Artigos Científicos

Psicologia Escolar e a formação continuada em serviço: encurtando distâncias entre teorias e práticas

Claisy Maria Marinho-Araujo; Marisa Maria Brito da Justa Neves

21 de outubro de 2014

Bol. - Acad. Paul. Psicol. vol.27 no.1 São Paulo jun. 2007

 

Psicologia Escolar e a formação continuada em serviço: encurtando distâncias entre teorias e práticas

 

School Psychology and the on-the-job training: shortening distances between theories and practices

 

 

Claisy Maria Marinho-Araujo1; Marisa Maria Brito da Justa Neves2

Universidade de Brasília

 

 


RESUMO

Este artigo tem como objetivo apresentar ações ligadas à formação continuada em serviço de psicólogos escolares da Secretaria de Estado de Educação do Distrito Federal. Atualmente, as demandas dirigidas ao psicólogo escolar instalam a urgência por uma formação que considere a complexidade do perfil profissional articulada a um mergulho em uma prática real. A formação ocorreu por meio de um curso de extensão universitária, de 120 horas/aulas, destinado a 52 psicólogos da rede pública de ensino. O curso objetivou a sistematização teórica-conceitual sobre as implicações da relação entre Psicologia e Educação, as teorias psicogenéticas do desenvolvimento humano, as abordagens teóricometodológicas para o estudo das interações e relações sociais, e discussões sobre bases conceituais do trabalho do Psicólogo Escolar. Foi desenvolvido em módulos teóricos articulados com orientações a projetos de intervenções na prática cotidiana dos psicólogos. O planejamento e acompanhamento dessa formação continuada em serviço exigiram o desenvolvimento de competências muito específicas para o exercício profissional.

Palavras-chave: Psicólogo escolar; Formação continuada.


ABSTRACT

This work aims to present actions related to the on-the-job training of school psychologists of the Secretary of Education of the Federal District. Nowadays, the demands of the school psychologist imply the urgency for a training that considers the complexity of their professional profile articulated to a dive into a real practice. The training occurred by means of a university extension course, with 120 hours of duration, with the participation of 52 psychologists from the public educational system. The course focused the theoretic-conceptual systematization of the implications in the relation between Psychology and Education, the psychogenetic theories of human development, the theoreticmethodological approaches to the study of social interactions and relations, and discussions about conceptual bases of the school Psychologist's work. It was developed in theoretical modules articulated with guidance to intervention projects in the daily practice of the psychologists. The planning and tracking of this on-the-job training demanded the development of very specific abilities for the professional practice.

Keywords: School psychologist; On-the-job training.


 

 

1. Introdução

É consenso, na literatura contemporânea sobre Psicologia Escolar, a necessidade de uma postura de análise e de crítica quanto aos fundamentos ideológicos, filosóficos, conceituais, teóricos e metodológicos que sustentam as linhas de formação na área e os desdobramentos refletidos na atuação do psicólogo escolar.

O perfil de formação desejado insere-se em uma diversidade de currículos e de modelos teórico-práticos, que, de fato, não contribuem para caracterizar as especificidades desta identidade profissional.

As Diretrizes Curriculares para os Cursos de Psicologia, homologadas em fevereiro de 2004, vêm direcionando ampla reformulação na graduação em Psicologia no País, refletindo mobilização de diversos profissionais e entidades na defesa de princípios norteadores da formação inicial na área. O desenho do perfil defendido nas Diretrizes orienta a formação de um profissional competente e comprometido historicamente com as demandas sociais na formação inicial do psicólogo. Entretanto sabe-se que as transformações necessárias à constituição donovo não se concretizarão apenas a partir de reformulações legais ou institucionais, mas, antes, pela inserção ativa e interativa de sujeitos conscientes de seus papéis e funções, da diversidade teórica e metodológica da Psicologia, da especificidade do conhecimento psicológico nos contextos de atuação profissional multidisciplinar. As demandas sócio-políticas que clamam a ação do psicólogo escolar instalam a urgência por uma formação que considere tanto a complexidade do perfil profissional para o graduando em Psicologia quanto o mergulho em uma prática real, partilhada, vivificada e re-significada pelos inúmeros sentidos da experiência e dos processos relacionais oriundosdos e nos contextos educativos.

Tem-se, no cenário atual das práticas profissionais em Psicologia, o balizador necessário para se perceber como necessária a superação dos limites convencionais da formação profissional. Acredita-se que seja pela mediação dessa prática que ganham espaço as alternativas de formação com respostas curriculares organizadas em torno de competências; de orientações de ensino que exigem aperfeiçoamento constante, dedicação e supervisão criativa do corpo docente; de posturas de aprendizagem que torne oportuno o aprimoramento permanente, agilidade, criatividade, independência, postura inquisitiva, tomada de decisão. A especificidade e sutileza próprias da formação em Psicologia Escolar exigem a construção de um perfil profissional atuante e participativo, formalizada por uma dimensão formativa ampliada, configurada pela mobilização de saberes, da ciência e da experiência, em processos de construção e re-construção de competências que são necessárias para o exercício de sua prática profissional.

Guzzo e Wechsler (1993) já discutiam, no início da década passada, a necessidade de uma formação especializada do psicólogo escolar que o levasse a atuar com competência diante dos desafios do sistema educacional brasileiro. Também a ausência de uma concreta e eficaz articulação entre teoria e prática, pesquisa e desenvolvimento de competências na formação do psicólogo escolar, vêm sendo discutidas por alguns autores como sendo requisitos a serem perseguidos nesta formação (Araujo, 2003; Gomes, 1994; Jobim & Souza, 1996; Marinho-Araujo e Almeida, 2005; Marinho-Araujo e Neves, 2006). As discussões sobre a formação e a atuação na área de Psicologia Escolar no Brasil comparecem em diversos fóruns criados sobre o tema e em inúmeras publicações nacionais. Neves, Almeida, Chaperman e Batista (2002) analisaram as modalidades de comunicações publicadas nos Anais dos Congressos Nacionais de Psicologia Escolar, entre os anos de 1991 e 1998, e identificaram uma tendência mais flexibilizada quanto a focos de atuação e contextos de intervenção, com práticas profissionais junto à comunidade escolar e aos professores. No entanto, a pesquisa salientou que há pouca contribuição com relação às formulações teórico-metodológicas que ofereçam suporte consistente à prática profissional.

Percebe-se, portanto, que, se por um lado, as práticas profissionais em Psicologia Escolar voltam-se com maior ênfase a demandas mais relacionais, contextualizadas às exigências das práticas pedagógicas, o cenário da formação do psicólogo escolar não tem fornecido o suporte necessário à sustentação dessas experiências. Entende-se, a partir disso, que a formação em Psicologia exige tanto uma clareza do perfil profissional do psicólogo que guia a concepção da formação, quanto a ampliação dessas reflexões, de forma a envolver instituições formadoras e sociais que absorvem os psicólogos, associações e sociedades científicas (Guzzo, 1996; Maluf, 2001). Acredita-se que a formação deva contemplar uma leitura mais ampla da realidade escolar e social, com maiores aproximações multidisciplinares, mediadas por estágios curriculares que sejam efetivamente articulados às proposições teóricas abordadas.

Nas reflexões sobre a formação do psicólogo escolar, não se pode deixar de lado a nova conjuntura de reformulação dos cursos de graduação em Psicologia no País, desencadeada pela promulgação das Diretrizes Curriculares (MEC, 2004), que suscitaram novos desafios à formação inicial do psicólogo e, em especial, do psicólogo escolar.

No enfrentamento do desafio de formar um profissional cuja atuação exige estratégias de promoção de Educação e Saúde no ambiente escolar, algumas ações tornam-se prementes. O primeiro movimento deveria acontecer nas instituições formadoras, no sentido de promoverem um re-direcionamento de seus cursos ao atendimento a uma demanda real, considerando a possibilidade de atuação da psicologia em um contexto em que a especificidade da ciência psicológica pudesse gerar desenvolvimento e mudança.

No intuito de apresentar contribuições às discussões sobre a formação do psicólogo escolar, este trabalho sugere que a ação formativa desse perfil profissional contemple: conscientização das possibilidades e capacidades prospectivas, em função das futuras competências necessárias à inserção profissional; capacidade de autonomia frente a situações de conflito ou decisões; capacidade de análise, aplicação, re-elaboração e síntese do conhecimento psicológico ao contexto de intervenção profissional; clareza da relação entre as concepções teóricas sobre o conhecimento psicológico e o trabalho a ser adotado; postura crítica acerca do homem, do mundo e da sociedade, no contexto social em que está inserido; estratégias interdisciplinares de comunicação e ação que integrem e legitimem a intervenção; lucidez sobre a função político-social transformadora de sua profissão, exercendo-a eticamente no campo educacional.

Assim, ao psicólogo escolar caberia instrumentalizar-se para criar com e entre professores, um espaço de interlocução que privilegie não só aspectos objetivos do desenvolvimento e da aprendizagem humana, mas, sobretudo, o exercício da conscientização dos aspectos intersubjetivos constitutivos desse desenvolvimento e dessa aprendizagem. Nesse movimento, o psicólogo estaria contribuindo para a conscientização de papéis, funções e responsabilidades dos participantes das complexas redes interativas que permeiam o contexto escolar (Araujo, 2003; Marinho-Araujo & Almeida, 2005).

Entretanto, na prática profissional, o psicólogo também vivencia uma construção difusa de sua identidade, quando é chamado a trabalhar em equipes multiprofissionais compostas de orientadores educacionais, coordenadores pedagógicos, psicopedagogos e professores. Há sempre indefinições de papéis, de funções e de espaços de atuação; com freqüência ocorrem tarefas sobrepostas e encaminhamentos desarticulados (Jobim & Souza, 1996; Neves e cols., 2002). Pensar no que é próprio da Psicologia Escolar ou, na expressão dos psicólogos, “o que só o Psicólogo Escolar poderia estar fazendo” tem sido um dos objetos do nosso trabalho junto aos psicólogos da rede pública do Distrito Federal, no sentido de criarem-se oportunidades de reflexões sobre seus espaços de atuação e sua própria identidade, em contraponto à ênfase de buscar entender o que é próprio da realização e função dos outros profissionais da escola.

Partindo dessas considerações, defende-se, aqui, um trabalho de sensibilização do psicólogo escolar para o reconhecimento das sutilezas de sua identidade profissional e das competências que são necessárias para o exercício dessa identidade. Assim, o psicólogo escolar deve ser entendido como pertencente a uma categoria profissional específica, com objetivos, história e características próprias, definidas e desenvolvidas na formação (inicial e continuada), na definição do campo de atuação e no domínio dos saberes que caracterizam as possibilidades da intervenção profissional. A identidade profissional é uma possibilidade de expressão da história de vida da pessoa, de seus valores, vontades, necessidades, crenças e projetos pessoais. Existe uma influência mútua entre as escolhas profissionais e as expectativas, desejos, pensamentos e sentimentos pessoais; dessa forma, a identidade é construída historicamente, por meio tanto das inúmeras relações de trabalho como daquelas partilhadas na vida pessoal, estando sempre vinculada a um momento social e cultural determinados.

Durante algum tempo, a literatura apontava para o que o psicólogo escolar não deveria fazer: qual não deveria ser sua identidade profissional. A crítica e o re-direcionamento dos caminhos para uma atuação psicológica mais própria às demandas do contexto escolar não apontavam, entretanto, novas rotas que realçassem, nesse “processo identitário”, a natureza dinâmica e histórica que caracteriza a maneira como cada um se torna profissional (Nóvoa, 1992).

A partir das discussões do Grupo de Trabalho em Psicologia Escolar/Educacional da Associação Nacional de Pesquisa e Pós-Graduação em Psicologia (ANPPEP), registradas na literatura nos últimos anos (Martinez, 2005; Almeida, 2003; Del Prette, 2001; Guzzo, 1993, 1999; Wechsler, 1996), tem sido possível desenhar novas trajetórias profissionais para a psicologia escolar, prevendo uma identidade profissional crítica, ativamente transformadora das condições sociais e de trabalho que permeiam o contexto escolar, buscando aperfeiçoamento constante, articulando-se coletivamente e defendendo a utilidade das intervenções como suporte ao reconhecimento social da profissão.

Essas concepções defendem que o processo de construção da identidade profissional do psicólogo escolar deve pautar-se em um perfil profissional atuante e participativo, que busque valorizar a especificidade de seu trabalho e de seu grupo profissional. Acredita-se, dessa forma, que, para desenvolver e viver a identidade profissional de psicólogo escolar, seja necessário o compromisso com alternativas de formação continuada, em serviço, que possibilitem a articulação entre os saberes da experiência, as atualizações científicas e as demandas da realidade. A formação continuada não deve afastar-se da práxis desses profissionais, para, na reflexão “em serviço”, permitir o aprofundamento teórico necessário às escolhas conceituais e metodológicas mais seguras diante do inusitado que, muitas vezes, povoa a atuação.

 

2. Formação continuada em serviço: desenvolvimento de competências na práxis

Realiza-se, desde 1995, um trabalho sistemático junto aos psicólogos escolares que atuam na Secretaria de Estado de Educação do Distrito Federal (SEEDF), dando-lhes oportunidade para formação e aperfeiçoamento contínuo (Marinho-Araujo & Neves, 2006). Para este fim, denomina-se formação continuada em serviço o trabalho realizado, o qual se apresenta como uma alternativa de reconstrução da própria história e de tomada de consciência de possibilidades e potencialidades dos psicólogos escolares (Araujo, 2003; Marinho–Araujo & Almeida, 2005; Marinho-Araujo & Neves, 2006).

Tal formação ocorre por meio de diversas atividades como grupo de estudos, assessoria em serviço à prática profissional e cursos. Escolheu-se, nesse artigo, apresentar e discutir os processos e resultados de uma dessas ações - o curso de formação, no sentido de dar visibilidade e proporcionar reflexão sobre a concretização da articulação teoria e prática nessa modalidade formativa. O principal objetivo dessa ação foi possibilitar, por meio da oferta de um embasamento teórico consistente, ferramentas para subsidiar não só a prática dos psicólogos escolares, mas, também, ajudá-los a construírem uma argumentação conceitual-metodológica coerente e segura no âmbito de ações concretas de intervenção profissional.

No período entre 2002 e 2003, um curso foi organizado em duas turmas, para um total de 52 psicólogos participantes. Desses, 19 desenvolviam suas atividades inseridos no próprio ambiente escolar, configurando uma turma; a outra turma foi formada por 33 psicólogos que desenvolviam suas atividades em equipes multidisciplinares que atendiam alunos com queixas escolares.

Os cursos foram estruturados em três núcleos integrados por módulos, que contemplavam objetivos específicos e interdependentes, totalizando uma carga horária de 120 horas-aula. A escolha dos temas que deram origem aos núcleos e módulos que compunham o curso, privilegiou reflexões e pesquisas contemporâneas. As duas turmas compartilharam o primeiro núcleo, denominado de Núcleo Comum; os dois núcleos posteriores tiveram uma estruturação específica para cada uma das turmas.

 

3. O Desenho do Curso de Formação

De modo geral, o curso objetivou a sistematização teórica-conceitual sobre as implicações da relação entre Psicologia e Educação, as teorias psicogenéticas do desenvolvimento humano, as abordagens teórico-metodológicas para o estudo das interações e relações sociais, as reflexões e pressupostos teóricos e conceituais da abordagem histórico-cultural do desenvolvimento e da aprendizagem, as discussões sobre bases conceituais do trabalho do Psicólogo Escolar, sua identidade e formação. Os módulos teóricos articularam-se com orientações a projetos de intervenções e atuações nos contextos profissionais, adequadas à instituição escolar a qual os participantes estavam vinculados: ensino especial, escola, classe, centro de ensino, projetos especiais, coordenações regional e central. As autoras do presente artigo foram as docentes e orientadoras do curso.

O curso, sintetizado a seguir, foi planejado conforme as características da composição de cada uma das duas turmas.

Turma 1 – Psicologia Escolar: Abordagem Institucional Relacional

O primeiro núcleo, denominado Núcleo comum: Sistematização Teórica, teve como objetivo principal discutir o papel e a importância das dimensões cognitiva, afetivo-emocional e social do desenvolvimento humano e suas inter-relações no contexto sócio-educativo. Tal objetivo foi desenvolvido por meio de três módulos:

- Módulo I - A relação psicologia e educação 
- Módulo II - Relação desenvolvimento e aprendizagem 
- Módulo III - Contribuições da psicologia à prática educativa

O segundo núcleo, denominado Núcleo específico - Psicologia Escolar: atuação institucional relacional teve, como objetivo principal, promover a reflexão e a conscientização de papéis, funções e responsabilidades dos indivíduos em suas práticas pedagógicas, levando-os a compreender e intervir na realidade escolar, de forma preventiva, buscando a superação dos obstáculos à construção de conhecimento, com o foco de atuação na análise institucional e nas relações interpessoais. Foi assim estruturado:

- Módulo I – Psicologia Escolar: formação e identidade 
- Módulo II - A atuação psicológica na instituição escolar 
- Módulo III – Desenvolvimento adolescente

O terceiro núcleo, denominado Núcleo das modalidades de atuaçãoobjetivou orientar formas de intervenção psicológica, adequadas à instituição escolar, com o foco de atuação nas relações interpessoais e no desenvolvimento de competências, de forma a desencadear ações de promoção de saúde no contexto escolar.

Nessa etapa do curso, foram realizadas orientações e supervisões, individuais e em pequenos grupos de até 4 (quatro) psicólogos, em intervalos semanais com duração de 3 (três) horas cada, para sistematização, acompanhamento e avaliação dos projetos de trabalho que cada psicólogo elaborou, no sentido de re-orientar sua prática profissional no seu contexto de atuação.

Turma 2 – Práticas de Atendimento às Queixas Escolares

O primeiro núcleo, denominado de Núcleo comum: Sistematização Teórica foi desenvolvido integralmente de modo compartilhado à Turma 1.

O segundo núcleo, denominado de Núcleo Específico: atuação no atendimento às queixas escolares, teve como objetivos discutir e analisar a especificidade da avaliação e da intervenção no atendimento aos alunos com queixas escolares, considerando as especificidades do contexto educativo e suas possibilidades de intervenção. Esse núcleo foi estruturado nos seguintes módulos:

- Módulo I - As práticas de atendimento às queixas escolares 
- Módulo II - As etapas da avaliação dos alunos com queixas escolares 
- Módulo III - Modalidades de intervenção

O terceiro núcleo do curso para essa turma foi destinado à sistematização supervisionada de uma nova prática de atendimento às queixas escolares. Foi denominado Núcleo das modalidades de atuação, tendo como objetivo articular os estudos realizados no decorrer dos módulos teóricos ao desenvolvimento de novas práticas de atuação junto aos alunos encaminhados para o atendimento psicopedagógico.

No desenvolvimento desse terceiro núcleo, os participantes atenderam, cada um, a 5 alunos encaminhados com queixas escolares, utilizando-se do modelo proposto por Neves & Almeida (2003).

 

4. Processos e Produtos Construídos no e a partir do Curso

Os resultados desse processo de formação continuada em serviço serão apresentados no que tange aos procedimentos utilizados, estratégias escolhidas e descobertas analisadas. Para tal apresentação tomar-se-á como base de análise dois grandes aspectos trabalhados: a estrutura e dinâmica do curso, evidenciadas no planejamento por módulos e na metodologia de articulação teoria e prática; e os projetos de atuação, elaborados pelos psicólogos ao final do curso.

A estrutura e dinâmica do curso

A integração proposta nesse curso, além de considerar a interdependência entre os núcleos, contemplou a concepção de formação teórica articulada ao exercício profissional, em uma perspectiva dinâmica de construção gradativa de competências. Para tal, cada núcleo foi elaborado de forma a proporcionar essa construção ou re-construção histórica da identidade profissional, especialmente no que tange às leituras sugeridas, às situações didáticas desenvolvidas, aos procedimentos de apropriação e aperfeiçoamento do conhecimento e das competências e às estratégias avaliativas.

Quanto à natureza e à orientação dos trabalhos, o curso buscou promover a articulação entre as bases teóricas e as demandas da prática, por meio de atividades de estudo, pesquisa e intervenção na realidade escolar. Para tal, foram desenvolvidas, dinâmica e concomitantemente ao longo de todos os núcleos, tanto reflexão de temas teórico-conceituais como experiências de investigação e análise da realidade estudada, possibilitados por um processo de ensino-aprendizagem cuja dinâmica dos trabalhos objetivava o desenvolvimento de habilidades e competências a partir de: aulas expositivas, programação de leituras (individuais/grupais), discussão de textos, sínteses críticas de livros e artigos, exercícios teóricos, orientação a atividades de investigação das práticas profissionais, exercícios de imersão nos contextos profissionais, produção de ensaios teóricos, trabalhos em grupo, oficinas de formação, elaboração de memoriais, seminários, apresentação e discussão de vídeos, palestras com profissionais convidados, análise de situações–problema, atividades de supervisão aos projetos de atuação.

As etapas avaliativas também foram orientadas no sentido de promover uma reflexão constante e um re-direcionamento das apropriações realizadas em função dos objetivos previstos pelo curso. Assim, cada produção dos psicólogos era analisada, avaliada, pontuada e devolvida com diversas observações, sugestões e feedbacks, no sentido de re-orientar os processos de aprendizagem e apropriação do curso. Foram previstas orientações coletivas ou individuais ao longo do processo, pautadas nos objetivos de cada núcleo.

Os núcleos não se caracterizaram por uma estrutura hierárquica ou baseada em pré-requisitos de conteúdos; entretanto tinham como concepção didática e técnica preparar o desenvolvimento e a apropriação de competências, concepções, reflexões e posturas profissionais que re-orientassem o perfil dos psicólogos escolares em uma dimensão histórica.

Assim, o Núcleo comum: Sistematização Teórica, que totalizou 44 horas-aula, introduziu os psicólogos no universo conceitual e metodológico que caracteriza as contribuições da Psicologia à prática educativa, ao mesmo tempo em que promovia o exercício de reflexões e análises críticas vinculadas às realidades de trabalho específicas de cada um.

A ênfase dada, nesse Núcleo, à fundamentação teórica, foi representada pela quantidade expressiva de leituras propiciadas e produções realizadas pelos profissionais (um total de 27). Além desse estudo, também ocorreram atividades coletivas, oficinas e situações-problemas partilhadas.

Núcleo Específico para Turma 1 (Psicologia Escolar: atuação institucional relacional), e o Núcleo Específico para Turma 2 (Atuação no atendimento às queixas escolares), tiveram uma função preparatória mais voltada à especificidade da atuação em psicologia escolar, levando os psicólogos a preocuparem-se com situações e problemas do seu cotidiano e a construírem leituras, posturas e encaminhamentos iluminados pela produção recente na área da psicologia escolar, além de refletirem sobre dificuldades e avanços muito próximos às questões e dilemas vivenciados por eles. Neste núcleo, a ênfase sobre a identidade profissional do psicólogo escolar orientou as aulas e atividades propostas.

Nesse Núcleo Específico, houve um aumento considerável das atividades proporcionadas nas situações didáticas e, como conseqüência, na solicitação das produções individuais ou coletivas para os psicólogos. Assim, as atividades de leitura sugeridas aumentaram em 59,26% quando comparadas com as do Núcleo Comum (de 27 para 43), enquanto que as produções individuais realizadas nesse Núcleo aumentaram em 29,63% comparativamente ao núcleo anterior (de 27 para 35).

Também as produções coletivas aumentaram, o equivalente a 57,14%, comparando-se os dois núcleos, apesar de as atividades criadas em sala manterem-se quantitativamente iguais.

Os projetos de atuação

Durante a última etapa do curso - o Núcleo das modalidades de atuação - foram acompanhadas, analisadas e avaliadas as preparações progressivas de roteiros, propostas e planejamentos para os projetos de atuação, de forma a adequar as possibilidades de intervenção dos psicólogos às concepções de atuação trabalhadas até então.

Núcleo das modalidades de atuação funcionou, portanto, como um momento de “prática assessorada”, preparado pelos núcleos anteriores. Aqui, embora a ênfase fosse para a elaboração de um projeto de ação – para Turma 1 – e para a realização de um atendimento que priorizasse o contexto e não o indivíduo – para Turma 2 -, novamente ocorreu a exigência de reflexões, estudos críticos e analíticos que articulassem as demandas dos contextos cotidianos aos conceitos trabalhados. Exercitar competências de transposição teórica para a resolução de situações práticas foi uma estratégia orientada sistematicamente, de forma individual e coletiva, durante a elaboração dos projetos de atuação.

As orientações que permearam este Núcleo, totalizando 32 horas-aula, pautaram-se em roteiros para supervisão individual ou discussões em grupo. Foram realizados encontros semanais com pequenos grupos divididos pela modalidade de ensino de suas escolas ou pela natureza do trabalho realizado; cada subgrupo tinha, em média, oito psicólogos, que foram organizados em cinco subgrupos. Os encontros caracterizaram-se ora por supervisões individuais ora coletivas. Para as orientações coletivas, cada subgrupo participou de oito encontros, totalizando 40 encontros para os subgrupos. Nas orientações individuais, cada um dos psicólogos teve quatro horas de supervisão, distribuídas em dois encontros.

 

5. Discussão dos indicadores produzidos no curso

O curso de formação deve ser analisado como uma das ferramentas inicialmente planejadas para o desenvolvimento de competências. Isso justifica a estrutura modular, integrada e interdependente priorizada nos núcleos.

Foi realizada uma avaliação do curso, orientada por critérios e variáveis já estruturadas institucionalmente em cursos para esse fim. Assim, utilizou-se instrumento padrão da Universidade de Brasília para essa modalidade formativa. Os resultados demonstraram que foi possível não só planejar uma articulação entre bases teóricas e demandas da prática, como desencadear um processo de desenvolvimento de habilidades e competências a partir da correspondência entre as atividades possibilitadas e a resposta dos alunos por meio das tarefas realizadas.

A escolha por uma fundamentação teórica aprofundada por meio de inúmeros tipos de leituras (artigos, livros, capítulos de livros, dissertações, teses, relatórios de pesquisas, anais de congressos), foi intencionalmente planejada de modo a propiciar aos psicólogos uma atualização progressiva, gradual e diversificada acerca da produção contemporânea sobre teorias psicológicas que dão base à atuação em Psicologia Escolar.

Também foi intencional a oferta de um conjunto de atividades individuais articuladas às coletivas, de forma a exercitar nos psicólogos diferentes processos psicológicos mobilizados a partir de desafios distintos. A resposta dos psicólogos à metodologia utilizada foi bastante expressiva nas duas turmas, considerando que, a partir das atividades disponibilizadas, houve quase total correspondência entre trabalhos solicitados e tarefas realizadas pelos participantes.

Nessa análise, além do visível esforço e compromisso manifestado pelos psicólogos na execução do que lhes foi solicitado, é importante promover uma discussão sobre a qualidade dessas tarefas, como mais um indicador do desenvolvimento de competências.

Nesse aspecto, o núcleo comum e o núcleo específico diferenciam-se. Especificamente com relação às tarefas de elaboração de análises críticas e questões de estudo sobre os artigos e capítulos de livros, a qualidade foi muito diferente entre os núcleos. Na parte inicial do curso, no núcleo comum, a maioria dos psicólogos apresentou resumos descritivos e não análises comparativas, críticas, reflexivas, argumentativas. No entanto, ao final desse núcleo e durante o núcleo específico, a qualidade dos trabalhos aproximava-se mais ao que era solicitado: após revisões e orientações, os aprofundamentos e reflexões pessoais, frutos de apropriações mais consistentes sobre os temas trabalhados, compareceram com mais intensidade nas tarefas apresentadas pelos psicólogos.

A metodologia de articulação teórico-prática foi mais fortemente exercitada no último núcleo, das modalidades de atuação. Acredita-se que o desenvolvimento de competências carece de experiências orientadas que possibilitem a transposição teórica para a resolução de situações práticas. Nesse sentido, fez parte da concepção do curso planejar um momento de articulação teórico-prática após dois núcleos de reflexões e aprofundamentos, intensificando a formação oferecida pelo curso como ferramenta para o desenvolvimento de competências.

Assim, considerando o que os psicólogos vivenciavam amplamente em seus contextos práticos, o núcleo das modalidades de atuação do curso de formação ofereceu-lhes, por meio de “atuação assistida”, uma preparação baseada no que Wittorski (1998) defende como a segunda via para o desenvolvimento de competências (a “lógica da reflexão e da ação”); possibilitou-se uma interação entre os conhecimentos e saberes teóricos mobilizados pelos núcleos anteriores e o planejamento de procedimentos, estratégias e alternativas para novas práticas de atuação. Essa ação foi, individual ou coletivamente, orientada e acompanhada pelas autoras, que mediavam a integração “reflexão e ação” desejadas.

Foi possível, assim, retomar, de forma “assistida”, a diversificada produção teórico-conceitual trabalhada com os psicólogos durante os núcleos anteriores, e combiná-la às reflexões suscitadas por e nessa nova ação mobilizada pelo curso: o planejamento para a atuação prática deveria oxigenar-se pelo corpo teórico apropriado.

Para Wittorski (1998), é por esta via de desenvolvimento de competências que se formam as “competências de domínio ou intelectuais", que podem ser mais facilmente transpostas ou transferíveis de uma situação nova a outras situações diferentes, a partir de uma postura de reflexão em relação às situações apresentadas e às possibilidades de ação a serem desenvolvidas.

Os projetos de atuação elaborados pela Turma 1, individual ou coletivamente, sintetizaram, no seu processo de construção, o registro desta via do desenvolvimento de competências, constituindo-se em compromissos concretos de transposição e adequação teórica às possibilidades de intervenção e intencionalidades dos psicólogos. 

Trabalhar a elaboração de um produto final no curso, que congregasse, de forma concomitante, o objeto da formação e a prática profissional, proporcionou ao psicólogo escolar, além da articulação teórico-prática, a visibilidade do percurso de sua própria evolução. Os projetos de atuação constituíram-se em uma ferramenta capaz de demonstrar etapas, processos, estratégias de desenvolvimento profissional, permitindo aos psicólogos projetarem na atuação prática, de forma intencional, os conhecimentos e habilidades adquiridos no curso.

Na Turma 2, o Núcleo das modalidades de atuação orientou os psicólogos ao atendimento de alunos com queixas escolares, utilizando-se como referencial teórico uma nova proposta de avaliação e intervenção: Procedimentos de Avaliação e Intervenção das Queixas Escolares – PAIQUE (Neves & Almeida, 2003).

O PAIQUE nasceu da necessidade de se propor e examinar modelos de atuação do psicólogo escolar no atendimento às diversas demandas surgidas no contexto da escola, com especial destaque para a escuta aos professores, o reconhecimento das interações sociais e da relação professor-aluno. A ênfase do atendimento às queixas escolares, neste modelo, não recai sobre as dificuldades de aprendizagem, mas, sim, sobre como essas dificuldades foram historicamente produzidas.

Este modelo, sendo utilizado pelos psicólogos escolares com supervisão no Núcleo das modalidades de atuação,resultou em maior eficiência no processo de atendimento e avaliação de alunos com queixas escolares e de intervenção no processo educativo em apoio aos professores. Com o PAIQUE, foram consolidados alguns pressupostos como norteadores para o trabalho dos psicólogos escolares: a) o reconhecimento, por parte dos profissionais, das conseqüências positivas para o trabalho com os alunos decorrentes de uma articulação entre esses profissionais e os professores dos alunos; b) a necessidade de tratar-se as queixas escolares (dificuldades de aprendizagem, problemas de comportamento, desinteresse) como manifestação de um discurso de ordem pessoal e social; c) o entendimento que o trabalho do psicólogo nos contextos educativos deve também ter como foco a retomada, pela criança, do seu processo de aprendizagem e desenvolvimento.

A análise dos desdobramentos advindos do curso indicou a necessidade de continuidade no investimento de outros níveis de desenvolvimento de competência na formação continuada dos psicólogos, reconhecida como uma possibilidade de enriquecimento profissional.

O Curso de formação, mais que um momento de aprofundamento teórico conceitual, adquiriu proporções formativas fundamentais à construção da identidade profissional dos psicólogos escolares. Por meio da formação continuada no curso, foi possível recuperar-se uma intencionalidade e um desejo no re-direcionamento da identidade profissional, mais voltada para a Psicologia Escolar, mesmo que a intenção inicial não tivesse essa motivação, conforme registrado em uma das atividades exercitadas. Como declarou um psicólogo cursista em seu memorial: Por necessidade da Secretaria de Educação estou psicólogo escolar. Na verdade, fui jogado. O lado positivo dessa metamorfose é que as condições para a formação me foram ofertadas e a predisposição me impulsiona na busca de conhecimentos e de novos desafios.

Uma formação continuada para o desenvolvimento de competências, no formato que aqui se vem relatando, assume uma grande responsabilidade diante dos inúmeros significados que adquire na história dos sujeitos: deflagra-se a interdependência entre identidade pessoal e profissional, subjetividades individual e social, diante de contingências e contextos que potencializam desenvolvimento.

Considerar um processo de formação (quer seja um curso ou uma assessoria à prática profissional) como um momento social concreto, atravessado por “elementos de sentido” de outros contextos da vida social, pode contribuir para uma configuração específica da subjetividade social, influenciando, transformando ou originando novos sentidos aos elementos da configuração subjetiva da ação do sujeito (Rey, 2003).

Os psicólogos percebiam-se reconstruindo e compartilhando uma trajetória profissional que, a partir de memórias e identidades, revelavam histórias individuais e coletivas de expectativas, frustrações, inseguranças, desejos e afetos que justificavam uma construção coletiva da identidade profissional do “ser psicólogo escolar”.

Ao proprorcionar aos psicólogos escolares uma formação continuada assistida, foi possível perceber o desenvolvimento de competências coletivas em função de uma tarefa comum, em um contexto partilhado (Wittorski, 1998). Acredita-se que esses psicólogos venham a atuar nos complexos espaços sociais que compõem os contextos de construção de identidades, de modo a transformar seus desejos e expectativas em possibilidades mais competentes de formação e atuação profissionais compartilhadas.

 

6. Conclusões

Conduzir uma formação continuada em serviço requer um mergulho em uma prática real, em que o processo de compreensão do contexto e do sujeito-profissional é partilhado, vivificado e dialeticamente re-significado pelos inúmeros sentidos da experiência, da subjetividade, dos processos relacionais. Adentrar nesse universo, sedutor mas extremamente desafiante, pressupõe escolhas éticas, compromissos sócio-políticos e uma intencionalidade constantemente aguçada.

Planejar, propor, coordenar, mediar e acompanhar a formação continuada em serviço dos psicólogos escolares da SEDF, exigiu, das autoras, o desenvolvimento de competências muito específicas, re-significadas e avaliadas pelosindicadores de processo e de contexto que se configuravam novos e provocativos.

assessoria para o planejamento, a coordenação e o acompanhamento do desenvolvimento de competências na formação continuada, apresenta-se como alternativa de continuidade aos resultados propiciados pelo Curso deformação. Quer seja viabilizada por meio de projetos de extensão ou de pesquisa, defende-se que a assessoria aos profissionais em serviço deva ser incorporada às funções formativas das instituições de ensino superior.

 

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1 Doutora em Psicologia, Pesquisadora e Professora Adjunto do Instituto de Psicologia e do Programa de Pós-Graduação em Desenvolvimento Humano e Saúde da UnB. Contato: claisy@unb.br 
2 Doutora em Psicologia, Pesquisadora e Professora do Instituto de Psicologia e do Programa de Pós-Graduação em Desenvolvimento Humano e Saúde da UnB. Contato: marisa.brito.neves@uol.com.br


Artigo original:

http://pepsic.bvsalud.org/scielo.php?script=sci_arttext&pid=S1415-711X2007000100011&lng=pt&nrm=i&tlng=pt

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