Francisco B. Assumpção Jr.
2 de abril de 2007
Publicado no Boletim "Psiquiatria Hoje" da Associação Brasileira de Psiquiatria, 29(1):28-29; 2007
O JARDINEIRO FIEL : uma lição para a Psiquiatria da modernidade
Francisco B. Assumpção Jr. [1]
“se, como dizem, receber dinheiro de laboratórios é prostituição, então todos devemos fazer isso pois é a única maneira de fazermos pesquisa” (de um notório psiquiatra brasileiro ...)
O Jardineiro Fiel (The Constant Gardener), baseado em obra de 2001 escrita por John le Carré, é um filme que merece ser visto por muitas e diferentes razões, algumas delas bastante simples, como o fato de ter sido indicado ao Oscar de 2005, bem como pela interpretação magnífica de Rachel Weisz que ganhou, nesse mesmo ano, o Oscar de atriz coadjuvante.
Outro aspecto importante a ser considerado é a direção de Fernando Meireles, que apresenta uma direção segura (dentro das perspectivas globalizadas, é um orgulho um brasileiro dirigir uma co-produção anglo-americana) e a fotografia de César Charlone primorosa, já presente na primeira cena, grande plano, com Justin, na sombra, se despedindo de Tessa, ao sol, caracterizando a dualidade da relação dos dois, que permeará todo o filme.
Some-se a isso uma trilha sonora magnífica de Alberto Iglesia (também indicada ao Oscar), e seu desenrolar, tenso como um bom filme de aventuras e comovente como um drama, e teremos mais uma excelente razão para o assistirmos.
Entretanto, o mais importante talvez seja a reflexão que o mesmo proporciona, em função da dimensão a ser analisada e que pode ser observada no contraponto entre os dois personagens.
Assim, Justin (Ralph Fiennes) é um alto funcionário do corpo diplomático britânico, romântico, fleugmático e burocrático, com um interesse excessivo na jardinagem, que utiliza de maneira escapista.
Em contraposição, sua mulher Tessa representa o outro lado da moeda, ativista de direitos humanos, é impulsiva, sem muita noção da consequência de seus atos, procurando viver de maneira intensa e apaixonada.
Ao se tranferirem para a África, as atitudes de Tessa começam a ocasionar dificuldades sociais uma vez que, por serem intempestivas, demonstram conhecer atividades que vão de encontro a interesses estatais (“eles forneceram emprego para 1500 pessoas em Gales, tínhamos que dar algo em troca...”), políticos (“os hospitais sem autoclave para esterilização serviram para a compra de limusines”) e profissionais (“o consentimento informado é exigido porém aqueles que não autorizam a pesquisa são excluídos do atendimento”).
Em consequência disso, em uma viagem a trabalho, ela é assassinada e alega-se que esse crime ocorreu por razões passionais.
Marca-se até este momento um modo de existir que Kierkegaard (1845) descreveria como ético, uma vez que Tessa percebe todos os mecanismos do jogo do poder e, por questões universalmente aceitas, de maneira compreensível e incontestável, vai de encontro a elas em atitude heróica, com o sacrifício de sua própria vida.
Inicia-se então a saga de Justin que, primeiramente, devido a culpa decorrente de seu isolamento e também da idéia de que esse isolamento fez com que não tivesse auxiliado sua esposa, abandonando-a, passa a tentar esclarecer as calúnias com as quais se defronta. Entretanto, pouco a pouco vai resgatando sua imagem e esclarecendo uma situação bem mais ampla, não mais por aspectos éticos e sim por convicções próprias, inexplicáveis para os demais personagens. Assim, o significado de suas ações é pessoal, inexplicável e intransferível, relacionado somente àquilo que ele coloca na figura de Tessa, ainda que com o risco (que se concretiza ao final) de sua própria morte. Essa posição caracteriza o que o mesmo Kierkegaard (1845) vai considerar um estádio religioso.
Desvela-se então uma conspiração que envolve governos, multinacionais do setor farmacêutico, profissionais de saúde e testes de medicamentos em seres humanos. Assim, sob o pretexto de ajudar a prevenir a disseminação da AIDS no Quênia, distribui-se, gratuitamente, um novo medicamento (ainda em fase de testes) para Tuberculose, ocultando-se, pela manipulação dos testes científicos, os efeitos colaterais (fato não muito estranho para todos nós). E aqui algumas citações são bastante interessantes, uma vez que proporcionam argumentos com os quais também estamos bastante acostumados, como “se o mercado da tuberculose (e em nosso meio poderíamos dizer o mercado da depressão, dos transtornos ansiosos e do TDAH, por exemplo) subir, aquele que detiver as ações do medicamento testado (e em nosso caso não precisamos nem sequer citar algum exemplo pois todos nós os conhecemos sobejamente) terá um lucro de alguns milhões de dólares”. Essa assertiva globalizada de que o fim (econômico e social) justifica os meios, principalmente “porque não estamos aqui para defender as pessoas” (em frase de um dos diplomatas britânicos) marca a utilização das pessoas que podem ser descartadas, pois são valor de uso. Essas ações ainda podem ser justificadas, uma vez que “são pessoas que, por sua pobreza, morreriam de qualquer maneira e o teste a que são submetidas é a possibilidade de terem um atendimento de ponta”. Esse argumento, aliás, é o mesmo de muitos protocolos de pesquisa que referem que é “a contribuição que aqueles que não podem pagar por um tratamento diferenciado dão quando participam de uma pesquisa”.
Essa questão é tão marcante hoje e tão próxima de nossa atividade que as denúncias relativas aos médicos e às empresas farmacêuticas é citada inclusive pelo JAMA (Journal of the American Medical Association) de 2001, quando diz que “a indústria farmacêutica possui os médicos e dita o curso da educação e da pesquisa e, em última análise, da própria prática da medicina em níveis previamente inimagináveis”
Assim, conselheiro do CFM (Jornal do CREMSP, 2006) refere que os laboratórios não publicam os resultados negativos de pesquisas realizadas em centros médicos, com as “farmácias espionando médicos para laboratórios”, (Folha de São Paulo, 2005). Esse controle é chamado, pelo diretor médico da Boehringer Ingelheim do Brasil, em debate publicado pela revista “Ser Médico”, editada pelo Cremesp, de “pesquisa”, sendo realizado por outras empresas que repassam os resultados à indústria farmacêutica.
Tudo isso se mostra, de maneira similar a apresentada pelo filme, na prescrição não-racional de fármacos, com a utilização daqueles mais recentes e mais caros sem vantagens nítidas demonstradas sobre os antigos da mesma classe e, o que é pior, sem qualquer preocupação com a influência dos benefícios que estão na origem do favorecimento da companhia com a qual interagem.
É assustador saber da ausência de controles adequados na aprovação dos medicamentos e na sua fiscalização, conforme descobre Tessa. É aterrador pensar que pessoas miseráveis de um país pobre sirvam como cobaias de algum experimento, mas é muito mais preocupante pensar a dificuldade em se denunciar esse tipo de ação e, mais ainda, na nossa participação como coniventes ou omissos.
Assim, se Tessa é uma figura que conquista o espectador com seu idealismo, não se limitando a protestos verbais e partindo para a ação, Justin, não sendo um homem movido por paixões, manifesta-se de forma racional, abstendo-se, inicialmente, uma vez que as situações parecem não lhe dizerem respeito (como faz a maior parte de nós que não acreditamos que a omissão seja condenável).
Pena que ao contrário de Tessa, cuja morte altera o funcionamento de Justin, que passa a se envolver e compreender seu mundo, parece que nenhum tipo de abuso, sejam fome, doenças ou mesmo a exploração sistemática como a descrita, tenham pouca eficácia para transformar a nossa conduta cotidiana que permanece sempre passiva e auto-centrada.
[1] Professor livre docente pela Faculdade de Medicina da USP, professor associado do Instituto de Psicologia da USP, coordenador do departamento de Psiquiatria da Infância e da Adolescência da ABP, membro da Academia Paulista de Psicologia