaluation Scales (FACES-III), Escala de Ansiedade, Depressão e Stress (EADS), Family Crisis Oriented Personal Scales (F-COPES) e o Índice de Bem-Estar Pessoal (IBP). Para análise dos dados, recorreu-se a técnicas de estatística descritiva e inferencial.
RESULTADOS: Mais informações sobre os serviços (médicos e de segurança social) de que o filho possa vir a beneficiar-se foi a necessidade mais referida pelos pais. Os pais com mais necessidades apresentaram estados afetivos mais negativos, utilizaram mais estratégias de reenquadramento e aquisição de apoio social - relações íntimas. Em média, os pais reportaram um valor de bem-estar pessoal acima da mediana, contudo inferior ao apurado para a média da população portuguesa.
CONCLUSÃO: Ser pai de uma criança ou jovem com autismo representa ter necessidades insatisfeitas que podem ter implicações tanto no nível pessoal como no familiar. Sugere-se que se providenciem recursos nas vertentes social, educativa e de saúde, no sentido de criar, de forma planeada e abrangente, serviços que respondam às necessidades específicas dessas famílias.
Palavras-chave: Autismo, famílias, pais, implicações psicológicas.
ABSTRACT
CONTEXT: Autism is thought to be a neurodevelopmental disorder. It has a severe impact on behaviour, communication and social interaction and is a source of worry for parents.
OBJECTIVE: To ascertain the needs of the parents of children and young people with autism and relate these needs to functionality, family coping strategies, emotional state and satisfaction with life.
METHODS: A correlation study was undertaken on a non-probabilistic sample of 50 parents of autistic children and young people. The parents completed a questionnaire consisting of sociodemographic data, the Family Needs Survey (FNS); Family Adaptability and Cohesion Evaluation Scales, (FACES-III), Depression Anxiety and Stress Scales (DASS), Family Crisis Oriented Personal Scales (F-COPES) and the Personal Wellbeing Index (PWI). Descriptive and inferential statistics were used for data analysis.
RESULTS: More information on the services (medical and social security) from which their child could benefit was the need most often mentioned by parents. The parents with the most needs exhibited the most negative emotional states; they used more strategies to reframe and acquire social assistance - intimate relations. On average parents reported a level of personal wellbeing above the median, but below that found for the average Portuguese population.
CONCLUSION: Being the parent of a child or young person with autism signifies having unmet needs and this may have implications at both personal and family level. It is suggested that resources should be made available in the social, educational and health areas designed to achieve planned and inclusive services capable of responding to the specific needs of these families.
Keywords: Autism, families, parents, psychological implications.
Introdução
As perturbações do espectro do autismo envolvem limitações nas relações sociais, na comunicação verbal e não verbal e na variedade dos interesses e comportamentos1,2. O autismo é considerado uma perturbação do neurodesenvolvimento em que existe uma disfunção cerebral orgânica subjacente3,4. Durante muito tempo o autismo não foi compreendido, o que levou a diagnósticos equivocados, intervenções duvidosas e a pais frustrados5. Os pais lutam por melhores opções educativas e intervenções adequadas às necessidades dos seus filhos, levando-os a um constante desafio e fonte de preocupações6.
Os sintomas das perturbações do autismo podem ocorrer desde muito cedo, frequentemente se manifestando antes dos 3 anos de idade7-9, e apresentar uma gama de sintomas comportamentais: "medo e confusão, pouca tolerância à mudança, dificuldade em compreender regras sociais, hiper-sensibilidade, desatenção, impulsividade, agressividade, fuga, comportamentos agressivos e autoagressivos" (p. 56-57)10. As crianças e jovens com autismo evidenciam, por vezes, respostas incomuns a estímulos sensoriais, nomeadamente elevada resistência à dor, hipersensibilidade ao toque, reações exageradas a odores, fascínio com certos estímulos1. Esses distúrbios podem tornar-se uma fonte de preocupações para os pais e umgrande estressor para toda a família9,11. Sob situações eventualmente estressantes, é essencial que os pais consigam superar as situações de crise causadas pelo desenvolvimento atípico e que sejam capazes de estabelecer um relacionamento tão normal quanto possível, de forma a lidar com um funcionamento inadequado e conseguir uma boa coesão e adaptabilidade familiares. Como anotam Kuczynski et al.12, é importante que os profissionais de saúde estejam cientes da contribuição dos aspectos dinâmicos e familiares na origem de transtornos psiquiátricos nos elementos que constituem a própria família para, assim, os prevenirem.
A literatura refere que uma família com um bom funcionamento psicossocial apresenta um bom equilíbrio na coesão e na adaptabilidade familiar13. Por adaptabilidade entende-se, neste contexto, a capacidade de mudança da família, a fim de responder eficientemente a uma situação estressante, negociando as diferenças e tomando decisões em tempo de crise14. Por seu lado, a coesão refere-se aos laços emocionais fortes e independência entre os membros da família15. No entanto, algumas famílias não têm uma delimitação clara entre os subsistemas e podem ser caracterizadas como demasiado envolvidas ou superprotetoras16,17.
Essa adequação do comportamento dos pais a uma criança com incapacidades pode ser um processo longo e penoso, sendo importante poder contar com a colaboração atuante dos que estão mais próximos: familiares, amigos, outros pais com problemas semelhantes e profissionais especializados9. É possível que muitas famílias de crianças com incapacidades se ajustem positivamente e se adaptem à realidade da incapacidade do seu filho mediante várias estratégias de coping e de percepções positivas18. É nesse quadro de uma possível superação que se pretende investigar as necessidades dessas famílias e possíveis implicações no bem-estar psicológico, familiar e pessoal de pais de crianças e jovens com autismo.
Métodos
Tendo por base os objetivos anteriormente definidos, pode-se classificar o tipo de estudo como correlacionado ou analítico.
Hipóteses
H1: Existe correlação negativa e estatisticamente significativa entre o número de necessidades manifestadas pelos pais para cuidar do seu filho(a) com autismo e o funcionamento familiar.
H2: Existe correlação positiva e estatisticamente significativa entre o número de necessidades manifestadas pelos pais para cuidar do seu filho(a) com autismo e o nível de ansiedade, depressão e estresse dos pais.
H3: Existe correlação negativa e estatisticamente significativa entre o número de necessidades manifestadas pelos pais para cuidar do seu filho(a) com autismo e as estratégias de coping utilizadas pela família.
H4: Existe correlação negativa e estatisticamente significativa entre o número de necessidades manifestadas pelos pais para cuidar do seu filho(a) com autismo e o seu bem-estar pessoal e satisfação com a vida.
Amostra
Amostra não probabilística, de conveniência constituída pelos pais de alunos que frequentam as escolas públicas e IPSSs (Instituições Particulares de Solidariedade Social) do distrito de Leiria (Portugal). Como critérios de exclusão: não existir um diagnóstico clínico de autismo no filho (realizado pelo médico-assistente da criança/adolescente com base nos critérios do DSM-IV); evidência de problemas do foro psiquiátrico que impedissem a participação dos pais no estudo e o correto preenchimento do instrumento de pesquisa. A amostra final ficou constituída por 50 pais.
Instrumentos
Tendo em conta os objetivos e características deste estudo, elegeu-se como instrumento de recolha de dados um questionário constituído por seis instrumentos: questões relativas à caracterização sociodemográfica; o Family Needs Survey (FNS)19, que faz um inventário das necessidades das famílias; o Family Adaptability and Cohesion Evaluation Scales (FACES-III)20, que avalia a coesão e a adaptabilidade familiar; a Escala de Ansiedade, Depressão e Stress (EADS 21)21, que avalia a ansiedade, a depressão e o estresse; a Family Crisis Oriented Personal Scales (F-COPES)22, que avalia as atitudes e comportamentos dos pais na resolução de problemas e o tipo de coping utilizado, e o Índice de Bem-Estar Pessoal (IBP)23, que avalia o índice de bem-estar pessoal e a satisfação com a vida, o bem-estar subjetivo.
Saliente-se que todos os instrumentos estão validados para a população portuguesa pelos autores referenciados anteriormente.
Procedimentos formais e éticos
O pedido de autorização para a aplicação dos instrumentos de recolha de dados foi dirigido aos diretores das escolas públicas e aos presidentes das IPSSs por meio de carta, na qual foram especificados os objetivos do estudo.
Após a autorização formal em abril de 2009, das entidades responsáveis pelas instituições, foi obtido o consentimento, informando e garantindo o anonimato e a confidencialidade sobre os dadosrecolhidos de cada pai que participou no estudo.
Antes da aplicação dos instrumentos definitivos, foi efetuado um pré-teste com cinco pais com as mesmas características dapopulação-alvo da pesquisa, não tendo sido necessário proceder à nenhuma alteração.
Tratamento dos dados
Para sistematizar e realçar as informações fornecidas pelos dados, recorreu-se a técnicas de estatística descritiva: frequências (absolutas e relativas), medidas de tendência central (medianas e médias aritméticas), medidas de dispersão e variabilidade(desvio-padrão, coeficiente de variação) e inferencial (correlação de Spearman).
Utilizou-se a estatística inferencial não paramétrica em virtude de o teste de Kolmogorov-Smirnov (como teste de normalidade da distribuição) apresentar valores de p < 0,05 em algumas das variáveis.
Resultados
Necessidades dos pais para cuidar do filho(a) com autismo
Dentre as 21 necessidades inventariadas (Tabela 1), as cinco mais sentidas foram: a falta de informação sobre os serviços (médicos e de segurança social) de que o filho(a) possa vir a beneficiar-se é a necessidade mais sentida pelos pais (86%); necessidade de ajuda para discutir os problemas e encontrar soluções (80%); necessidade de ter mais tempo para si mesmos (68%); necessidade de ajuda para pagar as despesas (60%) e necessidade de encontrar alguém que fique com o filho(a) para poder tirar uns dias de descanso (56%).
Funcionalidade e estratégias de coping familiar, estados emocionais e bem-estar pessoal
Relativamente à funcionalidade familiar, as famílias que participaram neste estudo apresentam adaptabilidade muito flexível (66%) e coesãoarticulada (40%). Os tipos de família encontram-se entre o tipo de família média (2%) e o tipo muito equilibrado (52%). A família de tipo equilibrada representa 46% da amostra (Tabela 2).
Quanto às estratégias de coping familiar, a análise das médias apresentadas permite constatar que os pais utilizam mais estratégias de reenquadramento (M = 3,8; DP = 0,7) do que de aquisição deapoio social - relações íntimas (M = 3,3; DP = 0,9) e de mobilização de apoio formal (M = 3,1; DP = 1,0) e do que de apoio espiritual (M = 2,9; DP = 0,9). A aquisição de apoio social - relações de vizinhança(M = 1,8; DP = 0,8) é a estratégia de coping menos utilizada pelos respondentes. Verificou-se que os pais de crianças e jovens autistas,em média, não apresentam sintomatologia depressiva (M = 4,7; DP = 4,8), ansiedade (M = 4,1; DP = 4,7) ou estresse (M = 7,2; DP = 5,3), não evidenciando, portanto, estados afetivos negativos (M =16,1; DP = 14,2).
Os dados relativos à satisfação com a vida e ao índice de bem-estar pessoal revelam que os pais reportam, em média, um valor (63,4) de bem-estar pessoal acima da mediana da escala (50). Esse resultado, contudo, é inferior ao apurado pelos autores da escala para a média da população portuguesa, que é de 68,922. É quanto à satisfação com as relações pessoais que os pais manifestam, em média, um valor mais elevado de satisfação (M = 73,8; DP = 24,3). Por outro lado, a variável em que o nível de satisfação é mais baixo é a que se refere à satisfação na segurança com o futuro (M = 48,0).
Teste de hipóteses
Em seguida, apresentam-se os resultados respeitantes às hipóteses.
H1: Existe correlação negativa e estatisticamente significativa entre o número de necessidades manifestadas pelos pais para cuidar do seu filho com autismo e o funcionamento familiar.
Pela análise dos resultados apresentados na tabela 3, verificou-se que existe uma correlação fraca e negativa (rs = -0,15) e não significativa (p = 0,295) entre o tipo de família e o número de necessidades apresentadas pelos pais para cuidar do seu filho com autismo (variável continua resultante da soma do número de necessidades manifestadas dos pais). Relativamente à coesão (rs = 0,02; p = 0,844) e à adaptabilidade (rs = -0,24; p = 0,086), verificou-se igualmente que as diferenças não são estatisticamente significativas, ou seja, rejeita-se a hipótese experimental.
H2: Existe correlação positiva e estatisticamente significativa entre o número de necessidades manifestadas pelos pais para cuidar do seu filho com autismo e o nível de ansiedade, depressão e estresse dos pais.
Pelos dados apresentados na tabela 4, verifica-se que existe uma correlação moderada e positiva (rs = 0,427) e muito significativa (p = 0,002) entre o estado emocional (ansiedade, depressão e estresse) e o número de necessidades apresentadas pelos pais para cuidar do seu filho com autismo. Relativamente à ansiedade (rs = 0,427; p = 0,002), depressão (rs = 0,402; p = 0,004) e estresse (rs = 0,348; p = 0,014), verifica-se igualmente que as diferenças são estatisticamente muito significativas entre as variáveis em estudo. Pode-se ainda afirmar que os pais que apresentam maior número de necessidades apresentam estados afetivos mais negativos, tendo essa diferença significado estatístico muito significativo, verificando-se a hipótese formulada.
H3: Existe correlação negativa e estatisticamente significativa entre o número de necessidades manifestadas pelos pais para cuidar do seu filho com autismo e as estratégias de coping utilizadas pela família.
Ao se analisar a tabela 5, constata-se que existe uma correlação moderada e negativa (rs = -0,321) e significativa (p = 0,025) entre as estratégias de coping utilizadas pela família e o número de necessidades apresentadas pelos pais para cuidar da criança ou do jovem com autismo. Verifica-se ainda que existe uma correlação fraca e negativa e que as diferenças não são estatisticamente significativas entre a aquisição de apoio social nas relações de vizinhança (rs = -0,127; p = 0,383), a procura de apoio espiritual (rs = -0,142; p = 0,332), a mobilização de apoio formal (rs = 0,235; p = 0,104), o reenquadramento (rs = 0,233; p = 0,108) e aquisição de apoio social nas relações íntimas (rs = 0,039; p = 0,792) e o número de necessidades apresentadas pelos pais.
H4: Existe correlação negativa e estatisticamente significativa entre o número de necessidades manifestadas pelos pais para cuidar doseu filho com autismo e o bem-estar pessoal e a satisfação com a vida.
Na análise da tabela 6, observa-se uma correlação moderada e negativa (rs = -0,420) e estatisticamente muito significativa (p = 0,003) entre o bem-estar pessoal e a satisfação com a vida e o númerode necessidades apresentadas pelos pais para cuidar do seu filho comautismo, o que nos permite referir que quanto mais necessidades sentem os pais, menos bem-estar e satisfação com a vida eles reportam.
Discussão
Este estudo analisou as correlações entre as necessidades sentidas pelos pais de crianças e jovens com autismo e a adaptabilidade familiar, a ansiedade, os estados emocionais de ansiedade, depressão e estresse, o coping e o bem-estar pessoal e a satisfação com a vida.
Ao contrário da hipótese inicialmente formulada, essas famíliasapresentam uma adaptabilidade entre flexível e muito flexível e umacoesão sobretudo articulada, o que evidencia tipos de famílias equilibradas e muito equilibradas. Esses resultados encontram-se em sintoniacom o referido em Olson et al.13, quando referem que numa famíliacom bom funcionamento existe bom equilíbrio entre coesão e adaptabilidade. No que se refere aos estados afetivos, os pais que sentem maisnecessidades sentem também mais estresse, ansiedade e depressão,podendo revelar, individualmente, estados afetivos negativos.
As estratégias de coping dos pais revelam-se menos eficazesquanto maior o número de necessidades sentidas para cuidaremdos seus filhos com autismo. É necessária a manutenção de um forte sentido de coerência familiar para a redução do estresse, por outro lado Bristol24 anota que acreditar que o seu filho recebe o tratamentomais apropriado é vital para os pais lidarem com o estresse25. O uso do reenquadramento (avaliar os conflitos e as crises de modo positivo) e a mobilização de apoio formal parecem ser as estratégias de coping mais bem conseguidas. A reavaliação positiva, o coping focado no problema e pensar os eventos de forma positiva ajudam a amortecer e a superar as situações de estresse26. Os pais que utilizam o coping centrado no problema não o evitam, ao contrário, eles ativam uma série de processos para a resolução das suas necessidades mesmo que os recursos disponíveis sejam inadequados25.
A forma como esses pais experimentam a interação com a criança e com os outros membros da família pode advir da compreensão de potenciais mediadores cognitivos, tais como a forma como percebem os seus comportamentos, as suas funções, as suas esperanças, as expectativas e objetivos para o filho, o seu relacionamento familiar e as atribuições que fazem acerca das necessidades e dificuldades sentidas.
A maior parte das famílias é capaz de se adaptar às incapacidades e a lidar com elas de forma eficaz12. Os pais deste estudo, apesar de expressarem muitas dificuldades e necessidades, conseguem uma boa adaptabilidade familiar utilizando estratégias de coping que permitem, de alguma forma, preservar o equilíbrio e um certo bem-estar psicológico pessoal e de satisfação com a vida. É possível que as famílias que sabem redefinir as situações e sabem utilizar o apoio formal para lidar com o que as perturba lidem melhor com as situações de estresse. Como anotam Turnbull e Turnbull27, além de uma boa coesão e adaptabilidade familiares, os pais conseguem estratégias para manter um senso de coerência e normalidade na família.
Quanto ao bem-estar e à satisfação com a vida, verifica-se quequanto maior o número de necessidades sentidas, menor é o bem-estar pessoal e a satisfação com a vida. Contudo, os pais reportamum valor de bem-estar pessoal acima da mediana, que, no entanto,é inferior ao apurado para a média da população portuguesa22. A variável com o nível de satisfação mais elevado é a que está relacionada com as relações pessoais. A variável com o nível de satisfaçãomais baixo é a que se refere à satisfação e à segurança com o futuro. Esta última pode ser uma consequência das muitas dificuldades sentidas no quotidiano, principalmente das necessidades mais pontuadas, nomeadamente a necessidade de informação sobre os serviços futuros de que o filho possa vir a beneficiar-se e de ajuda para discutir problemas e encontrar soluções. Algumas dessas são de ordem prática eoutras são de ordem emocional. Muitos desses problemas são comunsaos pais de crianças com algum tipo de deficiência, enquanto outros são especiais para as famílias de crianças e jovens com autismo.
É importante compreender que o autismo implica mudançasfamiliares. Os pais que participaram neste estudo provavelmenteencontram renovação e alento nos significados que passam a atribuirà própria vida e às atividades do quotidiano, provavelmente saindo mais fortes, reorganizando compromissos e deveres, dando à vida um sentido de continuidade, como se fosse uma missão. Adaptar-se à mudança e continuar a crescer é um processo que, em geral, requeruma experiência construída, não é uma realização repentina e é isso que, talvez, lhes permite conservar a saúde mental.
O'Brien28 refere que os pais sabem que o autismo é para toda a vida, que é estressante e ao mesmo tempo um desafio. Esses pais demonstram, em conjunto, certa dimensão de resiliência. O bom funcionamento familiar demonstra que aprenderam a lidar de forma ajustada com o funcionamento problemático dos seus filhos e que as dificuldades e necessidades que daí advêm, apesar de serem muitas, podem ser ultrapassadas. Os pais sabem que, apesar das adversidades, o melhor para os seus filhos são eles próprios e eles ainda não lhes podem faltar. Sublinhem-se as formas conscientes, ou não, mediante as quais as próprias famílias se tornam mediadoras do seu sucesso, num esforço diário de obrigação, de competição e de interrogações para fazer perante os desafios da sociedade.
Essa capacidade espelha-se na forma como os pais refletem os seus tipos de família, na maneira como, apesar de tudo, ultrapassam as situações de ansiedade, depressão e estresse, no modo como utilizamas estratégias de coping, utilizando mais a redefinição das situações e procurando apoio social da família mais próxima e, ainda, na forma como reportam o seu bem-estar pessoal e a satisfação com a vida.
Yrmiya e Shaked29 referem no seu estudo de metanálise que os pais com filhos com autismo apresentam níveis elevados de dificuldades psicológicas, em comparação com pais de crianças com outras dificuldades. Pode-se concluir que lidar com uma criança ou jovem com autismo pode ser difícil e fatigante para muitas famílias. São muitas as necessidades referidas por esses pais, e isso pode se constituir um risco para a sua saúde mental.
Pensamos que em estudos futuros uma amostra mais abrangente eum estudo do tipo fenomenológico poderão dar um maior contributo para a compreensão do que é ser pai e mãe de uma criança ou jovem com autismo.
Este estudo evidencia a necessidade de mais investigação nasligações entre as necessidades específicas dos pais de crianças e jovenscom autismo e as implicações psicológicas, familiares e sociais desses pais. Sugere-se que se providenciem recursos nas vertentes social, educativa e de saúde no sentido de criar, de forma planeada e abrangente,serviços que respondam às necessidades específicas dessas famílias.
Referências
1. Associação de Psiquiatria Americana (APA). Manual diagnóstico e estatístico de transtornos mentais (DSM-IV-TR). 4. ed. Lisboa: Climepsi Editores; 2002.
2. Baldaçara L, Nóbrega LPC, Tengan SK, Maia AK. Hiperlexia em um caso de autismo e suas hipóteses. Rev Psiq Clín. 2006;33(5):268-71.
3. Rutter M. Autism: two-way interplay between research and clinical work. J Child Psychol Psychiatry. 1999;40(2):169-88.
4. Ozonoff S, Rogers S, Hendren RL. Perturbações do espectro do autismo: perspectivas de investigação actual. Lisboa: Climepsi Editores; 2003.
5. Ivey JK. What do parents expect? A study of likelihood and importance issues for children with autism spectrum disorders. Focus Autism Other Dev Disabl. 2004;19(1):27-33.
6. Sviberg B. Family system and coping behaviors: a comparison between parents of children with autistic spectrum disorders and parents with non-autistic children. Autism. 2002;6(4):397-409.
7. Baron-Cohen S. Autism and Asperger syndrome: the facts. Oxford: Oxford University Press; 2008.
8. Coleman M, Gillberg C. The biology of the autistic sindromes. New York: Praeger; 1985.
9. Rutter M. Diagnosis and definition: In: Rutter M, Schopler E, editors. Autism: a reappraisal of concepts and treatment. New York: Plenum Press; 1978, p. 1-25.
10. Wing L. The autistic spectrum (new updated edition). London: Constable & Robinson; 2002.
11. Bristol M, Cohen D, Costello E, Denckla, M, Eckber T, Kallen R, et al. State of the science in autism: report to the national institutes of health. J Autism Dev Disord. 1996;26(1):121-54.
12. Kuczynski E, Gondo MCI, Rojo CRC, Assumpção FB. Transtorno de conduta em adolescente portador de retardo mental devido à síndrome da deleção do braço longo do cromossomo 18. Rev Psiq Clín. 1999;26(4).
13. Olson DH, Portner J, Lavee Y. FACES III. St. Paul (MN): Department of Family Social Science University of Minnesota; 1985.
14. Olson DH, Russell CS, Sprenkle DH. Circumplex model of marital and family systems II: empirical studies and clinical intervention. In: JP Vincent, editor. Advances in family intervention assessment and theory. Greenwich (CT): JAI Press; 1980, v. 1, p. 129-79.
15. Turnbull AP, Turnbull HR, Erwin EJ, Soodak LC. Families, professionals and exceptionality. 5. ed. Upper Saddle River (NJ): Merrill/Prentice Hall; 2006.
16. Minuchin S, Fisman HC. Family therapy techniques. Cambridge (MA): Harvard University Press; 1981.
17. Goldenberg I, Goldenberg H. Family therapy: an overview. 6. ed. Pacific Grove (CA): Brooks; 2003.
18. Heiman T. Parents of children with disabilities: resilience, coping and future expectations. J Dev Phys Disabil. 2002;4(2):159-71.
19. Pereira F. As representações dos professores de educação especial e as necessidades das famílias. Lisboa: Secretariado Nacional para a Reabilitação e Integração das Pessoas com Deficiência; 1996.
20. Curral R, Dourado F, Roma-Torres A, Barros H, Palha A, Almeida L. Coesão e adaptabilidade familiares numa amostra portuguesa: estudo com o Faces III. Psiquiatria Clínica. 1999;20(3):213-7.
21. Pais-Ribeiro JL, Honrado A, Leal I. Contribuição para o estudo das escalas de ansiedade, depressão e stress (EADS) de 21 itens de Lovibond e Lovibond. Psicologia, Saúde e Doenças. 2004;5(2):229-39.
22. McCubbin HI, Olson DH, Larsen AS. F-COPES Family Crisis Orientated Personal Evaluation Scales. In: McCubbin HI, Thompson A, editors. Family assessment inventories for research and practice. 2. ed. Madison (WI): University of Wiscousin; 1987, p. 211-34.
23. Pais-Ribeiro JL, Cummins R. O bem-estar pessoal: estudo de validação da versão portuguesa da escala. In: Leal I, Pais Ribeiro JL, Silva I, Marques S, editores. Actas do 7º Congresso Nacional de Psicologia da Saúde. Lisboa: ISPA; 2008, p. 505-8.
24. Bristol MM. Family resources and successful adaptation to autistic children. In: Schopler E, Mesibov GB, editors. The effects of autism on the family. New York (NY): Plenum Press; 1984, p. 289-10.
25. Olsson MB, Hwang CP. Sense of coherence in parents of children with different developmental disabilities. J Intellect Disabil Res. 2002;46(7):548-59.
26. Folkman S, Moskowitz JT. Positive affect and the other side of coping. Am Psychol. 2000;55:647-54.
27. Turnbull AP, Turnbull HR. Families, professionals and exceptionality: a special partnership. 4. ed. Columbus (OH): Merrill Publishing Company; 2001.
28. O'Brien M. Ambiguous loss in families of children with autism spectrum disorders. Fam Relat. 2007;56:135-46.
29. Yirmiya N, Shaked M. Psychiatric disorders in parents of children with autism: a meta-analysis. J Child Psychol Psychiatry. 2005;46(1):69-83.
Endereço para correspondência:
Escola Superior de Saúde (Leiria)
Campus 2. Morro do Lena, Alto do Vieiro, Apartado 4137
2411-901 - Leiria, Portugal
E-mail: manjos.dixe@gmail.com
Artigo original: