Viviane Carvalho da Silva; Alvaro Jorge Madeiro Leite
24 de maio de 2007
Qualidade de vida em crianças com distúrbios obstrutivos do sono: avaliação pelo OSA-18
Viviane Carvalho da SilvaI; Alvaro Jorge Madeiro LeiteII
IEspecialização em Otorrinopediatria pela UNIFESP/ Mestrado em Saúde Pública pela Universidade Federal do Ceará, Médica Assistente do Serviço de Otorrinolaringologia do Hospital Universitário Walter Cantídeo da Faculdade de Medicina da Universidade Federal do Ceará
IIDoutor em Pediatria pela UNIFESP, Professor do Departamento de Saúde Materno-Infantil da Faculdade de Medicina da Universidade Federal do Ceará
RESUMO
Distúrbios obstrutivos do sono (DOS) são prevalentes e existem evidências de afetarem a qualidade de vida das crianças.
OBJETIVO: Avaliar a qualidade de vida de crianças com DOS antes e após adenoidectomia ou adenotonsilectomia.
MATERIAL E MÉTODOS: Estudo prospectivo de intervenção, tipo antes e após, com componente avaliativo. Foi recrutada uma amostra consecutiva de crianças com indicação de adenoidectomia ou adenotonsilectomia em um ambulatório de otorrinolaringologia e aplicado aos cuidadores um questionário específico para a avaliação da qualidade de vida, o OSA-18, antes da cirurgia e com pelo menos 30 dias após. Foi realizado exame nasofibroscópico, otorrinolaringológico e questionário semi-estruturado sobre o perfil clínico e social da criança, em ambas as consultas.
RESULTADOS: Foram avaliadas 48 crianças com média de idade de 5,93 anos (DP=2,43). A média de escolaridade do cuidador foi de 8,29 anos (DP=3,14). Os sintomas mais freqüentes foram: sono agitado, apnéia e ronco. A média de escore total do OSA-18 basal foi de 82,83 (grande impacto) e no pós-operatório, de 34,15. As diferenças nos escores total e dos domínios entre o OSA-18 basal e pós-operatório foram todas significantes (p<0,00).
CONCLUSÃO: DOS apresentam impacto relevante na qualidade de vida e melhoram consideravelmente após o tratamento cirúrgico.
Palavras-chave: adenóide, crianças, qualidade de vida, transtornos do sono.
INTRODUÇÃO
Distúrbios obstrutivos do sono (DOS) referem-se a um espectro de distúrbios respiratórios do sono intensos o suficiente para causar sintomas clínicos. Incluem crianças com apnéia e hipopnéia obstrutiva do sono (SAHOS) ou com síndrome restritiva das vias aéreas superiores (SRVAS), na qual o índice de apnéia é freqüentemente normal nos testes padrões de polissonografia1-2. A apnéia obstrutiva do sono tem sua ocorrência estimada em 1 a 3% das crianças em idade pré-escolar3 e a incidência da síndrome restritiva das vias aéreas superiores, embora desconhecida, parece ser ainda mais prevalente que a apnéia.4
A hiperplasia da tonsila faríngea e das tonsilas palatinas são causas freqüentes de obstrução nasal e respiração bucal crônica durante a infância, constituindo-se na principal causa de distúrbios obstrutivos do sono1-13 que pode levar a diversas alterações clínicas, desde quadros de apnéia, com ou sem repercussões cardiopulmonares, até a alterações no desenvolvimento craniofacial, posturais, deglutição atípica e má alimentação, entre outros.6
Além das alterações clínicas amplamente estudadas e descritas, a maioria das crianças com DOS é também afetada pela doença e/ou pelo tratamento, com sérias repercussões na qualidade de vida delas. Zeitlhofer cita o conceito de qualidade de vida (QV) como uma percepção única e pessoal relacionada ao estado de saúde e/ou aspectos não-médicos da vida, podendo ser medida através da determinação de opiniões de indivíduos (pacientes) com o uso de instrumentos específicos14. Apenas recentemente têm-se iniciado estudos científicos específicos sobre o assunto8-10. Em levantamento bibliográfico, foi encontrado somente um estudo publicado sobre o assunto, na literatura científica nacional11, o que mostra uma lacuna na pesquisa dos distúrbios obstrutivos do sono no Brasil.
Os instrumentos para medir a qualidade de vida podem ser classificados em genéricos e específicos15. Os primeiros são úteis para comparar diferentes populações e doenças, embora apresentem o risco de serem pouco sensíveis aos aspectos clínicos, uma vez que sua finalidade é meramente descritiva15. Os instrumentos específicos baseiam-se nas características especiais de uma determinada doença, sobretudo para avaliar os aspectos físicos e os efeitos do tratamento através do tempo15. Tais instrumentos oferecem maior capacidade de discriminação e predição e são particularmente úteis para ensaios clínicos.16
A maioria dos instrumentos disponíveis tem sido desenvolvida no idioma inglês, portanto sua aplicação em países de outra língua requer não somente métodos de tradução válidos, mas também a consciência de que são específicos ao contexto social, razão por que o pesquisador deve estar seguro de que os domínios explorados sejam apropriados à população onde serão aplicados.15
Em se tratando de crianças, devido às diferenças de vocabulário e à sofisticação de linguagem entre os diferentes grupos de idade, medidas de qualidade de vida e de estado de saúde a partir da perspectiva do paciente podem ser difíceis ou impossíveis. Assim, a solução é utilizar as respostas dos pais ou responsáveis aos questionários para, em seguida, proceder a um paralelo com as das respostas das crianças8-9. Apesar de questionável, esse método de aproximação de respostas no tocante à população pediátrica é tanto necessário quanto desejável, pois as crianças possuem diferentes níveis de vocabulário por meio do qual respondem aos instrumentos de avaliação e também por ser o adulto quem põe em prática as decisões médicas.17
Este estudo busca avaliar a qualidade de vida das crianças com distúrbios obstrutivos do sono antes e após adenoidectomia ou adenotonsilectomia.
METODOLOGIA
Foi realizado um estudo prospectivo de intervenção não-controlado do tipo "antes e após" (before and after) com um componente avaliativo (avaliação da qualidade de vida). O estudo foi realizado no ambulatório de Otorrinolaringologia do Hospital Universitário Walter Cantídio da Faculdade de Medicina da Universidade Federal do Ceará, hospital de referência afiliado ao Sistema Único de Saúde (SUS), localizado no município de Fortaleza, Ceará (Brasil) mediante adequada aprovação do comitê de ética e pesquisa e do mencionado complexo hospitalar, protocolo nº 0105/04.
Uma amostra consecutiva de crianças com indicação de adenoidectomia ou adenotonsilectomia foi recrutada no referido ambulatório de otorrinolaringologia, os quais, após assinarem o termo de consentimento informado, responderam a um questionário validado, específico para a avaliação da qualidade de vida de crianças com DOS, o OSA-18, antes da cirurgia (avaliação basal), com pelo menos 30 dias e, no máximo, 90 dias após a cirurgia (avaliação pós-operatória), além de responderem a questionário sobre a sintomatologia e serem submetidos a exame físico padronizados.
O OSA-18 é um instrumento de qualidade de vida associada à saúde e tem seu foco nos problemas físicos, limitações funcionais e emocionais conseqüentes da doença. É um instrumento válido e confiável de medida de qualidade de vida discriminativo para crianças com distúrbios obstrutivos do sono. O OSA-18 mostrou em estudos prévios possuir confiabilidade teste - reteste e consistência interna. O questionário consiste de 18 itens agrupados em 5 domínios, cujos itens são pontuados em uma escala ordinal de 7 pontos (1- nenhuma vez, 2- quase nenhuma vez, 3- poucas vezes, 4- algumas vezes, 5- várias vezes, 6- a maioria das vezes, 7- todas as vezes). Assim, os domínios do OSA-18 podem obter a seguintes pontuações:
a) distúrbio do sono (4 itens com escores variando de 4 a 28)
b) sofrimento físico (4 itens com escores variando de 4 a 28)
c) sofrimento emocional (3 itens com escores variando de 3 a 21)
d) problemas diurnos (3 itens com escores variando de 3 a 21)
e) preocupações dos pais ou responsáveis (4 itens com escores variando de 4 a 28). O total de escores do OSA-18, portanto, pode variar de 18 a 126.
Os escores totais do OSA-18 foram categorizados em três grupos conforme o impacto na qualidade de vida das crianças: pequeno (escores menores que 60), moderado (escores entre 60 e 80) e grande (acima de 80), sendo observada a validação prévia realizada por Franco et al.18. O OSA-18 também provê uma taxa global de distúrbio obstrutivo do sono relacionada com a qualidade de vida através de uma escala visual análoga de 10 pontos com âncoras semânticas específicas (smiles faces). Sua tradução para o português, com vistas à aplicação neste estudo, foi realizada através da técnica de back-translation, qual seja: após uma tradução do inglês para o português por pessoas com fluência no idioma e nos termos utilizados, é realizada nova tradução para o inglês, por outras pessoas com semelhante capacitação no idioma, para se certificar se houve na passagem dos termos para o português, uma conformidade exata com os termos utilizados no documento original.
Foram incluídas crianças com idade inferior a 12 anos apresentando distúrbios obstrutivos do sono e adequada indicação de adenoidectomia e/ou adenotonsilectomia, todas elas em tratamento no ambulatório de Otorrinolaringologia. Os critérios de exclusão foram: crianças residentes em áreas muito distantes do local de atendimento ou enquadradas em situações impossibilitadoras do acompanhamento ambulatorial, crianças imunocomprometidas (gravemente desnutrida, com deficiência imunológica primária e AIDS), crianças com malformações craniofaciais capazes de causar ou agravar o quadro de respiração bucal de suplência, crianças cujos pais se recusam a participar do estudo, crianças com história de cirurgia anterior ou submetidas à cauterização das conchas nasais inferiores.
Os dados foram analisados através de softwares específicos para análise estatística: Epi-info e Stats Direct. A significância estatística definida foi de p menor que 0.05, bicaudal. Calculou-se um escore global que define o impacto na qualidade de vida do Distúrbio Obstrutivo do Sono (DOS) na consulta basal e pós-operatória, através da soma dos pontos relativos a cada domínio, com valores variando entre 18 e 126 pontos. O impacto na qualidade de vida foi categorizado em três grupos: a) pequeno (escores menores que 60); b) moderado (escores entre 60 e 80) e grande (escores acima de 80). Além do escore global, foram calculados escores parciais de cada domínio, obtidos através do somatório dos itens que compõem o domínio avaliado. Através da diferença entre as médias dos escores basal e pós-operatório foi obtido o escore da diferença do OSA-18. A média de resposta padrão (SRM) é definida como o escore da diferença das médias dividido pelo desvio padrão do escore da diferença, sendo categorizada em três grupos conforme os valores: a) valores de 0,2 (pequeno efeito), b) 0,5 (efeito moderado) e c) maior ou igual a 0,8 (efeito acentuado). A análise estatística foi realizada através do teste de correlação de Pearson. O teste t pareado foi utilizado para comparação entre as médias dos escores e para determinar a significância na mudança dos escores (antes e após a cirurgia). Testes não-paramétricos foram utilizados nos casos em que os testes paramétricos não eram adequados.
RESULTADOS
Foram incluídas cinqüenta e quatro crianças no estudo. Três não realizaram o tratamento cirúrgico por apresentarem infecção das vias aéreas superiores no dia da cirurgia e três crianças não compareceram à consulta de seguimento. Portanto, a população do estudo foi de 48 crianças, sendo 58,30% (n=28) do sexo masculino. A idade média no momento da inclusão no estudo foi de 5,93 anos (DP= 2,43). O questionário OSA-18 foi respondido pelo cuidador primário, em mais de 80% dos casos, a mãe. Um percentual de 62,50% das crianças dormia no mesmo quarto que o cuidador primário. Vinte e três dos cuidadores (68,70%) possuíam grau de escolaridade menor ou igual ao ensino fundamental completo ou médio incompleto e apenas 2 (4,2%) eram analfabetos; o tempo médio de escolaridade foi de 8,29 anos (DP=3,14). A média de tempo de presença da queixa de distúrbio respiratório foi de 4,62 anos (DP= 2,49).
Avaliação Clínica Antes da Cirurgia (Avaliação Basal)
Os sintomas de obstrução nasal como sialose, sono agitado, apnéia, roncos, infecções das vias aéreas superiores de repetição, otites de repetição, rinorréia e espirros freqüentes encontravam-se presentes nos pacientes durante a avaliação basal, conforme demonstrado na Tabela 1.
Os antecedentes patológicos encontrados foram: pneumonia em 6 crianças (12,6%), tonsilites de repetição em 5 (10,5%), asma em 2 (4,2%), permanência em incubadora 1 (2,1%), glomerulonefrite estrepcocócica 1 (2,1%), puberdade precoce 1 (2,1%).
O exame otoscópico foi normal em 33 pacientes (68,8%), apresentou opacificação da membrana timpânica em 12 (25,0%) e presença de rolha de cerume em 3 crianças (6,2%), removida antes do tratamento cirúrgico para avaliação adequada da otoscopia. A distribuição dos pacientes pelo grau de obstrução orofaringeana pelas tonsilas palatinas, de acordo com a classificação de Brodsky foi: grau I em 6 crianças (12.5%), II em 5 (10.4%), III em 22 (45.8%), IV em 5 (31.3%). A distribuição do grau de obstrução coanal pela tonsila faríngea (adenóide) observado no exame nasofibroscópico foi leve (até 40% de obstrução) em 3 crianças (6,3%), moderada (entre 40 e 70%) em 9 (18,8%) e acentuada (acima de 70%) em 36 (74,9%) as crianças. A média de obstrução de orifício coanal foi de 73,65% (DP=14,86).
Nove pacientes (18,8%) apresentaram ao exame nasofibroscópico secreção catarral ou purulenta nos meatos médios compatível, com rinossinusite. Trinta e sete dos pacientes (77,1%) apresentavam hiperplasia das tonsilas palatinas e adenóides associada.
Dos 48 pacientes, 45 realizaram, além da avaliação nasal nasofibroscópica, avaliação laringoscópica, dentre os quais 23 (51,1%) apresentaram exame sem alterações, 19 (33,1%), sinais sugestivos de refluxo esôfago - faringo-laríngeo, 7 (14,4%), lesões nodulares nas pregas vocais e 1 (2,2%) apresentou sinais sugestivos de laringite aguda.
O índice de massa corpórea (IMC) variou de 12,00 a 22,60, com média de 16,15 (DP=2,5) na avaliação basal e de 11,70 a 22,10 com média de 16,46 (DP=2,48) na segunda consulta, variação não significante estatisticamente (teste de Fisher = 0,31, p= 0,5419).
A Tabela 2 apresenta os escores médios dos itens, dos domínios, do total do OSA-18 e da nota de qualidade vida da escala visual de qualidade de vida global na consulta basal. O OSA-18 basal foi classificado como de pequeno impacto na qualidade de vida em 1 (2,1%), moderado em 24 (50%) e grande em 23 (47,9%).
Como o tempo médio de queixa de distúrbio obstrutivo do sono foi aproximadamente de 5 anos, esse período foi utilizado como ponto de corte para avaliação entre tempo de queixa de distúrbio respiratório e impacto na qualidade de vida. Como somente uma criança apresentou impacto leve, o dado foi desprezado na análise estatística. Não houve correlação entre tempo de queixa maior ou igual a 5 anos e o impacto na qualidade de vida segundo os critérios do OSA-18 (Tabela 3).
A correlação entre o tempo de estudo do cuidador, menor ou igual a 8 anos (média de anos de estudo do cuidador e também tempo necessário para conclusão do ensino fundamental) e o grau de impacto do distúrbio do sono na qualidade de vida na avaliação basal não alcançou significância (Tabela 3). Como somente uma criança apresentou impacto leve, o dado foi desprezado na análise estatística. Mesmo quando o ponto de corte passou a ser menor ou igual a 4 anos (tempo necessário para conclusão do primário) não houve significância (p= 0,448).
Não houve diferença significante entre os escores pré-operatórios de qualidade de vida dos pacientes com achados sugestivos de refluxo esôfago-faringo-laríngeo em relação aos impactos detectados na avaliação basal. Como somente uma criança apresentou impacto leve, o dado foi desprezado na análise estatística (Tabela 3).
Avaliação Após a Cirurgia
A média de tempo entre o tratamento cirúrgico e a consulta de acompanhamento foi de 38,17 dias (DP= 10,65).
Realizou-se exame nasofibroscópico em todas as crianças na avaliação pós-operatória, quando se verificou que apenas uma apresentou persistência de tecido linfóide no cavum (adenóide) obstruindo 60% das coanas (hiperplasia moderada). Todas as outras apresentaram resquícios pós-operatórios da adenóide em escala menor ou igual a 30% de obstrução das coanas.
Quando analisado a correlação da avaliação do ponto de vista médico, após o tratamento cirúrgico, com o impacto na qualidade de vida, segundo o OSA - 18 do pós-operatório, 47 (97,9%) das crianças situaram-se na classificação leve e de pequeno impacto, não havendo, portanto, diferença.
A Tabela 2 apresenta a média dos escores basal e pós-operatório e sua diferença, com base no OSA-18, além da média de resposta padrão (SRM) obtida através da divisão da diferença dos escores médios pelo desvio padrão da diferença dos escores médios. A média dos escores totais referente ao pré-operatório foi de 82,83 (DP= 12,57) e ao pós-operatório de 34,30 (DP = 9,95), diferença estatisticamente significante (p= 0,000). O domínio que apresentou maior diferença antes e após o tratamento cirúrgico foi o de perturbações do sono, seguido de preocupações dos responsáveis. O domínio que apresentou menor diferença foi problemas diurnos. Todas as diferenças de escores total e de domínios (antes e após o tratamento cirúrgico) apresentaram significância estatística (p= 0,000). O Gráfico 1 ilustra o padrão das mudanças das médias dos escores dos domínios do OSA-18 basal e pós-operatório.
Ao analisar a relação entre a diferença das médias do escore total do OSA-18 em comparação com a das médias das notas da escala visual (avaliação global do distúrbio obstrutivo do sono relacionado à qualidade vida), observou-se uma diferença estatística significante (Teste F= 443,70 p= 0,0000).
Não houve significância estatística na avaliação da correlação entre o tempo de queixa de distúrbio do sono e a diferença de escores do OSA-18 na avaliação basal e no pós-operatório (Teste F= 0,841 p= 0,6714, Kruskal-Wallis p= 0,472).
Ao avaliar a média da diferença de escores do OSA-18 basal e pós-operatório de acordo com o sexo feminino (47,96) e masculino (49,35) não foi observada diferença estatística significante.
A mudança do escore total do OSA-18 após o tratamento cirúrgico no que tange à classificação do impacto na qualidade de vida obtido pelo OSA-18 basal foi de 73,20 para 33,87, nas crianças com moderado impacto na avaliação basal, e de 94,13 para 35,13, nas crianças com grande impacto, sendo a razão de mudança de uma, aproximadamente, 1,2 vezes maior que a da outra.
DISCUSSÃO
Vários estudos na literatura internacional vêm demonstrando o impacto dos distúrbios obstrutivos do sono na qualidade de vida das crianças4-5,8-10,18-33. No Brasil, entretanto, até o presente momento, existe apenas um artigo publicado sobre o assunto11. Nesse estudo, Di Francesco et al. avaliaram as respostas dos pais ou responsáveis das crianças submetidas à adenotonsilectomia por hiperplasia das tonsilas palatina e faríngea associada a quadro de distúrbios respiratórios do sono. Analisaram 36 crianças, entre 2 e 15 anos, com adenóide obstruindo pelo menos 75% da coluna aérea na radiografia do cavum, associada a aumento das tonsilas palatinas (grau II ou mais). Concluíram que o aumento das tonsilas palatinas e a apnéia obstrutiva do sono pioram a qualidade de vida das crianças, principalmente pelo sofrimento físico e distúrbios do sono, e que a adenoamigdalectomia promove uma melhora na qualidade de vida delas.11 Entretanto, utilizaram o OSD-6, um instrumento que não teve em sua validação avaliação polissonográfica e que possui uma habilidade discriminativa não-conhecida4. Sohn et al.23 estudaram crianças com distúrbios respiratórios do sono, comparando a qualidade de vida antes e depois da adenotonsilectomia, e os questionários OSA-18 e OSD-6. Os autores concluíram que o OSA-18 é adequado para várias situações, sobretudo quando se deseja avaliar a evolução do paciente, de fácil aplicação, podendo ser utilizado pelos médicos na geração de informação para marketing e melhoria da qualidade do atendimento ou em comparação com os achados dos colegas, além de associação com métodos objetivos em pesquisas.23
O presente estudo utilizou o OSA-18 em razão de esse instrumento apresentar uma validação mais completa e dessa maneira prover uma avaliação melhor da qualidade de vida das crianças com distúrbios obstrutivo do sono. É o primeiro estudo de qualidade de vida em criança com distúrbios obstrutivos do sono no Brasil utilizando esse instrumento. A consistência dos dados desse estudo foi assegurada por terem sido coletados somente pelo investigador principal.
O OSA-18 revelou ser um instrumento adequado para avaliar a qualidade de vida de crianças com DOS. Nesse estudo, mais da metade dos cuidadores que participaram da pesquisa dormiam no mesmo quarto que a criança avaliada, portanto, é de se supor que a informação coletada dos mesmos seja de boa qualidade.
Poucos cuidadores apresentaram nível superior de escolaridade, o que corresponde à realidade do Brasil. A amostra, proveniente de usuários do SUS, compôs-se predominantemente de pessoas carentes. Sabe-se que, no Brasil, apenas 9% dos jovens entre 18 e 24 anos têm acesso a uma vaga no ensino superior e que esse percentual é ainda mais baixo quando se avaliam estudantes de baixa renda34.
Apnéia do sono em crianças e outros distúrbios do sono secundários à hiperplasia adenotonsilar são comumente encontrados na população pediátrica. Afetam, aproximadamente, mais de 11% das crianças1, sendo sua freqüência semelhante em ambos os sexos19. Nesse estudo, trabalhou-se com participantes de ambos os sexos em número semelhante, diferindo de estudos como o de Mitchell et al., em que houve predomínio de crianças do sexo masculino24-27.
A população deste estudo apresentou uma freqüência muito elevada de queixa de apnéia (segundo percepção do cuidador), sono agitado e roncos (aproximadamente em 100% da população da amostra). Este dado deve-se, provavelmente, ao fato de essas crianças terem sido previamente selecionadas como portadoras de distúrbio obstrutivo do sono, tanto durante seu atendimento ambulatorial quanto na consulta para confirmação da cirurgia e na inclusão para este estudo, o que, entretanto, não enviesa essa pesquisa e, pelo contrário, demonstra uma adequada seleção dos participantes, quais sejam crianças que realmente apresentam DOS.
Considerando crianças com peso normal, ou seja, com um IMC menor ou igual a 25kg/m2, Franco Jr et al.18 encontraram, em estudo semelhante a este, uma freqüência de 89% (61 crianças). Usando esse mesmo critério, nenhuma das crianças desse estudo estaria acima do peso e, comparando as proporções, encontra-se uma diferença significante (p=0,04). Entretanto, convém lembrar que esta classificação tem como parâmetro países desenvolvidos e não leva em consideração a idade das crianças e a origem da população estudada, que nessa pesquisa é de usuários do SUS, considerada, portanto, predominantemente de pessoas carentes do ponto de vista econômico. Ressalta-se, porém, que a população do estudo acima referido18 foi também de baixas condições socioeconômicas para os padrões americanos.
Apenas 2,1% da amostra apresentaram impacto pequeno na qualidade de vida na avaliação basal, enquanto o restante da amostra apresentou moderado e grande impacto em proporções semelhantes. Franco Jr. et al.18 obtiveram uma distribuição amostral mais homogênea em relação ao impacto do DOS na qualidade de vida. Entretanto, isso ocorreu em virtude de terem sido incluídas crianças com indicação cirúrgica somente por tonsilites de repetição e sem DOS.
A média dos escores da avaliação basal do OSA-18 demonstrou que o item que apresentou escore médio maior foi de roncar alto. É interessante ressaltar que existem estudos sobre crianças avaliadas com polissonografia e com grupo controle, segundo o qual a qualidade de vida e o comportamento de crianças sem apnéia, mas somente com ronco primário, apresentam alterações de qualidade de vida e comportamentais em relação ao grupo-controle22,29,35. Isso sugere que o sintoma de ronco sempre deve ser melhor investigado na prática clínica.
O domínio que apresentou maior escore médio na avaliação basal foi o de preocupações dos responsáveis, diferindo do achados de vários pesquisadores, em que a perturbação do sono apresenta o maior escore4,5,11,18,23-28,30. Neste estudo, o item perturbação do sono foi o segundo de maior escore, posição ocupada pelo item Preocupações dos responsáveis nas pesquisas de Mitchell et al.24-27 e de Tran et al.30. Outros autores apontaram sofrimento físico como o segundo domínio mais afetado.19,23
O item que apresentou menor escore médio na avaliação basal foi o de presença de sonolência ou cochilo diurno excessivo, o que corresponde às observações correntes, tendo em vista que diferentemente dos pacientes adultos com apnéia obstrutiva do sono, que em geral apresentam sonolência, as crianças apresentam com mais freqüência tendência à hiperatividade.
A média de tempo entre o início das queixas respiratórias e o tratamento cirúrgico foi considerada alta, principalmente se levada em conta a média de idade das crianças avaliadas (5,93 anos). Já no estudo de Franco Jr. et al.18, foi encontrada uma média de sintomas de 2 anos. Este fato reflete a dificuldade de acesso ao atendimento otorrinolaringológico e, sobretudo, ao tratamento cirúrgico enfrentado pelos usuários do SUS em todo o Brasil, conforme foi explicitado por Sarmento Júnior et al.36. Esta longa espera talvez determine uma piora na qualidade de vida diferente da observada nos pacientes dos estudos realizados em países desenvolvidos. Entretanto, não houve uma correlação entre um tempo de queixa do distúrbio do sono maior ou menor que 5 anos, e o grau de impacto na qualidade de vida da avaliação basal. Cabe aqui lembrar, entretanto, que esta é uma amostra pequena. Nos estudos publicados sobre qualidade de vida e distúrbio obstrutivo do sono, até o presente momento, não existe informação sobre a avaliação ou não desta correlação. Dessa maneira, não foi possível analisar se este é ou não um achado peculiar da nossa amostra devido a fatores sociais e culturais (cultura de sofrimento da população carente do Nordeste do Brasil, que utiliza o SUS e muitas vezes não desconhece seu direito de questionar os longos períodos de espera, e aceitando o fato de maneira passiva como se fosse o "normal")36.
Adenoidectomia e adenotonsilectomia permanecem sendo os procedimentos cirúrgicos mais freqüentemente realizados em otorrinolaringologia8-10,19. Em crianças adequadamente selecionadas, eles podem alterar a percepção de qualidade de vida e solucionar os sintomas obstrutivos19. Nesta amostra, o tempo médio de seguimento após o tratamento cirúrgico foi pequeno, o que representou um fator limitante em muitas das análises realizadas. Convém ressaltar ser inquestionável que a curto prazo há uma melhora substancial na percepção de qualidade de vida pelos pais das crianças com DOS após o tratamento cirúrgico para esta população.
De maneira similar aos estudos internacionais19,23,24-27,29-31, foi encontrada uma melhora significante em todos os domínios avaliados no OSA-18, antes e após o tratamento cirúrgico. As crianças estudadas tiveram uma média de tempo de seguimento pequena entre o tratamento cirúrgico e a avaliação de qualidade de vida. Entretanto, Mitchell et al. publicaram uma avaliação das mudanças da qualidade de vida a longo prazo (entre 9 e 24 meses) após a adenotonsilectomia para tratamento de apnéia obstrutiva do sono, documentada por polissonografia de noite inteira, e concluíram que os pais percebem uma sensível melhora na qualidade de vida das crianças após o tratamento cirúrgico da apnéia do sono, apesar de essas melhoras serem mais pronunciadas a curto que a longo prazo e não serem uniformes em todos os domínios do questionário OSA-1825.
A média de resposta padrão (SRM) demonstrou um efeito de acentuado impacto para todos os domínios (SRM maior ou igual a 0,8), com exceção dos problemas diurnos, item que apresentou efeito moderado, o que confirma o grande efeito do tratamento cirúrgico na qualidade de vida das crianças com distúrbio obstrutivo do sono.
Concordando com os estudos internacionais, o domínio mais afetado foi o de Perturbações do sono19,23,25-27,29,30. Entretanto, diferindo dessas pesquisas, em que o domínio menos afetado era o de sofrimento emocional, neste estudo essa posição coube ao domínio problemas diurnos. Esta diferença pode dever-se a questões culturais, já que os latinos costumam ser considerados mais expansivos e agitados que os americanos, população pesquisada nos estudos citados. Outra explicação seria a questão climática, já que vivemos em um país tropical, com dias claros e ensolarados durante praticamente o ano todo, sobretudo no Nordeste do Brasil, diferindo dos locais onde os outros estudos foram realizados. Convém frisar que, apesar de o domínio referente a problemas diurnos ser o menos afetado nesse estudo, o único item que não apresentou significância estatística entre a avaliação basal e pós-operatória, inclusive com o SRM demonstrando um efeito fraco de mudança, foi o de problemas de disciplina, que faz parte do domínio sofrimento emocional.
A razão de mudança na média dos escores do OSA-18 antes e após o tratamento cirúrgico não variou entre os pacientes que apresentaram impacto leve, moderado e grande na avaliação basal. Estes achados são semelhantes ao encontrado por Mitchell et al. em 200424. Entretanto, devemos lembrar que ambos os estudos não possuem grandes amostras, o que é um fator limitante.
Semelhantes aos achados verificados por Mitchell et al.24, não houve diferença significante entre os sexos quanto aos escores médios do OSA-18 basal e pós-operatório e a média da diferença de escores. Porém, devemos lembrar que a amostra estudada por Mitchell apresenta um grande predomínio de pacientes do sexo masculino.24
De Serres et al.5 lembram que as decisões a respeito da alocação de recursos tornam-se cada vez mais difíceis e dizem ser necessário entender o impacto pessoal das doenças e seus tratamentos, levando em conta sua morbidade médica padrão ou suas limitações funcionais, fatores a serem incorporados ao processo de decisão. No presente estudo observou-se uma mudança sensível a curto prazo na qualidade de vida de crianças com DOS após o tratamento cirúrgico. É de se lamentar o longo período de espera dessas mesmas crianças até o tratamento. Este fato decorre da universalização da assistência à saúde, garantida na Constituição Brasileira que, devido a diversas questões políticas e econômicas, não implementou adequadamente o SUS de modo a que atendesse a demanda a que se propôs37. É necessário equacionar melhor a alocação de recursos, observando também o impacto que as doenças têm na qualidade de vida das pessoas, e especialmente das crianças acometidas de DOS, objeto deste estudo.
Este estudo apresentou algumas limitações que merecem ser consideradas. A amostra estudada foi de um contingente pequeno e proveniente de grupo previamente selecionado, razão por que as inferências se relacionadas à população em geral ficam um pouco prejudicadas. Entretanto, o propósito básico deste estudo foi analisar a qualidade de vida relacionada especificamente a um grupo de doença - distúrbios obstrutivos do sono - e, para este propósito, o grupo estudado satisfez amplamente as necessidades.
As crianças não realizaram estudos polissonográficos. Na prática diária, devido aos seus custos e difícil realização, somente em casos de diagnóstico diferencial é indicado o estudo polissonográfico em crianças para avaliação do DOS. Por outro lado, existem estudos sugestivos de que mesmo as crianças acometidas de distúrbio respiratório leve do sono (ronco primário) apresentam alteração nas medidas de atenção, memória e inteligência quando comparadas à não-roncadora35. Além disso, Flanary19 demonstrou que, apesar de a polissonografia poder prover informações sobre as crianças com DOS, esta não é necessária para determinar quais pacientes irão melhorar de qualidade de vida após adenotonsilectomia.
Outro fator limitante foi o curto tempo de seguimento pós-operatório, não permitindo inferência sobre a sustentabilidade da melhora na qualidade de vida das crianças a longo prazo, não obstante estudos como os de Flanary19 e Mitchell25 tenham demonstrado essa premissa.
CONCLUSÕES
Distúrbios obstrutivos do sono devido à hiperplasia adenotonsilar ocasionam repercussão de moderada a acentuada na qualidade de vida das crianças.
O tratamento cirúrgico dessa condição promove uma melhora significativa na qualidade de vida das crianças após adenoidectomia ou adenotonsilectomia.
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Viviane Carvalho da Silva
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