Marcelo Pelizzoli
25 de abril de 2007
Resolução de conflitos inspirada na ética da alteridade de Levinas
Marcelo Pelizzoli[1]
Trata-se aqui de reflexões livres a partir da questão da justiça, com ênfase em processos restaurativos de mediação de conflitos, os quais encontrariam inspiração na ética da alteridade de Levinas, partindo da fenomenologia do Rosto (Visage). Para isso, preliminarmente, exploramos a noção de subjetividade perpassada pela alteridade como Rosto, e quais conseqüências éticas e sociais estariam em jogo desde esta fundamentação; posteriormente, propomos uma desconstrução do conceito de justiça tradicional, ampliando com outros horizontes teóricos, em vista da necessidade de reconsideração teórica e prática da instituição Justiça e seu papel social diante da presente violação da alteridade.
I – A fenomenologia do Rosto (Visage) em Levinas e a ética da alteridade
“A maneira pela qual se apresenta o Outro, ultrapassando a idéia de Outro em mim, nós chamamos rosto. O rosto de Outrem destrói a todo momento e desborda a imagem plástica que ele me deixa, a idéia à minha medida e à medida de seu ideatum - a idéia adequada. Ele não se manifesta por suas qualidades, mas kat’aùtó. Ele se exprime.” (TI, 21)
Na ética da alteridade levinasiana, a noção de Rosto assinala o sentido primeiro da subjetividade – enquanto fundamento da socialidade, a possibilidade do outro como outro abrindo o nível ético no centro do âmbito egológico e do ontológico. Ela marca um acontecimento - traumatismo – evocado no Desejo que trespassa a identidade, e aponta para a culminância da “relação sem relação” (sem reciprocidade de iguais), de um sujeito que se defronta com a transcendência. Este desejar para além da mera necessidade demarca a abertura, não recuperável em sua causa e satisfação, do registro (inter)humano por excelência. A questão do sentido (ético) está no coração deste registro, tanto quanto o modo de sua inteligibilidade frente ao que é tematizável, bem como o questionamento profundo direcionado ao sujeito idêntico e senhor de si e do mundo. “A noção de rosto... abre outras perspectivas: ela nos conduz para uma noção de sentido anterior a minha Sinngebung e, assim, independente de minha iniciativa e de meu poder. Ela significa a anterioridade filosófica do ente sobre o ser, uma exterioridade que não chama ao poder nem a posse...”[2]
A compreensibilidade da noção de Rosto está ligada diretamente à confrontação que uma fenomenologia indiciadora pelo Enigma da alteridade supõe em relação à “fenomeno-logia” da consciência intencional, bem como ao plano homogeneizante do Ser, onde os entes perdem sua face pelo anonimato da conformação “onto-lógica”. O Rosto, em seu apelo, inaugura o acolhimento da Idéia do Infinito, requerendo uma (meta)fenomenologia ética, que aborde o sentido do encontro (inter)humano para além do que é conformado na captação da visão. Na primazia da visão racional sobressai a visada identificadora, e o caráter objetivador de todas as coisas. Todo acontecimento significativo se resolveria no aparecer à luz da consciência racional, do ser como consciência teórica e do Ser em geral acima dos entes, e tal aparecer reforçaria a dinâmica gravitacional da energeia do Eu. Numa perspectiva crítica em relação à tradição, haveria uma primazia do olhar dominador:
“Nós encontramos este esquema da visão de Aristóteles a Heidegger. Na luz da generalidade que não existe, se estabelece a relação com o individual. Em Heidegger, uma abertura sobre o ser que não é um ser - que não é um “algo” - é necessário para que, de um modo geral, um “algo” se manifeste. No fato de algum modo formal que o ente é, em sua obra ou seu exercício de ser - em sua independência mesma - reside sua inteligibilidade.”[3]
A alergia da tradição filosófica ocidental à exterioridade, à inviolabilidade do Enigma da Vida, que não se dobra e esgota no processo de construção de sentido, ou na produção significante-significado, ou no plano de referências da inteligibilidade que reenvia por fim ao dado adequado e ao originário arquetípico - resgatando o começo e a causa - são confrontados quando da intervenção de outro estatuto do humano. Estatuto em que o espontâneo, voluntário e mediador da consciência racional tem sentido apenas na medida em que “o intencional se faz ética”[4], despertado por uma ex-periência que lhe ultrapassa. Nesta, uma “coisa em si” intrigante se reserva mas insiste em manter um apelo, na medida em que leva a provocar uma “relação sem (co)relação”, da exterioridade desejada e levada a sério; configura-se a possibilidade da orientação ou sentido buscado para um novo humano.
Acima de tudo, o Rosto representa a reviravolta e o abalo da espontaneidade da força do ego, da autonomia auto-justificada, da liberdade e da vontade de poder pessoal. É, por conseguinte, abalo do próprio estatuto ontológico do ser, ou onde ele se assenta, no plano da imanência do mundo, pois o Rosto “desordena a imanência sem se fixar nos horizontes do mundo”[5], e, deste modo, ele não é “preso no jogo de reenvios que funda e constitui a significação que é a ordem do ser”, visto que a ordem do ser “não comporta outro estatuto senão o do revelado e do dissimulado...”[6]. O ponto intrigante é o assumir desta experiência heterônoma no humano, na medida de sua estranheza que questiona justamente o em si e o para si do eu. “Esta inversão humana do em-si e do para-si, do ‘cada um por si’, em um eu ético, em prioridade do para-outro... se produziria nisto que chamamos encontro do rosto de outrem”[7]. Ele deve ser entendido no movimento e surpresa que parte do Outro, questionando a violação pela própria fragilidade da nudez humana, que vem à tona pela epifania (manifestação sui generis) do Outro. No abalo, não ocorre a “negação pura a simples do eu” por outrem, mas a efetivação da transcendência, a saída da solidão egológico-ontológica em direção à revelação do Outro - o que abre o próprio sentido do eu e da razão, por uma via interdiscursiva. “Ela (transcendência) é rosto; sua revelação é palavra. A relação com outrem introduz somente uma dimensão de transcendência e nos conduz para uma relação totalmente diferente da experiência no sentido sensível do termo, relativa e egoísta.”[8] Trata-se, aqui, do fundamento da Justiça no seu sentido primeiro.
Incontinente e infinito, o Rosto será inteligível em outro âmbito que o da adequação à visão - “o rosto fala”, é “uma presença viva, ele é expressão”[9], e leva-nos a transcender o ser como correlativo do saber dominador, pois envia à prática discursiva ou dialogal. A sua fala constitui o modo de vir detrás de sua aparência ou forma, “sua manifestação é um excedente sobre a paralisia inevitável da manifestação”[10]. Excedendo à adequação e ao captar intencional do eu, ele é também nudez e despojamento, ab-soluto e estranho. É como Rosto que o ser humano escapa à generalidade, à espécie, à categorização e à queda na massa ou totalização; daí a idéia de exterioridade, do sentido ético que está para além do tempo e do espaço do Ego.
“O ser é exterioridade: o próprio exercício de seu ser consiste na exterioridade, e nenhum pensamento poderia obedecer melhor ao ser senão ao deixar-se dominar por esta exterioridade... A verdadeira essência do homem apresenta-se em seu rosto no qual ele é infinitamente outro... Ele detém e paralisa minha violência...”[11]
O olhar-expressão do Rosto implica como que uma “conversão” da visão, da consciência ativa e do processo intencional-objetivante; remete à busca de justificação do próprio ser do eu que se vê exposto à crítica. Ele entra como orientação de sentido e vestígio ético em meio à quebra de fundamentação e pulverização do humano na contemporaneidade, ou mesmo junto à razão instrumental e à civilização tecnocêntrica, e motiva um novo imperativo e antídoto para a violência. O cerne da violência não estaria na particularização de um bandido ou num ator criminoso pontual, mas na postura egológica de fundo permeando o social a partir do Ego.
É neste âmbito que a alteridade se exprime no olhar-expressão, que abre já uma defasagem inalcançável no momento mesmo da sua transcendência. Ponto central aqui, para nossa investigação, é o fato de que a epifania do Rosto - súplica e apelo vindas de uma nudez e estranheza, a que o Desejo do Infinito leva - implica a abertura do âmbito da responsabilidade; mas não unicamente no sentido corrente, do comportamento moral e do assumir tarefas ou da ética prescritiva; antes, nos encontramos diante do sentido maior da subjetividade que aflora na “relação ao outro”.
“O Rosto que eu acolho me faz passar do fenômeno ao ser em um outro sentido: no discurso eu me exponho à interrogação de Outrem e esta urgência da resposta - ponto agudo do presente - me engendra para a responsabilidade; como responsável eu me encontro reconduzido à minha realidade última. (...) Minha existência, como ‘coisa em si’, começa com a presença em mim da idéia do Infinito, quando eu me busco em minha realidade última. Mas esta relação consiste já em servir Outrem.”[12]
Aqui, a exterioridade se inscreve na “essência do ser”; o Infinito (“experiência por excelência”) invade o sujeito pela concretude do Rosto-exterioridade de outrem; a relação que se instaura e que permeia o eu em sua maturidade - que põe o sentido maior do eu que surge como tal - é a da resposta-responsabilidade instigada pelo infinito aproximado no Desejo. Trata-se então, a cada vez e cada vez mais, de assumir o deslocamento – temporal, espacial e discursivo - da esfera egológica e aceder à significação aberta pela exigência de Justiça, no nível da essência crítica e ética da linguagem, em direção à justificação do eu. “Não há mundo significativo se não houver outrem. (...) Antes que outrem advenha, a existência não é ainda completamente advinda ao eu.”[13]
Mas surge a questão: como se dá a ação fruto do impacto do Rosto confrontando o Eu ? Qual a sua significação para o nível da socialidade e da sociedade ? Aqui entra o modo próprio, sutil e desconcertante, conversível em dilema moral, com que o Rosto como face própria confrontando no “face-a-face” exige. Primeiro, que não se trata de oposição simples de termos que se resolveriam por emendas dialéticas; não se poderia opor uma violência a outra com conteúdos diferentes, pois a matriz, a forma, permaneceria a mesma, e a “ontologia da guerra” - alérgica à alteridade - se perpetuaria. O Rosto, em sendo o sentido da exterioridade, “pro-põe” sua “presença” desde outra “experiência”, que de forma nenhuma é neutra, ou então credora de um registro do contato intuitivo e místico. Antes, chama à intrigante relação com uma alteridade inviolável, que se exprime em outro parâmetro de linguagem, a saber, a interdiscursividade que mantém a tensão e a própria assimetria dos termos, e que a mantém porque o Outro tem efetividade e vida própria, que está sempre mais além do vir-a-ser contínuo da tautologia do eu e da totalização[14]. Em tudo isso, fica evidente que a ética da alteridade arrebenta com o primado do teórico, e nos envia de imediato à concretude da vivência ética, pois senão todo sentido desta filosofia cai por terra; aí, não temos nenhuma garantia de satisfação, inclusive moral.
Entramos assim no momento fundamental da efetividade do Rosto como orientação para a relação com a alteridade, o instante vivo do exercer-se da exterioridade, através do questionamento das bases do eu e do surgimento da resistência ética. O confrontar-se com o Rosto não significa mais o confronto de poderes onde eu poderia, em ofensiva, assimilar mais uma “alteridade”; aqui, o abalo da epifania - expressão e voz antes que imagem - toca na própria raiz de poder e no ser do eu, em seu “poder ser eu mesmo” dado pela autonomia que garante a sua permanência. Neste sentido, torna-se plausível afirmar que: “Para ser atento a esta voz, talvez seja necessário ter conhecido um grande abalo. Não importa qual abalo. (...) desfalência do ser tombando em humanidade, que os filósofos não julgaram digno reter a atenção.”[15] A resistência que é abalo de poder, do próprio conatus, a qual não é violência nem pura negatividade, ou seja, a resistência ética, entra em cena pelo Rosto que me olha e que fala, interpondo um apelo do âmago de uma fraqueza e nudez sem defesa, e que, por ser cada vez novo e sempre outro (alteração), demanda outra resposta - responsabilidade - visto que foi flagrado o poder de totalização do Mesmo. “A expressão que o rosto introduz no mundo não desafia a fraqueza de meus poderes, mas meu poder de poder. (...) Isto que quer dizer concretamente: o rosto me fala e por aí me convida a uma relação sem medida comum com um poder que se exerce, seja ele gozo ou conhecimento.”[16]
Alguns significantes em jogo aqui: sensibilidade, afecção profunda, o sofrer e o assumir da interpelação de alguém, cujo tempo da eclosão e do descentramento do eu não são recuperáveis - a consciência chega tarde demais; não obstante, ela sente-sofre no emergir do Desejo do Infinito. Esta afecção, em sua incomensurável estranheza, incita a uma fala apesar da interdição (ou justamente por ela) da consciência, e o seu vestígio aponta a diferença radical - o Outro não é Eu.
É preciso considerar, antes, que o que se explicita com essa epifania da alteridade, ou choque do Outro - em sua fraqueza e em sua altura que é justamente sua inabarcabilidade diante da minha totalização - é uma dimensão de sentido que toca o eu no âmbito da vulnerabilidade humana. Não obstante, veremos surgir daqui o paradoxo da expressão do Infinito na confluência do eu-poder. “Eu não posso querer matar senão um ente absolutamente independente, que ultrapassa infinitamente meus poderes e que por aí não se opõe, mas paralisa o poder mesmo de poder. Outrem é o único que eu posso querer matar”[17]. Por conseguinte, apresentada e mantida de algum modo a concretude da vulnerabilidade e “delicabilidade” humana - com a afecção sem repleção na recorrência ao ego, surge o poder e a vontade de dominar, aniquilar ou matar - neutralizar ou relegar o Outro à pura negação de si - visto que se põe em risco o (meu) mundo próprio. O paradoxo se explicita percebendo-se que “enquanto posso compreender o outro, este ainda não é radicalmente outro, mas quando renuncio ao meu poder de compreensão e deixo o outro eclodir na sua alteridade, então surge em mim o poder de matar”[18].
A originalidade maior nesta fase - do abalo de poder e de ser inaugurada pela resistência ética, que é “sem resistência” no nível ontológico - é que o poder de dominar e aniquilar a alteridade do Rosto é acompanhado de uma impossibilidade radical: a alteridade não entrega o que dela é própria e efetiva como tal; ou seja, o Infinito não se integra ao processo de totalização/homogeneização, tal como a Ética extrapola a Ontologia. Por que ? No momento mesmo da ação de meu poder ou violação sobre o Outro, toda opressão ou tratativa que escamoteie a demanda ética do Rosto ou que almeje roubar e se apossar da alteridade de outrem está já fadada a um tipo de fracasso: a alteridade permanece sempre alteridade. Esta é, por um lado, inviolável, e o que pode ocorrer são apenas formas de violência do Mesmo nas relações; por outro lado, o eu, nesta ação invasiva, não sai de sua solidão egológico-ontológica, perpetuando o mal e o fracasso narcísico. O caso paradigmático é o do assassínio. No exato momento em que se mata outrem, sua alteridade se retirou, restando apenas um corpo sem vida. “O assassínio exerce um poder sobre isto que escapa ao poder. Ainda poder, pois o rosto se exprime no sensível; mas já impotência, porque o rosto rasga o sensível.”[19]
Feitas tais considerações sobre o poder de matar, próprio do eu como mesmo, entende-se agora porque a fala do Rosto é talvez o que há de mais básico no (inter)humano infinitizado pela alteridade e aberto no Desejo e Discurso (relação ética):
“Este infinito, mais forte que o assassínio, nos resiste já em seu rosto, é expressão original, é a primeira palavra: ‘tu não matarás’. O Infinito paralisa o poder pela sua resistência infinita ao assassínio, que, dura e insuperável, brilha no rosto de outrem, na nudez total de seus olhos, sem defesa, na nudez da abertura absoluta do Transcendente.”[20]
Entende-se porque a “epifania do Rosto é ética”, dada pela resistência ética advinda “do fundo dos olhos sem defesa na nudez” e miserabilidade; não se trata mais de uma presença silenciosa, voz interior - auto-afecção - ou da negatividade pela falha na fenomenologia do visível e dominável; antes, é da chamada ao discurso e à relação de Desejo e acolhimento de outrem. Explicita-se o fato de que o Outro não nega simplesmente o eu; em conjunção com a abertura do Desejo para além da necessidade, e do Infinito que ensina, abre a não-violência; eleva o eu ao acontecer que justificou o seu sentido de ser, na medida em que ecoou o apelo da alteridade e a assignação desde sempre do eu enquanto eu - o qual não tem fundamento em si e para si.
“O ser que se exprime se impõe, mais precisamente, ao apelar a mim de sua miséria e de sua nudez - de sua fome - sem que eu possa ser surdo a seu apelo. De modo que, na expressão, o ser que se impõe não limita mas promove minha liberdade, suscitando a bondade. (...) Esta apresentação (do Rosto) é a não-violência por excelência, pois em lugar de ferir minha liberdade, ela a chama à responsabilidade e a instaura. Ela é paz. (...) ...a condição de todo ensinamento.”[21]
Uma “nova liberdade”, em meio a uma “nova identidade”, é o que se infere da criatura despertada pela Lei do Infinito ético, em direção ao que o filósofo, em Totalité et Infini, chama de Justiça; e se assim o é, um novo sentido - na pluralidade de origem - para a fraternidade é configurada, em meio ao conflito que é como que constitutivo da interação social entre sujeitos diferentes. O conceito de Justiça em Levinas vem desta postura diante do Outro, a prioridade da alteridade antes da liberdade do eu. Não é o caso aqui de aprofundar mais esse conceito particularmente, pois o seu sentido já está dado na fenomenologia do Rosto e na resistência ética da alteridade, a qual trata de ser acolhida pelo sujeito, como vimos. O que nos interessa é que está colocado o fundamento ético para o social nesta inspiração levinasiana, a qual poderia ser aproximada da filosofia da não-violência e da compaixão; trata-se agora de reconsiderar o conceito comum de Justiça no âmbito do conflito e seu fundamento remetido ao social, veremos até que ponto a ética da alteridade pode servir de fundamento e até onde precisamos complementar esta fundamentação com outras vertentes.
1. Visão de conjunto e contexto de crise
Se queremos entender melhor do que se trata com Justiça, precisamos pensar o momento histórico-cultural vivido, num mundo que foi, a fórceps por vezes, se globalizando. A visão de contexto/conjunto aponta para uma crise de paradigma, do que nenhuma ciência ou prática institucionalizada escapou; e é justamente neste terreno pantanoso e ao mesmo tempo fértil que surgem as formas alternativas dentro de uma possível cultura de paz.
Na entrada do séc. XX temos uma ruptura epistemológica séria, dentro do Saber e chegando às bases civilizacionais como um todo. Isso significa que os modelos compreensivos de mundo, por exemplo, de matéria como algo sólido atomizado, de pessoa individual sem inconsciente, de fatos objetivos no mundo externo independentes do observador, de dimensão fragmentária e simplificadora da vida, da divisão homem-natureza, entre outros, estes modelos imperantes começam a ruir. Não apenas pelo surgimento de novas teorias mais apuradas, mas devido aos efeitos deletérios desta epistemologia, ligada imediatamente a uma concepção estética (sensibilidade), ontológica (o ser das coisas), sociológica e ética em especial, valores que seguimos. Em termos mais técnicos, trata-se de um questionamento radical do positivismo e do cartesianismo[22]. Nossa cultura e então o Direito é bastante contaminada com estas cosmovisões. Em nome de uma pretensa objetividade factual, de uma visão positivista dos conflitos sociais como fatos simples passíveis de legislação simplificadora, temos por exemplo sujeitos de deveres e direitos destacados de seus contextos sociais, emocionais, enfim, ambientais. Por isso, está em xeque o modelo do Direito Liberal vindo da Modernidade, a noção de Justiça, de imputabilidade individual e assim por diante. Está em jogo o fundamento mítico da Justiça institucionalizada, como veremos.
Como superar tais limitações/contaminações ? Neste contexto surgem teorias e movimentos novos, como Direitos Humanos, Direitos Difusos, Direito alternativo anti-positivista, Hermenêutica Jurídica, e a Justiça Restaurativa, uma de nossas inspirações nesta temática aqui exposta. Em todo caso, expõe-se o ferimento: o interregno que habita o Direito enquanto Ciência Social e Humana diante da cooptação do mesmo pelo estatuto epistemológico (cartesiano) das Ciências Naturais - pautadas na abordagem positivista. Nesta abordagem, por exemplo, não se entrou nos méritos das condições materiais concretas dos parceiros em conflito. Neste modelo de Direito há uma ênfase abstrata, bem como um legalismo algo religioso, como garantidor de normas que partem de uma desigualdade gritante; daí ser chamado por alguns de Direito Burguês. Há um acordo implícito entre os bem incluídos para o seu funcionamento; uma vez posto em marcha, o trem custa a parar, em nome mesmo de pretensa democracia e de um Estado de Direito. Aí entra a hipocrisia oficial e do poder privado.
Por exemplo: um “sem-terra” necessitado ocupa uma grande propriedade ociosa. Legalmente tem sido visto como um crime, no entanto, moralmente sabemos todos que não é, pois nesta condição, na verdade, trata-se de justiça. Ou ainda: por que o “ladrão de galinha” é condenado e o “ladrão engravatado” é solto? O próprio cristianismo – que contribuiu para a dicotomia Bem X Mal e a legitimação do “poder terreno” - seja na Bíblia, seja na Doutrina Social da Igreja Católica por exemplo, contempla uma outra noção de justiça, quando instituí o modelo do perdão das dívidas desde o Antigo Testamento, ou do acolhimento material dos pobres, ou de Jesus quando diz que quem tem fome pode pegar alimento onde sobra; a Doutrina Social considera lícito certas condições de furto. Neste sentido, quando um “menino de rua” assalta um rico (e com um pouco mais de dinheiro já se é rico no III Mundo), devemos ter estes aspectos éticos (para além do moralismo) em mente. Quão falsa pode ser a moral vigente? As vezes, um ato imoral ou dito crime toca num fundamento ético[23] mais profundo. Os recursos em comum, mas também o furto é quase tão antigo quanto o homem, e sofreu uma moralização excessiva; hoje podemos pensar sem medo o papel de estabilizador social da própria transgressão, e também o de alarme social. É difícil negar o papel social dos Robin Woods da vida; trata-se sem dúvida de redistribuir empoderamentos, bens, dignidade etc.; é condição essencial para a manutenção social futura. Hoje há condições de compreensão social sistêmica suficiente para apontar que o enriquecimento despreocupado, numa sociedade carente, é muito mais imoral do que certos atos criminosos dos pobres. Por que não o consideramos ainda crime ? Se temos a dimensão da dívida social implicada no valor, no dinheiro, poderemos entender que a acumulação de capital significa matar de fome, gerar violência. E assim começamos corajosamente a perceber uma das grandes causas da chamada violência. Para esses fins deveríamos falar em violência externa, ilícita, e em violência oculta, tornada lícita. Por que achamos que uma é pior do que a outra ?
Em todo caso, numa cultura de paz, não se trata de defender a violência de uma das partes, e o foco é algo como o processo de restauração do violado, o que não exclui as reflexões acima, na medida em que não temos uma situação ideal de parceria social, mas desnivelada. Como falar em justiça, justiça restaurativa, de ofensas/danos/crimes prescindindo do contexto social, econômico e sistêmico ?
Por fim, para ilustrar a mudança histórica e a crisis como ruptura de paradigma é só olhar para os grandes movimentos contemporâneos: Ecologia, Física quântica e complexidade, Feminismo, Direitos humanos e paz, revoltas socialistas, o advento estrondoso da psicanálise, a retomada da espiritualidade e de práticas alternativas. A arte contemporânea revelou tal mudança de forma sintomática, e para muitos desconstrutora. As visões da alteridade e da Hermenêutica incluem-se aí neste novum, para além certamente do moralismo.
2. Crítica à moral conservadora
Tal crítica que estamos fazendo, aponta para uma verdadeira e corajosa Ética, levando a alteridade a sério, para além da hipocrisia. Em nome da ética às vezes precisamos ser imorais, ir contra hábitos perniciosos considerados normalizados. Moral vem de mos, mores, e indica costumes. A gente se acostuma. Muitos costumes podem ser bons, mas muitos podem ser conservadores no sentido de reter hábitos anti-éticos. A gente se acostuma a achar que deve haver ricos garantidos pela lei e pobres mal assistidos; a gente se acostuma a achar normal madame de casaco de pele; a gente se acostuma a ver crianças de rua; a gente se acostuma a achar que cidade é pra encher de carro e poluição de todo tipo; a gente se acostuma a achar que pode usar ainda um pouco mais os recursos naturais a nossa disposição; a gente se acostuma a achar que o ego vem em primeiro lugar e tem mais direitos. A gente se acostuma com apartheids de todo tipo, e, portanto, a não ver o rosto do outro.
A moral conservadora é uma forma de proteção ao frágil ego e sua honra. Protegemo-nos sendo bonzinhos o tempo todo e até de sorriso falso; normais; nos protegemos usando roupas bonitas e bem aceitáveis; nos protegemos zelando pela nossa honra intocável, nossa identidade, nossos pequenos detalhes e nossas posses, coisas todas que em breve os cupins, ferrugens e vermes comerão, como nosso corpo - muitas vezes quando menos esperamos. E alguns se acostumam a achar, já que vão morrer mesmo, que o sentido da vida é usar e abusar o máximo, numa verdadeira idolatria/egolatria. Perdem a chance de se aquecer no fogo do Amor. Mas não é só isso, propugnam, com sua visão e comportamento, uma sociedade egolátrica, que vai se espraiar nas instituições sociais, e vai pagar alto preço pela não compreensão do sentido ético, sistêmico, de alteridade, e transcendente também, da vida humana coletiva no planeta.
Não é de se admirar que a moral conservadora e depois seu prolongamento na moral burguesa e liberal tenham gerado praticamente o seu oposto: a moral niilista. Nada importa, estamos diante do nada, da morte, faço o que quero. Tudo vale e nada tem valor realmente – minha definição simples do lado negativo da pós-modernidade. A moral niilista é o outro lado da moral conservadora e burguesa ! Uma gera a outra. As duas sofrem da fraqueza egolátrica, idolatria da fraqueza tornada pretensamente força, própria para uma cultura do volátil, do medo, do “amor” objetal e portanto da violência. Talvez ela tenha seu sentido de ser neste momento da jornada da evolução humana, onde o ego criança dá os primeiros passos[24], mas igualmente mostra seus limites e momento de começar a transmutar. As gerações vindouras que já estão aqui em semente, depois de passar por grandes dores, provavelmente, poderão colher frutos mais maduros deste tempo.
O que fica evidente com este desmascaramento da moral conversadora é seu papel defensivo e, paradoxalmente, corroborador da própria violência que quer combater. Em um certo aspecto e momento, vítima e agressor são unidos; eles apenas se encontram em momentos e contextos diferentes, posições diferentes no mesmo jogo circular e sistêmico. Por “sorte” minha ele está ali no meu lugar... Há uma sombra dentro da moral. Sem digeri-la, só nos resta a hipocrisia.
3. Compreensão chocante e humilde da própria Sombra[25]
“Encontrei o inimigo: e ele está dentro de mim” (Ditado Hindu)
“Atire a primeira pedra quem não tiver pecado” (Jesus)
Há uma tendência primitiva encarnada ainda em nossa sociedade, a mesma que está por trás da instituição Justiça e da moral conservadora: o mal tende a ser projetado sempre para fora, seja em nível pessoal, seja numa projeção coletiva (como os judeus no nazismo). A não aceitação de si, da própria alteridade, ou seja, da sombra íntima, do mal e estranheza que nos habita, faz com que não nos percebamos como partícipes de sintomas chamados “ladrões, prostitutas, criminosos, depravados”, que são odiados, mas, não obstante, no fundo, igualmente desejados! Deveras, sintomatizam doenças psico-sociais que nos habitam. Imagine se não tivéssemos espelhos?! “Encontrei o inimigo. Quem é ele ? Ele sou EU !” Parece difícil admitir que um foco de violência, uma ponta de iceberg visível, traz à tona o que temos dentro, de raiva, medo, ódio, frustração, violação.
Não é simples admitir que há um ser maquiavélico dentro de nós, um sujeito inquieto, que se diz consciente e autônomo e livre, e que olha o mundo a partir de si como centro, e tende a desmoronar quando perde o controle da situação. Tudo deve estar em seu mundo, no seu campo de visão, e à mão; a mani-pulare. E assim, desafortunadamente, o mal também está bem dentro. Quando olho o outro com os olhos do julgamento voraz, aquilo que vejo é sempre algo que já tenho em algum grau dentro de mim. Gloriosa interdependência!, que me une ainda mais com a miserabilidade que penso alheia. Felizmente, isso serve também para o bem, o bem que vejo em mim é tal presente nos outros. Admitir isso é atuar na humildade, ou seja, na terra (humus); pôr os pés no chão, aceitando que o outro pode ter qualidades maiores que as minhas, e que eu possa ter hábitos perniciosos iguais ao de quem considero “ladrão”, “prostituta”, “cafajeste” etc. A diferença é uma linha tênue que a qualquer momento – mudança de ambiente – pode se desfazer. É por isso igualmente que podemos dar crédito ao humano mesmo em situação de degradação econômica, pois na mudança do ambiente, temos outras condições de justiça, de não-violência.
Talvez um dos maiores clássicos da literatura mundial seja, além de O Retrato de Dorian Gray, a obra The strange case of Dr. Jackyll and Mr. Hyde, traduzido para o cinema como O médico e o Monstro. O processo de descoberta crua e nua, atuante e criminosa, de uma pessoa de moral conservadora, bem dotada profissional e socialmente, e que começa a ser dominada pela sua própria interioridade – a verdadeira droga é a sua Sombra tenebrosa. Não é o diabo ou uma substância química que o está possuindo, são elementos de sua própria natureza, elementos a ignorar, algo mal trabalhado, e avidamente projetados para fora.
Aceitar e trabalhar a própria sombra, sublimando-a entre negativo e positivo – pela arte, pelo trabalho social, pela criatividade, pelo amor – é aspecto fundamental para a manutenção de uma sociedade mais pacífica. Tomar a sombra como ponto de reflexão para a noção de Justiça traz aspectos revolucionários nesta área, pelo menos em termos de uma outra compreensão da ação humana e do quanto estamos presos a todas elas, mesmo as negativas !
Numa visão S–O (sujeito e objeto separados) simples, penso que há um Sujeito da ação que merece ser castigado, com sua imputabilidade pessoal; e há um objeto vitimado, ao acaso, separado do contexto social. Numa visão clássica de ciência, temos sujeitos atomizados e espaços localizados definidos; já numa visão quântica, teríamos fusão de horizontes, interdependência de fatores e não-localidade. Se considero seriamente a Sombra, há necessidade de certa “des-moralização” e certa “des-culpabilização” atomizada dos casos e uma compreensão da complexidade e interdependência da natureza humana, seu lado sombrio, e o sentido disso na cristalização dos conflitos. Os processos restaurativos das vítimas – e também dos agressores – podem enriquecer a compreensão da delicadeza (sutilezas) da interioridade humana e sua ligação com a exterioridade social. O simples fato de colocar-se no lugar do outro é um primeiro exercício disto. “Eu provavelmente faria tal coisa em seu lugar”; ou, de modo simples, podemos perguntar sinceramente: quantas vezes pensei em matar alguém, em trata-lo mal, em desejar seu mal, em corromper, em perversões sexuais ??
A cultura ocidental trilhou um destino de grande repressão da Sombra, e isso é bem visto no tabu a respeito do Mal e das figuras mitológicas reprimidas do diabo; veja-se a grande dicotomia, no maniqueísmo cultural, vigente de modo religioso e também laico, de como tornamos dual a vida. Em tudo, ou bem ou mal; em tudo suspeita de mal. Em tese, não conseguimos trabalhar bem nossos demônios interiores. Eles acabam sendo projetados nos bodes expiatórios, nos indivíduos a serem sacrificados, nas personificações externas do Mal, no castigo e na fogueira[26]. Os nossos heróis são modelos mitológicos que vencem o mal. Contudo, chegou a hora de amar e transmutar o mal interior e exterior. Só assim temos a cultura de paz, a restauração, a mediação e a Justiça, no sentido profundo destes termos, não mais idealizada, dicotômica, mas ética.
3.1. Crítica à cultura da vingança/punição e da dicotomia absoluta (Bem X Mal): o modelo sacrificial. Crítica ao Fundamento mítico da autoridade na Justiça institucionalizada.
A teoria retributiva acredita que a dor vai justificar (o dano), mas a prática disso é geralmente contraproducente tanto para a vítima quanto para o ofensor. A teoria da justiça restaurativa, por outro lado, argumenta que o que verdadeiramente justifica é reconhecer os danos das vítimas e suas necessidades, combinado com um esforço ativo para encorajar os ofensores a assumirem responsabilidade, corrigirem os erros, e cuidarem das causas de seu comportamento. Por responder a essa necessidade de justificação num jeito positivo, a justiça restaurativa tem o potencial para aceitar a ambos, vítima e ofensor e para ajudar a ambos a transformarem suas vidas (H. Zehr)
“Olho por olho, dente por dente”. A cultura da vingança está ligada a da premiação, reforçando que há os ontologicamente bons, e os ontologicamente ruins, os quais talvez apenas a Matrix possa mudar (quem sabe agora a gente descobre o gen da criminalidade, e o extirpa !). Baseia-se numa visão grosseira da vida, acoplada à violência do Sagrado secularizado, da dicotomia Bem-Mal absoluta.
Em tudo o que dissemos antes, trata-se de criticar um modelo cultural histórico que no fundo elege entes sacrificados, em nome da religião antes, em nome da Justiça agora, do Estado, ou da segurança pública ou privada. Eis a totalização e a ontologia efetiva a que Levinas fala. O risco coletivo em períodos de tensão e desigualdade social acirra uma cultura da vingança/punição como compensação social e como estabilização de medos. Daí o extremo medo por trás da vontade de matar transgressores. O risco que vivemos é igualmente o de retrocessos em direitos humanos; é o de ditadores que se erguem em nome da disseminação do terror (como a política do governo Bush); é o de recrudescimento do conservadorismo e de certo fascismo, e de polícias paralelas, grupos de extermínio apoiado por empresários e outros profissionais; ou ainda máfias defensivas. No âmbito privado temos um verdadeiro aparato de controle, com câmeras, vigias, animais, armas de todo tipo, carros blindados, cercas elétricas, ou ainda controle de dados e da vida do “cliente”.
O modelo sacrificial tenta a todo custo achar os bodes para sangrar e matar, pretensamente acalmando a raiva-medo no ar. Aqui, é possível ser desresponsabilizado no aspecto inter-humano. Mais uma vez, não há Rosto.
Nossa educação foi programada para a competitividade, no trem do mercado. O fato de premiar alguém significa em geral que há outros que foram ultrapassados; que há méritos maiores conforme se segue à risca a regra. Um operador ou um operário padrão. Novamente, que há os bons e os ruins, e isso são aspectos pessoais atomizados, e méritos individuais apenas. Se formos falar nos cursos de Direito, seria um outro livro sombrio a ser escrito, em termos de despreparo humano e teórico, em termos de retórica com falsa substância ética, em termos de legalismo e formalismo, em termos de empoderamento sem retornar ao social como dívida e diaconia os anos de estudo e oportunidades na coisa pública - dada pelo público. Ter como finalidade apenas o dinheiro e o poder e a identidade pessoal a partir da utilidade e representação pública é irônico, mas também lastimável, não?
Quando ao fundamento mítico da autoridade e da justiça[27], cabe apenas brevemente dizer que é antiga a aura sagrada atuante dentro da instituição Justiça. Bons ícones disso são os crucifixos atrás das bancadas, ou dos altares dos juízes; as vestes sagradas nos tribunais, o jurar sobre um livro sagrado, o caráter religioso da sentença e assim por diante. Em todo caso, como dizia Montaigne nos seus Ensaios, “as leis são obedecidas não por serem justas, mas porque são leis: é o fundamento místico de sua autoridade, elas não têm outro...” Como diz Derrida, “a justiça do direito, a justiça como direito não é a justiça. As leis não são justas enquanto tais. Não se lhes obedece porque sejam justas, mas porque têm autoridade”[28]. É daí que se segue a necessidade da desconstrução dos conceitos de Justiça, Direito, Ética e agregados.
4. Questionamento dos limites da visão de separatividade: o papel da inseparatividade social
Trata-se aqui da compreensão sistêmico-complexa da realidade social. E da compreensão da subjetividade como imbricação[29].
A idéia do sujeito individual autônomo e separado pelo corpo dos outros corpos e da natureza e da destinação social vem de uma visão cartesiana[30], separativa, fragmentária, localizada e apoiada uma filosofia racionalista-idealista, numa física clássica e numa política liberal, liberdade individual intocável – calcada na propriedade privada. No Direito, isso entra no Direito Liberal Moderno, com base em autores como Kant[31] e Hegel por exemplo, onde se abstrai das condições materiais sociais concretas dos parceiros em nome de uma universalidade abstrata de direitos. Essa era de algum modo a crítica de Marx ao Idealismo e ao Direito burguês.
Numa compreensão ética sistêmica radical, começamos a entender a afirmação de Dostoiewski: somos responsáveis por tudo e por todos, e eu mais ainda. O conceito de valor, no sentido econômico amplo, é um bom exemplo que às vezes passa desapercebido, o fato de que o dinheiro traduz valores referentes a uma interação social dinâmica e muitas vezes penosa para muitos seres, e um uso dos recursos que na verdade cada vez mais não podem ser reduzidos à propriedade individual – pensemos nas águas, nos ares, nas terras, nos vegetais... De onde provém o direito de possuí-los e usá-los ? O que significa acumulação de capital num mundo de privações e limitações de toda ordem ? A questão agora é: até onde o Direito e a Instituição Justiça e seus operadores, e assim o Estado, enfim, toda esta “seara”, aponta para a realização verdadeira e profunda da Justiça pautada na ética da alteridade e no sistema social, e até onde ele traduz um aparato burocrático e aristocrático Liberal ?
Numa visão interdependente, que deve acompanhar a Justiça, é preciso investigar mais a fundo a dimensão social e sistêmica das ações e violações e do sistema de necessidades. A sociedade move-se como que por ações-reações complexas, para além da causalidade linear simples que opera na dimensão cartesiana (S-O) da separatividade. Em nome da objetividade dos fatos jurídicos, a tendência foi o reducionismo objetivista no espectro de dimensões das relações/conflitos humanos. Há um ganho utilitário por um lado, mas há uma perda de compreensão e atuação no todo social.
Podemos ver isso nos elementos cristalizadores da situação conflitiva e passível de punição:
1.Sujeito e responsável individual pela ação
2. Ação palpável/explicitável e localizável;
3. Sujeito passivo/paciente da ação, ofendido.
As ações são inseridas no sistema institucional: sistema de penalidades; Legislação, Direito específico ao caso. Neste momento tornam-se sujeitos/objetos, mas o âmbito e o sistema de sua conflituosidade tendem a ser excluídos, reduzidos apenas aos fatos objetiváveis que serão medidos/encaixados à normatividade, à Lei.
Outra questão importante acoplada: a legitimação do Direito enquanto Justiça não poderia colocar seu peso mais no procedimento do que no conteúdo e contexto; a burocratização caminha junta com as formalidades e procedimentos, numa rede interminável de intervenções. É no conteúdo e mérito fundante onde entraria a ética da alteridade, e a preferência pela Justiça Social antes que pela Justiça Liberal, por exemplo. Contudo, através dos escaninhos procedimentais muitos criminosos ricos e engravatados escapam, e os excluídos juridicamente são dilapidados.
4.1. A visão sistêmico-complexa e a Justiça Restaurativa
“As abordagens restaurativas são importantes mesmo quando um ofensor não tenha sido preso ou quando uma parte não deseja ou não pode participar do encontro. Portanto, as abordagens restaurativas não se restringem apenas aos encontros.” (H. Zehr)
Trazemos aqui o exemplo da Justiça Restaurativa na medida em que esta visa o concerto ético e a restauração inter-humana antes que a punição e retribuição penal; além do mais, seu entendimento é sempre sistêmico. Tal sugestão é interessante na medida em que numa visão sistêmica, a mudança de um fator, ou de uma mentalidade pessoal, tem o poder sutil de mudar outras visões, numa escala de reverberação de causalidade não objetivável. Filosoficamente, grandes religiões perceberam a natureza associativa e vinculante da mente humana, já que habita em paisagem social, familiar-comunitária. O que significa dizer que vivemos em constelações que nos atingem, desde onde atuamos. O exemplo que trago é o do trabalho de constelação familiar (ou terapia sistêmica fenomenológica), onde a pessoa consegue trabalhar, a partir de si mesma mas dentro de um grupo terapêutico, aspectos vinculados ao seu meio familiar e de convivência; há o pressuposto de que carregamos a família e até outras pessoas dentro de nós. O efeito terapêutico sobre um tem influência (como na rede quântica) sobre outros na complexidade, na rede social[32].
Isso pode ser estendido à sociedade. Significa que uma gama de ações-reações negativas e produtoras de violência giram na economia social, fazendo vítimas independente de causalidade simples e do tempo presente. Do mesmo modo, giram ações positivas e altruístas, que promovem a vida e conseguem erguer sujeitos dilapidados. As próprias formas de proteção dos que são ricos são, paradoxalmente, geradoras de medo e de afastamento destes do corpo social, ficando restritos a grupos pequenos de convivência, em geral grupos de iguais, o que não deixa de ser gerador de solidão.
A sociedade humana é ontologicamente dialógica – dia-logos - atravessada pela palavra. A Justiça no modelo restaurativo encontra apoio na palavra-sentido (logos), ao trazer à tona – aspecto fenomenológico – o que do não-dito pode e deve ser expresso, de modo que a pessoa seja ouvida. No entanto, o não-dito da complexidade como rede sistêmica de relação social baseada no afeto-afecção, na emoção-amor (que inclui o ódio e seus correlatos) nunca será alcançado pela racionalização. Há uma vivência inter-humana em jogo que acontece dentro de nós por outros meios. Os seres humanos não são objetivos e funcionais como algum sistema funcional possa querer, pois habitamos a alteridade e ao mesmo tempo sistemas complexos.
Não obstante, todo dano é relativo a uma comunidade, e portanto, a Justiça no modelo restaurativo prega que ela deve envolver-se na restauração. Daí as teses antigas de restauração do social atingido: “1. O crime é uma violação de pessoas e de relacionamentos interpessoais. 2. Violações criam obrigações. 3. A obrigação principal é corrigir o malfeito”. Essa idéia resgata antigos valores, como quer H. Zehr, e pressupõe a visão sistêmica fundante do social.
“O problema do crime, nessa visão global, é que ele representa uma ferida na comunidade, uma ruptura na cadeia de relacionamentos. O crime representa relacionamentos danificados. De fato, relacionamentos danificados são tanto a causa como o efeito de um crime. Muitas tradições têm ditados que expressam que o prejuízo de um é o prejuízo de todos. Um dano como um crime provoca a ruptura de toda a rede. Além disso, o malfeito é geralmente um sintoma de que alguma coisa está fora do equilíbrio na rede.
Inter-relacionamentos implicam em mútuas obrigações e responsabilidades. Não surpreende, então, que essa visão do malfeito enfatize a importância de fazer reparos ou “corrigir”. Na verdade, fazer reparos dos erros é uma obrigação. Enquanto a ênfase inicial pode ser sobre as obrigações que cabem ao ofensor, o foco na interconectividade abre a possibilidade para que outros – especialmente a comunidade como um todo – possam ter responsabilidades também.”
É certo que ser ético, na prática, é uma escolha. Não obstante, em termos de fundamentos, não temos escolha. Todo nosso ser é voltado para outrem, seja eu um santo, seja eu um Hitler. Talvez seja difícil de entender isso à primeira vista, quanto mais aceitar.
Trata-se, pois, como vimos na parte I, da compreensão da não dominação radical da alteridade do outro. Todo domínio egolátrico – autocentramento idealizado no Eu - é fadado ao fracasso; quando mato o outro (e posso matar de diversas formas) não tenho mais a relação com um outro (alter) mas com um objeto, um simulacro, talvez um espectro de mim mesmo, solitário e vazio. Algo escapa. Dá-se e se retira: Rosto.
A ética da alteridade, para além de pregação moral, simplesmente fenomenaliza a compreensão da dívida radical que significa a afirmação do próprio Ego em meio ao Sol comum dos seres humanos, e mais ainda em meio à dilapidação dos excluídos[33].
A subjetividade é mais profunda do que a pretensa identidade racional autônoma, livre e empoderada (Ter Ser em seu Poder). No fundo, eu não delibero ou evito a alteridade, ela me toma e me possibilita e impossibilita de cima a baixo. Ex. meu corpo, envelhecimento, limites, dor, morte, gozo, amor, natureza, bebê, o inconsciente.
“Sou responsável até pela irresponsabilidade do outro”
“Todos somos responsáveis, e eu mais ainda” (Dostoievski)
Cabe pensar radicalmente o que implica a subjetividade e o ser sujeito numa visão da ética da alteridade. Em nossa vida podemos ver que quanto mais passam os anos, tendemos a ter mais calma, mas paciência, mais compreensão. É também o tempo da possibilidade de mais amar que ser amado, saber perdoar, ouvir, dar de si sem necessariamente buscar gratificação pessoal, enfim, cuidar. A natureza parece que nos brindou com a sabedoria na maturidade. Se compreendermos assim, veremos um sentido sábio na vida, veremos o Rosto, e que estamos em processo de crescimento; tal crescimento é também de caráter espiritual (não necessariamente religioso), como mostrou C.G. Jung ao apontar a importância deste aspecto no homem maduro. O homem maduro não vê o cuidado e o dar de si, o para outrem, como um sacrifício difícil, como perda; ele sabe que tem pouco a perder, pois consegue trabalhar melhor o apego pessoal e a egolatria. O sujeito maduro tem alegria no dar; ele entra na esfera da diaconia – serviço e prioridade do Outro. Isso não lhe impede de ter prazer; mas o seu prazer é celebração de vida que inclui a consideração real de outrem.
Deste modo, o que pode ser Justiça para a ética da alteridade ? A prioridade do Outro antes do Eu, como ideal regulador. A questão é quem e o que é o Outro para mim. Numa situação egológica, o Outro entra como apêndice e objeto do eu. Ele o servo (em geral a serva), e Eu o Senhor. Justiça é o questionamento da Liberdade individual como primeira, como sentido primeiro da vida, ao mesmo tempo, é luta não-violenta pelos excluídos. Portanto, inclusão corajosa. Numa vida sistêmico-ética, a verdadeira liberdade vem da responsabilidade (res-pondere); falar a outrem, dar contas, cuidar de...
Justiça como dia-logos e escuta da alteridade
Em nossa jornada na vida, tendemos a criar identidades seguras, fixas, com respostas e ideologias, com poderes, saberes e autonomias quase sagradas. Mas sabemos que tal projeto identitário e de solidificação nunca se sustenta, pois tropeçamos, somos atingidos, envelhecemos, adoecemos e por fim morremos ingloriamente. Esse fato mostra a não dominação radical do homem sobre a vida em geral (corpo, coisas, natureza, outro, amor), apontando para o que em filosofia chamamos a alteridade radical, o fato de que somos frágeis, abertos, não-sabedores, não-proprietários. Se temos uma instituição Justiça voltada para a defesa da propriedade, não significa que a mesma propicie bom empoderamento do que nos é próprio, ou seja, de o sujeito voltar-se à não-dominação radical da vida e à conseqüente necessidade enorme que temos dos outros, da comunidade, da cultura, da natureza, quando não dos aspectos espirituais.
Portanto, pensar Justiça como escuta-diálogo de alteridade é colocar num lugar mais apropriado o sentido social e de finitude de cada ser individual. Trata-se de propor uma escuta pessoal ao nosso grande e frágil ser que somos, com nossas inquietudes e nossos carmas (ações-reações), gerando emaranhamentos e conflitos, amor e dor, caminhando para a aceitação de si, peregrino, pergunta-dor, aberto, e sempre limitado em seu empoderamento. Deste modo, não posso tomar simplesmente uma instituição como guardiã de meu ser, através da garantia de propriedade e direitos, mas colocar-me na dialética entre propriedade/autonomia e alteridade/finitude. Isso concretamente pode começar como a dis-posição ao dia-logos e à socialidade como generosidade. O logos significa originalmente palavra, sentido, depois traduzida como razão e estudo. No diálogo, não tenho a razão ultima de nada, não tenho a palavra final, sou dependente do jogo social, da dialética, e preciso saber jogar, saber viver. Não se trata, no dia-logos, de ganhar do outro, pois o sistema ganha-perde pode apenas produzir novas frustrações, ou vinganças. No dia-logos e na generosidade, literalmente, a palavra é atravessada, passamos a palavra, de ouvido em ouvido; e assim, damos algo, o tempo inteiro a vida é doação e serviço. Para isso funcionar, é preciso aprender a ouvir e a dar de si sem neuroses.
Ouvir não é estar com os ouvidos abertos, mas com a obediência de coração. Ob-audere, ouvir a, ouvir para. Não se trata de ouvir e fazer pelo fato de uma lei externa e autoridade obrigar. Mas ouvir verdadeiramente é uma obediência positiva que não precisa concordar tal e qual com o outro; ela não é uma escravidão, pois é feita a partir de anseios profundos dos sujeitos humanos que são intersubjetivos no fulcro da alteridade. A incapacidade para o diálogo, tema caro à hermenêutica e às filosofias do diálogo, diz muito da incapacidade para ouvir. Por vezes, ouvir o outro e acolher é quase toda solução. Somos carentes de alguém que nos ouça. Ouvir verdadeiramente é raro, sem julgar previamente, compreendendo a fragilidade humana, que é sempre a minha também. Eis um dos grandes ensinamentos da Comunicação Não-violenta[34] à serviço da mediação de conflitos e do diálogo. Temos, por conseguinte, um casamento perfeito desta base com os processos de mediação e restauração ética da Justiça Restaurativa, como apontamos.
Neste sentido, fica claro que Justiça tem tudo a ver com ouvir, acolher, dar a cada um o que lhe cabe. Trata-se basicamente de incluir o outro em vez de reforçar a mentalidade da exclusão. Infelizmente, nosso mundo, por vezes mudo, ergueu barreiras ou verdadeiras divisões entre classes, raças e espaços. A mentalidade da exclusão tem um fundo protetor, mantenedor de uma segurança, a mesma que atua na base dos racismos. É por isso que tais aspectos são tão encarnados nas sociedades ainda hoje. Vencer tais muros não é apenas uma questão de mudar de idéia. Exige Justiça – radical, como a ética da alteridade vai sugerir. A Liberdade torna-se posterior à Justiça, a saber: justiça em primeiro lugar é um auto-questionamento, até que ponto não estou excluindo, e até onde meu ser sujeito, minha ação no mundo, inclui. Até que ponto o mundo de poucos se sustenta. Muito grave pessoal e socialmente o egocentrismo, pois não corresponde aos anseios profundos dos ethos comunitários; egoísmo é não saber ouvir, é não incluir, é não aceitar a diferença, é levantar ou corroborar muros. É aceitar o estado de coisas excludente. Apartheid social.
Quando me relaciono com alguém apenas mediado no conceito e imagem que tenho dele, isso é fadado ao fracasso. O conceito é altamente controlável, mas mutável. Mas se vejo o outro com o ouvido-coração, percebendo no face-a-face mais do que a idéia (imagem) que tenho dele, eis o Rosto, o singular inviolável do humano, como bem demonstra E. Levinas.
Em tudo isso, não se trata de uma pregação de ser bonzinho ou ingênuo. Uma justiça que restaura ou que defende o excluído pode também agir com rigor, mas com base na compaixão ou não-violência ativa, não na raiva e na punição. O sujeito aqui é movido pela visão da fragilidade do outro seja ele quem for, do sofrimento que o invade independente de ele ser ou não culpado de algo. Aqui serve a expulsão dos vendilhões do templo em Jerusalém, por Jesus; ou ainda a figura do Buda verde, o Buda da ação irada que combate a violência e promove o Bem. Ou a luta pela Libertação na América Latina e a busca de “um outro mundo é possível”. Isso nos lembra a estratégia da ação não-violenta, aplicando a satyagraha contra toda opressão, tão popularizada por figuras como Gandhi; tudo isso a traduzir bem, a seu modo, éticas da alteridade exigindo a reconsideração da idéia de Justiça.
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[1] Dr. em Filosofia pela PUCRS. Prof. da Universidade Federal de Pernambuco – Brasil. opelicano@ig.com.br
[2] TI (Totalité et infini), 22.
[3] TI, 164.
[4] EDE (Em decouvrant l´existence avec Husserl et Heidegger), 225.
[5] EDE, 197.
[6] Bailhache, 171-172 e EDE, 198.
[7] Entre Nous, 238.
[8] TI, 167.
[9] TI, 37.
[10] HH (Humanisme de l´autre homme), 48.
[11] TI, 266, grifo meu.
[12] TI, 153.
[13] Bailhache, 125-126, cf. ainda 122-123.
[14] Cf. Souza, SEH, 110. De TI, vemos: “O Outro não o é de uma alteridade relativa, como em uma comparação de espécies... A alteridade de Outrem não depende de uma qualidade qualquer que o distinguisse de mim, pois uma distinção dessa natureza implicaria precisamente que se daria entre nós essa comunidade de gênero que já anula a Alteridade” (TI, 168)
[15] Colette, apud Bailhache, 152.
[16] TI, 172.
[17] TI, 173. “Não que a conquista desafie meus poderes mais fracos, mas eu não posso mais poder: A estrutura de minha liberdade... se inverte totalmente. Aqui, se estabelece uma relação, não com uma resistência que é muito grande, mas com o absolutamente Outro - com a resistência do que não tem resistência - com a resistência ética.” (EDE, 173)
[18] Beckert, 222.
[19] TI, 172. Susin descreve a questão com meticulosidade: “O assassinato é a contradição no auge da violência. Nele a violência vai até o absurdo e inverte-se em impotência. Nele se chocam e se ‘provam’ o poder ontológico e o poder ético... É o ‘outro’ que se assassina: aquele que se recusa à apropriação e à totalização, o não-neutralizável... matar é tentar o impossível e cair na contradição do ódio... O prazer do assassino é matar o outro diante do outro mesmo: quer o outro como objeto e como sujeito que veja a humilhação de sua própria reificação, quer a contradição do outro morto e vivo. Seria então necessário matá-lo vivo. (...) No momento exato em que se está por cumprir o decreto do assassino, quando cessam os traços sensíveis do olhar e a sua ‘vivacidade’, quando a objetivação está por chegar à sua plenitude, a vítima se retira deixando o assassino solitário com sua vitória e sua consciência, sem outro que veja sua vitória. O outro revela assim, na sua retirada, a infinitude de seu poder ético subtraindo-se ao poder ontológico do assassino, mostrando assim a fraqueza e a impotência deste, paralisando-o na insatisfação: é impossível que o outro veja a sua objetivação.” (Susin, 133-136) Cf. tb. o artigo O delírio da solidão - sobre o assassinato e o fracasso original, de R.T. de Souza, in: Veritas, n.2, V.44, jun\1999.
[20] TI, 173. “Nesta óptica, só não devo matar outrem porque posso matá-lo, a ética supõe a violência e só tem sentido em face da possibilidade real desta” (Beckert, 224).
[21] TI, 175 e 178.
[22] Este termo é muito importante hoje para dizer da visão ou paradigma reducionista, fragmentário, dicotômico mente X corpo, Sujeito racional X objeto externo, materialista, calculista, utilitarista etc. Cf. nosso texto: “Bioética como novo paradigma e os limites do cartesianismo”, bem como minha obra “Correntes da Ética Ambiental”. Isto tb. é muito concreto, basta ir ao médico formado na escola ocidental, ou conhecer a agricultura química, ou mesmo estudar o Direito Positivo.
[23] Ética difere para mim de moral. Ética é a estabilidade dinâmica da morada, do habitar, que é social, ambiental e lida com o jogo das necessidades e valores. Ver meu artigo O ethos da bioética, in Revista Perspectiva Filosófica, Dep. de Filosofia da UFPE, 2005.
[24] Historicamente, no Ocidente, entramos recentemente na Era do Indivíduo, do Ego. Faz só 300 anos que Descartes enunciou o Ego Cogito, ergo sum. Até o final da Idade Média não se pintavam indivíduos por exemplo.
[25] Para aprofundar esse delicado tema veja meu artigo A sombra da moral e a alteridade radical; e tb. Sujeito, paixão e pathos, in: Éticas em Diálogo, Edipucrs, 2002. E as obras de C.G. Jung.
[26] Brilhante é a obra sobre O bode expiatório, de René Girard.
[27] Para isso veja-se o artigo de J. Derrida Force de loi: le fondement mystique de l´autorité; e Souza, Ricardo T., Ética e desconstrução, in. Revista Veritas, v. 47, n2, jun.2002, p.159-185.
[28] Apud Souza, p.166.
[29] Um exemplo ilustra bem. Uma família vinda do interior, com 5 filhos, todos “de bem”, católicos, comportados, as vezes reprimidos; um filho se torna rebelde; em outro caso uma filha prostituta, diferindo muito do grupo familiar. O que aquilo tem a ver com o grupo ? Muito. Em geral aspectos não bem elaborados, ou desejado, onde a ovelha negra está sintomatizando pelo grupo.
[30] Para uma compreensão do paradigma cartesiano veja nosso artigo: Bioética como novo paradigma e os limites do cartesianismo, bem como O ponto de mutação, de F. Capra.
[31] Nesse ponto e na discussão entre justiça retributiva/punitiva e a restaurativa, veja-se o profundo artigo de Eduardo Resende Melo, Justiça restaurativa e seus desafios histórico-culturais. Artigo da internet.
[32] Para tanto ver a excelente obra A simetria oculta do amor, de Bert Hellinger, o pai da terapia sistêmica fenomenológica.
[33] A aplicação que Enrique Dussel faz de Levinas na ética da Libertação é uma das poucas coisas que vale a pena em termos de filosofia na América Latina.
[34] Veja-se as excelentes obras de Marshall Rosenberg.