Alessandra M. Pereira; et al
7 de outubro de 2013
Avaliação da arquitetura do sono em crianças com epilepsia refratária
Evaluation of sleep architecture in children with refractory epilepsy
Alessandra M. PereiraI; Carolina KaemmererII; Andre PalminiIII; Magda L. NunesIII
IAluna do doutorado em Neurociências da Faculdade de Medicina da PUCRS
IIAcadêmica do curso de Medicina da Faculdade de Medicina da PUCRS
IIIProfessor Adjunto de Neurologia da Faculdade de Medicina da PUCRS
RESUMO
INTRODUÇÃO: Há um interesse crescente nas relações entre sono e epilepsia incentivado pela compreensão de que existem interações potencialmente relevantes nas duas direções. Embora o papel do sono na hipersincronização e a crescente preocupação na geração de crises sejam bem conhecidos, o grau no qual o sono pode facilitar ou induzir a um fenômeno epileptogênico, nas epilepsias lesionais, permanece indefinido. As epilepsias lesionais parecem apresentar um mecanismo particular de epileptogenicidade e o esclarecimento do papel da macro e microarquitetura do sono pode auxiliar na antecipação e monitorização de fenômenos epilépticos relacionados ao sono, conforme a etiologia da epilepsia.
OBJETIVO: revisar e discutir as relações entre sono e epilepsia na infância e adolescência relacionando as alterações estruturais do sono à etiologia da epilepsia.
MÉTODOS: revi-são bibliográfica utilizando o banco de dados Medline, abrangendo os estudos publicados nos últimos quinze anos, com as palavras-chave (unitermos) sono e epilepsia.
CONCLUSÕES: epilepsia refratária durante a infância parece influenciar a organização do sono principalmente naqueles pacientes com etiologia lesional. A definição do tipo de epilepsia pode ser importante na antecipação dos distúrbios de sono nesta população.
Unitermos: sono, epilepsia, displasia cortical, padrão cíclico alternante.
ABSTRACT
INTRODUCTION: There has been a growing interest in the relations between sleep and epilepsy, kindled by the realization that there are many potentially relevant two-way interactions. Even though the hyper-synchronizing role of sleep and its attending increase in the probability of seizure generation are well known, the degree to which sleep may facilitate or induce epileptogenic phenomena in lesional epilepsies remains unclear. The lesional epilepsies seems to have intrinsic epileptogenic properties and the knowledge about sleep macro and microarchiteture could help clinician to anticipate and monitor sleep-related epileptic phenomena according to the etiology of the epilepsy
OBJECTIVE: Discuss the relationship between sleep and epilepsy in childhood and adolescence.
METHODS: Literature review in journals indexed through Medline, from the last 15 years.
CONCLUSION: Refractory epilepsy during childhood influences sleep organization mainly in patients with lesional etiology. The definition of the type of epilepsy is important to anticipate sleep disorders in this population.
Keywords: sleep, epilepsy, cortical dysplasia, cyclic alternating pattern.
INTRODUÇÃO
EPILEPSIA NA INFÂNCIA
Crises epilépticas são eventos prevalentes na faixa etária pediátrica e 6% das crianças irão apresentar, pelo menos, uma crise epiléptica.1 O espectro das epilepsias, na infância, deve ser considerado a partir de uma perspectiva multiaxial, na qual a etiologia, as manifestações clínicas associadas, o impacto no desenvolvimento e o grau de controle das crises com drogas antiepilépticas interagem de forma complexa.2,3 Ao longo do eixo etiológico, as epilepsias podem ser classificadas em três grupos, conforme o mais recente relatório da Liga Internacional Contra a Epilepsia:2,3
a) genético: quando as crises são resultado direto de um defeito genético conhecido ou presumido e são o sintoma principal do distúrbio, como por exemplo, Ausência Típica da Infância, Epilepsia Noturna Autossômica Dominante do Lobo Frontal e Síndrome de Dravet.
b) Estrutural ou Metabólico: este grupo pode ser subdividido em lesões pré, peri ou pós-natais, incluindo lesões vasculares, inflamatórias, hipóxico-isquêmicas, traumáticas, neoplásicas ou do desenvolvimento (malformações do desenvolvimento cortical).
c) Desconhecido: significa que a causa ainda não foi reconhecida. Exemplos incluem as Crises Parciais Migratórias da infância e Epilepsia Mioclônica da infância, bem como as síndromes eletro-clínicas tradicionalmente idiopáticas como Epilepsia Rolândica Benigna e as Epilepsias Occipitais Benignas da infância.
Ainda que se acredite que o grau de controle das crises com medicamentos seja variável dentro de uma mesma síndrome, muitos estudos estabeleceram que a presença de uma lesão estrutural, identificada na neuroimagem, tende a estar associada a epilepsias mais graves e refratariedade ao tratamento.2-4 Em particular, o grupo de malformações do desenvolvimento cortical tem gerado interesse como uma das formas mais comuns de epilepsia lesional na infância, frequentemente associada a crises refratárias e passível de tratamento cirúrgico em muitos pacientes,5-7 sendo que os avanços em neuroimagem e genética molecular têm permitido um diagnóstico mais precoce e uma melhor compreensão das patologias envolvidas. A lista destas patologias compreende as seguintes categorias: malformações causadas por proliferação anormal de neurônios e glia (hemimegalencefalia, displasia cortical focal), malformações causadas por migração neuronal anormal (heterotopias, lisencefalia) e malformações causadas a partir de uma organização cortical anormal (polimicrogiria, diplasia cortical focal sem células em balão).8
As anormalidades displásicas exibem mecanismos de epileptogenicidade intrínseca e desde a descrição original de Palmini,9 uma série de relatos com diferentes métodos de registro intracranial confirmaram que as lesões corticais displásicas apresentam ritmo refinado com descargas epileptogênicas pseudoperiódicas contínuas ou quase contínuas com interferência variável, mas significativa, sobre o desenvolvimento.6,9-11 A displasia cortical focal (DCF) deve ser classificada, histopatologicamente, incluindo um espectro de anormalidades arquiteturais e celulares nas quais algumas formas apresentam perda da laminação cortical (tipo I DCF) e outras apresentam, além disso, neurônios displásicos e células em balão (tipo II DCF).12 Estas duas formas foram melhor caracterizadas do ponto de vista clínico, neuropsicológico e especialmente de imagem, permitindo, frequentemente, uma antecipação diagnóstica in vivo das anormalidades histológicas.13
No outro extremo estão as epilepsias causadas por lesões não desenvolvimentais. A lista de lesões epileptogênicas não desenvolvimentais é extensa e as mais comuns são a ulegiria atrófica ou cicatriz porencefálica, resultantes de insulto hipóxico-isquêmico prévio, esclerose temporal mesial, tumores não-desenvolvimentais e lesões vasculares, incluindo Síndrome de Sturge Weber, além de lesões resultantes de infecções congênitas ou adquiridas.14
Na faixa etária pediátrica, os distúrbios do sono são alterações tão comuns quanto a epilepsia e as comorbidades mais frequentes incluem sonambulismo, terror noturno, despertar confusional, pernas inquietas e sonolência diurna excessiva.15,16 Os efeitos do sono sobre o controle das crises e os efeitos das crises epilépticas na arquitetura do sono têm sido estudados por diversos autores e serão revisados neste artigo.
FISIOPATOLOGIA E DEFINIÇÕES: SONO E EPILEPSIA
As relações entre sono e epileptogênese podem ser explicadas por vários mecanismos, incluindo (a) sincronização neuronal no sono NREM, facilitando a propagação de descargas ictais e interictais, (b) hiper-excitabilidade neuronal durante o sono associada a uma diminuição dos mecanismos inibitórios, (c) dessincronização do sono REM reduzindo a transmissão interhemisférica através do corpo caloso e, consequentemente, a propagação de descargas e (d) redução do tônus muscular durante o sono REM inibindo as manifestações motoras das crises.17-19
A Academia Americana de Medicina do Sono criou o termo epilepsia relacionada ao sono (sleep-related epilepsy-SRE) para designar aquelas epilepsias, nas quais, mais de 70% das crises ocorrem durante o sono20 tendo sido o resultado de uma série de descrições de síndromes epilépticas claramente relacionadas ao sono, iniciada pela descrição da epilepsia de lobo frontal noturna autossômica dominante.21 Desde este relato, vários tipos de epilepsias têm sido descritos com origem cortical e etiologias variáveis, as quais se apresentam com crises, exclusiva ou predominantemente, durante o sono.22,23 Uma série de publicações voltou-se para este ponto sugerindo que alguns tipos de malformações do desenvolvimento cortical, mais especificamente displasia cortical focal tipo II, conforme classificação de Palmini e colaboradores,12 estão mais associadas a anormalidades epilépticas relacionadas ao sono, não somente em função da refratariedade das crises, como também pela presença dos surtos curtos recorrentes pseudoperiodicamente organizados ocorrendo durante o sono de ondas lentas.24,25
Esta é uma área ainda incipiente e grupos diferentes relataram resultados diferentes, em consequência à inclusão de casos não homogêneos e provavelmente a questões metodológicas envolvidas. O fato é que a distribuição das descargas epilépticas e a atividade epileptiforme durante vigília e nos diferentes estágios do sono variam conforme as diferentes síndromes epilépticas e localização do foco epileptogênico. Quigg e Straume observaram que, em um paciente com dois focos distintos, por exemplo, quando as crises tinham origem temporal ocorriam mais durante a vigília, enquanto as crises originárias do lobo parietal surgiam no sono.26 Em contraste, Herman et al analisaram mais de 600 crises em 133 pacientes e, embora, tenham confirmado que as crises de lobo frontal são mais prevalentes durante o sono, demonstraram, também, que as crises temporais tinham uma distribuição intermitente enquanto as crises parietais predominavam durante a vigília.27
Há um interesse crescente nas relações entre sono e epilepsia, incentivado pela compreensão de que existem interações potencialmente relevantes nas duas direções.28 Crises epilépticas são frequentes durante o sono e tanto as crises quanto as descargas epileptogênicas, podem alterar a arquitetura do sono e alimentar um ciclo deletério de privação de sono, levando a um aumento global na frequência das crises. Além disso, um número considerável de drogas antiepilépticas pode contribuir para as alterações de sono de modo benéfico ou prejudicial, independente de seu efeito anticonvulsivante. Uma arquitetura alterada, portanto, diminui a qualidade de sono e pode interferir, negativamente, na frequência e no controle das crises.28-30
Apesar do surgimento de diversas novas drogas na última década, aproximadamente, 20 a 30% dos pacientes apresentam epilepsia refratária ao tratamento clínico, estando a maioria dos pacientes no grupo de faixa etária pediátrica.31 A compreensão de fatores relacionados, principalmente o sono que modula a expressão das crises, pode auxiliar na compreensão e no tratamento das diferentes síndromes epilépticas na infância, incluindo as de difícil tratamento. O sono parece afetar principalmente as crises generalizadas (primárias ou secundariamente generalizadas) aumentando a frequência, duração e taxa de generalização inclusive nas epilepsias de início parcial.27,32
Uma das teorias que procura explicar os mecanismos das crises epilepticas generalizadas é a que leva em consideração o circuito tálamo-cortical, conhecida como teoria centroencefálica. Os neurônios talâmicos ao disparar de modo tônico promovem estado de alerta e dessincronização do EEG e ao disparar de modo oscilatório levam à redução da transmissão tronco encefálico-córtex alterando, dessa forma, o nível de vigilância e originando atividade rítmica do tipo fusos do sono.33,34 No caso das epilepsias sintomáticas (secundárias a lesão) a relação sono-epilepsia permanece indefinida e o mecanismo fisiopatogênico é diverso. Nestes casos, a alteração na aquitetura do sono caracteriza-se por aumento na fragmentação e elevada percentagem de despertares com redução do sono de ondas lentas e do sono REM.35,36
A ação do sono, em síndromes específicas, como ativador de descargas e crises, é bem conhecida. Na Epilepsia Rolândica Benigna com descargas centro-temporais, as crises ocorrem, predominantemente, durante o sono noturno em 75% das crianças afetadas e, com frequência, isso acontece logo após a criança adormecer ou próximo ao despertar.35,37 O curso desta síndrome é benigno com desaparecimento das crises próximo à puberdade e normalização do eletroencefalograma. Apesar das descargas estarem presentes durante o sono NREM elas não estão, aparentemente, associadas a interrupção do sono e a arquitetura do sono está preservada, do ponto de vista de macroarquitetura.32,37 A microarquitetura, por outro lado, evidencia anormalidades como redução na taxa do padrão cíclico alternante, principalmente durante o estágio 2, índice A1 reduzido durante estágios 1 e 2 e aumento da percentagem de A3 o que pode significar uma piora na qualidade de sono destas crianças.35
MACROESTRUTURA DO SONO EM CRIANÇAS COM EPILEPSIA
O sono é regulado por quatro fatores básicos: ritmos circadianos, processos homeostáticos, ritmos ultradianos e parâmetros de microestrutura.38 Em 1968, um comitê liderado por Rechtschaffen e Kales estabeleceu as regras para avaliação do sono em adultos normais.39 A magnitude e distribuição dos parâmetros do sono refletem sua macroestrutura a qual pode ser afetada por diversos fatores endógenos e exógenos.40
Pacientes com epilepsia geralmente têm anormalidades na macroestrutura do sono, tais como aumento na latência de início de sono, aumento do número e da duração de despertares noturnos, redução da eficiência do sono, complexos k e fusos do sono reduzidos ou anormais, sono REM reduzido ou fragmentado e aumento nas trocas de estágios do sono.28,41 Tanto a gravidade da síndrome como o uso crônico de drogas antiepilépticas podem causar desorganização do sono noturno.42 Além disso, alterações na arquitetura do sono podem ocorrer em consequência de crises recentes, em pacientes com epilepsia.18 Anormalidades do sono são mais comuns em pacientes com epilepsia generalizada do que naqueles com crises parciais simples ou complexas e crises refratárias estão mais relacionadas a anormalidades do sono que crises infrequentes.29,43 Em um estudo multicêntrico (Paris, Porto Alegre, Troina/ Itália) a arquitetura do sono foi analisada em crianças com epilepsia parcial e, quando comparadas ao grupo controle, estes pacientes apresentavam redução do tempo total de sono, redução na percentagem de estágio II com aumento dos estágios III-IV, redução do sono REM e aumento da latência para REM.16
MICROESTRUTURA DO SONO E EPILEPSIAS
Uma vez que o sono NREM tenha iniciado, a partir da combinação de fatores homeostáticos e circadianos, ocorre a inibição progressiva do sistema despertar-vigília acompanhada pela fragmentação do ritmo alfa. A progressão para atividades mais lentas leva ao aumento dos ritmos oscilatórios, como as oscilações lentas (<1Hz) e que são a base para o surgimento das ondas lentas (1-4Hz) do sono NREM profundo. Os complexos K e as ondas delta hipersincrônicas são as manifestações eletroencefalográficas mais relevantes do ritmo lento.40 O complexo K é considerado uma expressão elementar de despertar durante o sono, representando um marcador do sono NREM, principalmente do estágio 2. O sono NREM, porém, é também caracterizado por outras oscilações com menos de 1Hz e estudos demonstraram que a medida que mais ondas deltas aparecem no EEG sinalizando o início do estágio 4, oscilações mais lentas (0.05Hz) se sobrepõem às oscilações regulares.38 Estas oscilações muito lentas são conhecidas como padrão cíclico alternante, cuja sigla em inglês é CAP (cyclic alternating pattern).40,44 O CAP é um fenômeno eletroencefalográfico organizado em sequências que ocupam uma grande porção do sono NREM e são constituídas por padrões transitórios e repetitivos com duração de 8-15 segundos (fase A), separados por intervalos de 15-20 segundos (fase B) acompanhados por um nível intermediário de repouso (NCAP). A fase A é considerada excitatória ou de promoção, enquanto a fase B é identificada como inibitória e durante o CAP os ritmos intercalam-se entre uma fase e outra38 com cada condição exercendo uma influência moduladora específica sobre os eventos epilépticos ocorridos durante o sono NREM.45,46
Uma demonstração interessante dos possíveis me canismos da dupla interação entre anormalidades epileptogênicas e alterações do sono foi relatada por Terzano e colaboradores analisando eventos motores em pacientes com epilepsia do lobo frontal noturna. Os autores demonstraram que descargas epileptogênicas agrupavam-se durante os períodos de despertar (padrão alternante cíclico tipo A) no sono NREM e facilitavam a ocorrência de atividade motora através de um mecanismo desinibitório. Além disso, demonstraram um aumento nos despertares intra sono, facilitando, portanto, a atividade anormal.47 Uma relação similar foi estabelecida entre padrão cíclico alternante (CAP) e geração de crises.47,48
EPILEPSIA DESENVOLVIMENTAL E SONO
O interesse pelas lesões do desenvolvimento, especialmente as malformações corticais, aumentou nas últimas décadas incentivado pelos avanços em neuroimagem e em biologia molecular, tornando o eixo etiológico mais evidente e sugerindo que ao invés da (ou em adição a) topografia, a etiologia pode estar relacionada à probabilidade de ocorrência de epilepsia relacionada ao sono.23,24,49
Muitas anormalidades estruturais foram reconhecidas e classificadas e as malformações do desenvolvimento cortical são as que mais se relacionam a crises epilépticas. Elas diferem de outras anormalidades estruturais por possuirem diferentes graus de excitabilidade cortical e potencial para gerar crises clínicas associadas à disfunção motora e cognitiva.50 Em alguns tipos de displasia cortical focal, por exemplo, crises relacionadas ao sono parecem refletir a modificação do padrão da atividade epiléptica observada durante o sono. Na displasia tipo II, a atividade interictal durante o sono de ondas lentas está organizada em pequenos surtos pseudoperiódicos e recorrentes de descargas rápidas que podem difundir-se ao longo de áreas não lesionais desencadeando crises.25,51,52 Isto está de acordo com dados experimentais, sugerindo que oscilações sincronizadas do sono apresentam propriedade epileptogênicas ativas34,53 e que as oscilações lentas, relacionadas ao sono, podem ser fortemente sincronizadas com descargas epilépticas periódi-cas e facilitar a ocorrência de crises epilépticas.52,54Este fenômeno epiléptico, relacionado ou facilitado pelo sono, pode ser particularmente relevante na displasia cortical focal, na qual uma das características neuroquímicas é a anormalidade no circuito local inibitório dos interneurônios gabaérgicos que pode facilitar a transformação de oscilações fisiológicas, relacionadas ao sono, em descargas epilépticas.53,55
A polimicrogiria constitui um grupo de doenças com uma característica comum: a presença de córtex irregular devido a giro pequeno e supranumerário com laminação anormal. Mais de 87% dos pacientes com polimicrogiria apresentam epilepsia56,57 e assim como na displasia cortical, a polimicrogiria parece possuir um mecanismo de epileptogenicidade intrínseca.57
A heterotopia periventricular, por sua vez, caracteriza-se por massas nodulares de substância cinzenta contendo neurônios e glia com laminação rudimentar e desorganizada.50,58 Apesar de muitos pacientes apresentarem inteligência normal, ela está associada a epilepsia farmacoresistente em 80 a 90% dos casos.59 As descargas parecem ser o resultado de interações complexas entre a heterotopia e o neocórtex e estudos utilizando EEG intracranial demonstraram que a substância cinzenta heterotópica é capaz de gerar atividade elétrica usualmente sincronizada mas também independente do córtex adjacente.13,59,60
Embora os mecanismos exatos pelos quais as crises causem alterações na arquitetura do sono não sejam totalmente compreendidos é provável que desequilíbrios neuropatológicos, como os encontrados nas malformações corticais, como perda ou desorganização celular, sejam a base para os transtornos do sono associados à epilepsia.61
SONO, EPILEPSIA E ALTERAÇÕES COGNITIVAS
Nos últimos anos descobertas científicas têm validado o papel do sono nos processos cognitivos, como a formação de insights, consolidação da memória e outras funções de aprendizagem.62 Quando o tema das relações entre epilepsia e distúrbios do sono é aventado, chama a atenção o fato de que, embora as duas condições estejam - isoladamente - associadas a alterações cognitivas e comportamentais em crianças e adolescentes, poucos estudos têm buscado integrar características de ambas na gênese e na caracterização clínica destas alterações.
Alterações cognitivas e comportamentais constituem um denominador comum interessante nas relações entre epilepsia e distúrbios do sono, que merecem um estudo mais detalhado.15,63,64 Como grupo, as crianças com epilepsia apresentam um rendimento menor na escola, quando comparadas a crianças sem epilepsia, e além disso, os problemas comportamentais estão presentes em maior número.65 Não se sabe se alterações do sono associadas a etiologias específicas de epilepsia levam a um comprometimento cognitivo ou a alterações comportamentais distintas.66 Sabe-se, por exemplo, que alterações neuropsicológicas são comuns em crianças e adolescentes com malformações do desenvolvimento cortical e que a doença de base, portanto, pode exercer um efeito negativo sobre a função cognitiva.65 Não existem dados informando até que ponto alterações cognitivas e comportamentais encontradas podem ser mediadas ou modificadas por distúrbios na arquitetura do sono, associadas a determinadas etiologias.6,67 Dados clínicos e observacionais sugerem que um sono comprometido pode resultar em déficits neuropsicológicos mesmo nas crianças com crises epilépticas de início recente ou naquelas que estão livres de crises64,65 e este fato deve ser priorizado durante o atendimento destas crianças. Além da dificuldade de aprendizado e déficit cognitivo, as crianças com epilepsia e alterações do sono costumam apresentar comportamento hiperativo e desatenção durante o dia.63,64,68
As causas para o comprometimento cognitivo não são completamente conhecidas e uma possibilidade é a de que as anormalidades interictais do eletroencefalograma possam contribuir para este comprometimento. Isto foi melhor demonstrado nas síndromes com descargas contínuas durante o sono (sono NREM) nas quais nem todas as crianças apresentam crises epilépticas clinicamente detectadas mas apresentam algum grau de déficit cognitivo ou alteração comportamental.64,65,69 As descargas interictais parecem estar envolvidas nos processos de formação de memória,durante o sono REM, e sua consolidação, durante o sono de ondas lentas.62 As modificações, portanto, provocadas pelas descargas na aquitetura do sono são capazes de alterar o aprendizado, memória e comportamento e nas crianças com epilepsia parcial refratária ocorrem alterações exatamente nos sonos REM e de ondas lentas que se encontram reduzidos ou fragmentados.16
Mesmo nas condições consideradas benignas, como a epilepsia benigna com descargas centro-temporais, as descargas interictais também apresentam um efeito significativo na cognição35,37,69 e a partir disso, é razoável supor que se descargas isoladas são capazes de induzir a um prejuízo cognitivo, descargas generalizadas, persistentes ou crises de difícil controle possam ter um efeito ainda maior sobre o processo de aprendizado e cognição. Acredita-se que tanto a localização do evento inicial quanto às áreas de propagação possam determinar as alterações comportamentais que irão ocorrer.65
CONCLUSÕES
Embora o papel do sono na hipersincronização e a crescente preocupação na geração de crises sejam conhecidos, o grau no qual o sono pode facilitar ou induzir a um fenomêno epileptogênico, nas epilepsias lesionais, permanece indefinido. Além disso, pelo fato da arquitetura do sono estar frequentemente alterada nos pacientes com epilepsia é possível que tais alterações possam ser, por um lado, mais graves em tipos particulares de epilepsias lesionais e, por outro lado, ser particularmente prejudiciais em termos de impacto cognitivo e comportamental para crianças e adolescentes com tipos específicos de lesões epileptogênicas.16,25,64,67
A frequência de crises e de descargas em crianças com epilepsia lesional afeta negativamente o desenvolvimento neurológico e cognitivo.63,64,67 Uma compreensão formal, porém, das relações entre alterações de sono, frequência de crises, tipo de lesão responsável pela epilepsia e impacto na cognição e no comportamento, pode auxiliar no diagnóstico e no tratamento destes pacientes. O esclarecimento destas relações possibilita a antecipação e monitorização de fenômenos epilépticos relacionados ao sono, conforme a etiologia da epilepsia, e também eleva o grau de suspeição para a presença de alterações cognitivas e comportamentais em subgrupos específicos de pacientes. Como um todo, estes dados poderão assistir às tentativas farmacológicas e não farmacológicas voltadas para a melhoria da arquitetura do sono, afetando favoravelmente a epilepsia e as alterações neuropsicológicas.
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Alessandra Marques Pereira
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