Artigos Científicos

Uso de álcool entre adolescentes: conceitos, características epidemiológicas e fatores etiopatogênicos

Flavio Pechansky; Claudia Maciel Szobot; Sandra Scivoletto

15 de junho de 2007

Rev. Bras. Psiquiatr. v.26  supl.1 São Paulo maio 2004

Uso de álcool entre adolescentes: conceitos, características epidemiológicas e fatores etiopatogênicos

 

Flavio PechanskyI; Claudia Maciel SzobotI; Sandra ScivolettoII

ICentro de Pesquisa em Álcool e Drogas da UFRGS
IIGREA - Grupo Interdisciplinar de Estudos de Álcool e Drogas do Instituto e Departamento de Psiquiatria da FMUSP, Hospital das Clínicas de São Paulo

Endereço para correspondência


RESUMO

O álcool é a substância mais consumida entre os jovens, sendo que a idade de início de uso tem sido cada vez menor, aumentando o risco de dependência futura. O uso de álcool na adolescência está associado a uma série de comportamentos de risco, além de aumentar a chance de envolvimento em acidentes, violência sexual e participação em gangues. O uso de álcool por adolescentes está fortemente associado à morte violenta, queda no desempenho escolar, dificuldades de aprendizado, prejuízo no desenvolvimento e estruturação das habilidades cognitivo-comportamentais e emocionais do jovem. O consumo de álcool causa modificações neuroquímicas, com prejuízos na memória, aprendizado e controle dos impulsos. Os profissionais que lidam com adolescentes devem estar preparados para uma avaliação adequada quanto ao possível uso abusivo ou dependência de álcool nesta faixa etária. Entretanto, é importante destacar que os critérios empregados por alguns instrumentos para o diagnóstico de abuso e dependência de álcool foram desenvolvidos para adultos e devem ser aplicados com ressalvas para adolescentes. Assim, é fundamental que os profissionais conheçam as características da adolescência e as particularidades da dependência química nesta faixa etária.

Descritivos: Bebidas alcoólicas. Saúde dos adolescentes. Transtornos relacionados ao uso do álcool. Abuso de sustância.


Introdução

O uso de álcool entre adolescentes é, naturalmente, um tema controverso no meio social e acadêmico brasileiro. Ao mesmo tempo em que a lei brasileira define como proibida a venda de bebidas alcoólicas para menores de 18 anos (Lei nº 9.294, de 15 de julho de 1996), é prática comum o consumo de álcool pelos jovens - seja no ambiente domiciliar, em festividades, ou mesmo em ambientes públicos. A sociedade como um todo adota atitudes paradoxais frente ao tema: por um lado, condena o abuso de álcool pelos jovens, mas é tipicamente permissiva ao estímulo do consumo por meio da propaganda.

Pinsky e Silva1, estudando comerciais de bebidas alcoólicas, demonstraram que a freqüência destes era, em média, maior do que a freqüência de comerciais sobre outros produtos, como bebidas não alcoólicas, medicamentos ou cigarros. Mais ainda, dos cinco temas mais freqüentemente encontrados nos comerciais de bebidas alcoólicas, três deles (como relaxamento, camaradagem e humor) eram diretamente relacionáveis às expectativas dos jovens. Além disso, não havia, à época, qualquer tipo de mensagem consistente quanto ao consumo moderado das bebidas anunciadas.

Atualmente, existe um movimento na direção do consumo responsável de álcool, como indica, por exemplo, o website da Companhia Brasileira de Bebidas - AMBEV, com campanhas na mídia associando o consumo de álcool com moderação ou com prevenção de acidentes, ou mesmo de iniciativas do Conselho Nacional de Auto-Regulamentação Publicitária - CONAR - quanto à regulamentação de propaganda voltada para jovens.

Em resolução divulgada em outubro de 2003, o CONAR define uma série de regras e parâmetros restritivos à propaganda de bebidas alcoólicas visando à exclusão de imagens voltadas para menores, vetando a utilização de pessoas de menos de 25 anos nos comerciais, dentre outras. Mesmo assim, das mensagens que o CONAR resolve que deverão fazer parte obrigatória das cláusulas de advertência nos comerciais, apenas uma é explicitamente voltada a informar que o consumo não se destina a crianças ou adolescentes ("ESTE PRODUTO É DESTINADO A ADULTOS"). As demais fazem menção a restringir o abuso, não beber e dirigir, e beber com moderação. No entanto, é sabida a desproporção entre este esforço versus o gigantesco impacto da propaganda sobre o consumo de bebidas alcoólicas entre os jovens. E, de certa forma, esta desproporção é visível na comparação entre as belas imagens produzidas na mídia, que ocupam a grande parte de um comercial, versus a tarja governamental, sóbria e obrigatória, informando sobre os danos causados pelo uso abusivo daquela substância. No que compete ao controle do consumo, estudos recentes, realizados nos EUA, confirmam a impressão leiga de que a maioria dos estabelecimentos comerciais vende bebidas alcoólicas para indivíduos menores de 21 anos sem solicitação de verificação da idade2. Outro achado preocupante mencionado pelos autores é o de que, mesmo havendo maior controle sobre o consumo de álcool dentro de ambientes com grande concentração de jovens (escolas e universidades, por exemplo), mais da metade dos estados americanos permite a entrega domiciliar de bebidas alcoólicas vendidas por telefone - o que não é diferente da realidade brasileira -, favorecendo o menor controle sobre o consumo de álcool por menores de idade.

Em artigo recente, Saffer3, ao discutir mitos culturais e símbolos utilizados em propaganda sobre álcool, conclui que a mídia efetivamente influencia o consumo. Para uma mente em desenvolvimento, tipicamente sugestionável e plástica como a de um adolescente, o paradoxo de posição da sociedade e a falta de firmeza no cumprimento de leis são um caldo de cultura ideal para a experimentação tanto de drogas como de álcool, contribuindo para a precocidade da exposição de jovens ao consumo abusivo.

Este artigo tem como finalidade descrever aspectos epidemiológicos, etiopatogênicos e diagnósticos associados ao consumo de bebidas alcoólicas por adolescentes, visando orientar o profissional não especialista no manejo destas difíceis questões.

 

Problemas relacionados a diagnóstico e classificação

Um dos primeiros obstáculos relacionados ao tema do uso problemático de álcool entre adolescentes é a própria definição do que é o uso normal. Os sistemas classificatórios apresentam discordâncias e necessidades de aprimoramento bastante comentadas na literatura.

De acordo com a American Academy of Pediatrics4, haveria seis estágios no envolvimento do adolescente com SPA: abstinência, uso experimental/recreacional (em geral limitado ao álcool), abuso inicial, abuso, dependência e recuperação. Esta classificação é interessante, pois contempla características da adolescência: a experimentação de SPA, dentro de certos padrões, pode ser considerada uma conduta normal neste período de desenvolvimento, no qual o jovem percorre outras experimentações, como a da sexualidade. Sabe-se, por exemplo, que a maioria dos adolescentes que experimentam uma substância de abuso não se tornará um usuário regular da mesma5. Também, esta classificação permite o diagnóstico de abuso inicial quando pequenos prejuízos começam a emergir, como um pior desempenho escolar por estar sofrendo dos efeitos posteriores a um abuso de álcool.

A maioria dos instrumentos para avaliação de uso de SPA deriva, entretanto, do DSM6. Por este sistema, os principais diagnósticos seriam de abuso e de dependência.

Para o diagnóstico de abuso, o adolescente precisaria apresentar, ao longo de um ano, um dentre quatro sintomas ancorados, sobretudo, no uso recorrente da substância, apesar de algum prejuízo social, pessoal ou legal. Para o diagnóstico de dependência, o adolescente deveria apresentar, ao longo de um ano, três dentre sete sintomas que não se sobrepõem aos sintomas de abuso. O DSM-IV apresenta uma série de vantagens, como a listagem de critérios operacionais claros. O seu uso, porém, requer cautela, por vários motivos. Não há critérios para crianças e adolescentes distintos de critérios para adultos, como já ocorre, por exemplo, para a distinção entre Transtorno de Conduta e Personalidade Anti-Social. Também há uma série de outras ressalvas, tanto para o abuso quanto para a dependência (para uma revisão, ver Martin e Winters, 1998). Ao menos dois dos sete sintomas de dependência são de base predominantemente biológica (tolerância e abstinência), mas a resposta física ao álcool difere de acordo com a etapa do desenvolvimento. O que significa dizer que, para uma doença de desenvolvimento lento como o alcoolismo, seria improvável que estes elementos - em particular os sintomas de abstinência - já se encontrassem evidentes com poucos anos de uso na adolescência.

Além disso, clinicamente, há dados que sugerem que a evolução da dependência de álcool em adolescentes não segue a transição de abuso para dependência do DSM-IV, mas sim uma seqüência composta por sintomas de ambos diagnósticos desde estágios mais iniciais, talvez mais parecida ao que propõe a American Academy of Pediatrics. Primeiramente, haveria três sintomas de dependência (tolerância, beber mais tempo ou quantia maior do que o desejado e muito tempo em torno de álcool) e dois de abuso (prejuízos pessoais e sociais); em um segundo estágio, haveria três sintomas de dependência (tentativas frustradas ou desejos de diminuir ou interromper o consumo; escassez do repertório; e uso continuado, apesar de problemas físicos ou emocionais) e dois de abuso (uso em situações com risco físico e problemas legais) e, por fim, um terceiro estágio, caracterizado pelos sintomas físicos de abstinência8. Com base nestes dados, parece-nos fundamental que, para avaliar o uso de álcool entre adolescentes sobretudo no intuito de diagnosticar alguma patologia -, o profissional tenha conhecimento sobre a adolescência e sobre as particularidades da dependência química nesta etapa da vida. Não há sustentação para simplesmente transpor o modelo de adultos para esta faixa etária.

 

A situação do problema: prevalência de experimentação, consumo regular, abuso e dependência de álcool entre os adolescentes

Os estudos epidemiológicos sugerem que 19% dos adolescentes norte-americanos apresentam abuso de álcool9. Os dados brasileiros são mais escassos e indicam haver características regionais quanto ao uso de álcool e outras SPA. Considerando-se o uso na vida, de acordo com o I Levantamento Domiciliar sobre o Uso de Drogas Psicotrópicas no Brasil (2001), a prevalência é de 48,3% entre jovens de 12 a 17 anos, em 107 grandes cidades brasileiras. Neste estudo, ainda na análise das 107 cidades em conjunto e para esta mesma faixa etária, a prevalência de dependência de álcool foi 5,2%. Analisando-se os dados de acordo com a região brasileira, encontramos a maior prevalência de uso na vida de álcool na região Sul (54,5%) e maior prevalência de dependência de álcool nas regiões Norte e Nordeste (9,2 e 9,3%, respectivamente). Entretanto, de acordo com a Organização das Nações Unidas para a Educação, a Ciência e a Cultura (UNESCO) (2002), a cidade de Porto Alegre, RS, lidera o ranking dos usuários regulares de SPA lícitas e ilícitas, com 14,4% de usuários de álcool. Apesar da relativa escassez de dados nacionais, estes estão de acordo com a literatura internacional, no sentido de a dependência química ser o problema de saúde mental mais prevalente entre adolescentes, com o álcool em primeiro lugar. Estes dados tornam-se mais alarmantes à medida que consideramos o forte impacto negativo do uso regular de álcool na adolescência, como será detalhado adiante.

 

Fatores de risco para o uso de álcool em adolescentes

O álcool é uma das substâncias psicoativas mais precocemente consumidas pelos jovens. Diferentes estudos, nacionais e estrangeiros, sistematicamente confirmam a impressão genérica de que, se o álcool é facilmente obtenível e fartamente propagandeado, isto se reflete em seu consumo precoce e disseminado.

Em um levantamento realizado com uma amostra de adolescentes representativa da população de Porto Alegre, Pechansky e Barros11 coletaram dados de 950 jovens entre 10 e 18 anos. Os achados indicavam ser freqüente (71%) a experimentação das bebidas alcoólicas mais comuns na faixa etária estudada, chegando a quase 100% na idade de 18 anos. Um dos achados importantes do estudo foi o de que havia mudanças na forma, local de consumo e volume de etanol ingerido de acordo com a idade dos entrevistados, assim como com relação ao gênero: os meninos começavam a beber fora de casa e com amigos mais precocemente, enquanto as meninas eram mais conservadoras, mantendo o hábito de consumo familiar e doméstico por mais tempo.

Genericamente, há informações consistentes sobre elementos que influenciam o início ou mantêm o uso de substâncias por parte dos adolescentes. Alguns deles se encontram abaixo:

1) A experimentação inicial se dá pelo fato de o adolescente ter amigos que usam drogas, gerando uma pressão de grupo na direção do uso. Ao mesmo tempo, Brook e Brook12 ressaltam que valores, calor humano e performance escolar dos pares também podem ser um importante elemento na prevenção do uso de drogas. Os autores também descrevem o efeito de "loops", ou seja, a potencialidade de que retroalimentações possam acontecer entre uso de drogas pelos pares e o uso pessoal de drogas: adolescentes que estão usando drogas têm mais chance de estarem associados a pares que usam drogas e, essa associação, por sua vez, aumenta a chance de que eles mantenham ou incrementem o seu envolvimento com drogas.

2) Elementos relacionados à estrutura de vida do adolescente desencadeiam um papel fundamental na gênese da dependência de drogas. De Micheli e Formigoni13, estudando uma amostra de 213 adolescentes brasileiros classificados em três grupos de intensidade crescente de abuso/dependência, identificaram que a classe social média-baixa aumentava em 3,5 vezes a probabilidade destes indivíduos se tornarem dependentes de drogas e a defasagem escolar, de no mínimo um ano, aumentava em 4,4 vezes a chance destes desenvolverem uma dependência grave. No que compete à situação familiar, a presença somente da mãe no domicílio do adolescente estava associada a um aumento de 22 vezes na chance deste ser dependente de drogas, quando comparado com adolescentes que viviam com ambos os pais. Corroborando estes achados, todo o corolário de trauma familiar, separação, brigas e agressões estavam francamente associados ao grupo de adolescentes com maior intensidade de dependência. O papel dos pais e do ambiente familiar é marcante no desenvolvimento do adolescente e, conseqüentemente, na sua relação com álcool e outras drogas. Falta de suporte parental, uso de drogas pelos próprios pais, atitudes permissivas dos pais perante o uso de drogas, incapacidade de controle dos filhos pelos pais, indisciplina e uso de drogas pelos irmãos são todos fatores predisponentes à maior iniciação ou continuação de uso de drogas por parte dos adolescentes12. Outro ponto de estudo na etiopatogenia do abuso de substâncias é o impacto de uma predisposição co-mórbida psiquiátrica no desenvolvimento do uso de drogas por adolescentes. Dentre os dependentes de drogas, estima-se que entre 30 e 80% tenham alguma outra comorbidade, sendo as mais freqüentes o Transtorno de Conduta, Depressão, Déficit de Atenção com Hiperatividade e Ansiedade14. Segundo Brook, Whiteman, Gordon e Cohen15, os mais potentes preditores de uso freqüente de drogas são as variáveis relacionadas a um estilo de vida não convencional, dentre elas a busca de sensações, rebeldia, tolerância a comportamentos desviantes e baixa escolaridade.

 

Impacto do uso de álcool em adolescentes

O uso problemático de álcool por adolescentes está associado a uma série de prejuízos no desenvolvimento da própria adolescência e em seus resultados posteriores, como será detalhado. Os prejuízos decorrentes do uso de álcool em um adolescente são diferentes dos prejuízos evidenciados em um adulto, seja por especificidades existenciais desta etapa da vida, seja por questões neuroquímicas deste momento do amadurecimento cerebral. Alguns riscos são mais freqüentes nesta etapa do desenvolvimento, pois expressam características próprias desta etapa, como o desafio a regras e à onipotência. O adolescente acredita estar magicamente protegido de acidentes, por exemplo, e também se sente mais autônomo na transgressão, envolvendo-se, assim, em situações de maior risco, por muitas vezes com conseqüências mais graves. Abaixo, alguns prejuízos associados à intoxicação e ao beber regularmente nesta fase:

1) O uso de álcool por menores de idade está mais associado à morte do que todas as substâncias psicoativas ilícitas em conjunto. Sabe-se, por exemplo, que os acidentes automobilísticos são a principal causa de morte entre jovens dos 16 aos 20 anos16. Estima-se que 18% dos adolescentes norte-americanos com idade entre 16 e 20 anos dirijam alcoolizados, dado de extrema importância ao sabermos que os comportamentos de risco, como os que resultam em acidentes automobilísticos, respondem por 29% das mortes de adolescentes. Este comportamento é mais característico de adolescentes do que adultos, pois a prevalência de acidentes automobilísticos fatais associados com álcool, entre jovens de 16 a 20 anos, é mais do que o dobro da prevalência encontrada nos maiores de 21 anos17. Em recente estudo realizado na fronteira EUA/México, o consumo de bebidas alcoólicas entre adolescentes mostrou-se associado com dirigir alcoolizado (OR=5,39) e com pegar carona com motorista alcoolizado (OR=3,12)18.

2) Estar alcoolizado aumenta a chance de violência sexual, tanto para o agressor quando para a vítima19. Da mesma forma, estando intoxicado, o adolescente envolve-se mais em atividades sexuais sem proteção, com maior exposição às doenças sexualmente transmissíveis, como ao vírus HIV, e maior exposição à gravidez20. A ligação entre sexo desprotegido e uso de álcool parece ser afetada pela quantidade de álcool consumida, interferindo na elaboração do juízo crítico (Sen, 2002). Dados nacionais apontam para uma associação entre uso de álcool, maconha e comportamentos sexuais de risco - como início precoce de atividade sexual, não uso de preservativos, pagamento por sexo e prostituição21.

3) O consumo de álcool na adolescência também está associado a uma série de prejuízos acadêmicos18. Esses podem decorrer do déficit de memória: adolescentes com dependência de álcool apresentam mais dificuldade em recordar palavras e desenhos geométricos simples após um intervalo de 10 minutos, em comparação a adolescentes sem dependência alcoólica22. Sabendo-se que a memória é função fundamental no processo de aprendizagem e que esta se altera com o consumo de álcool, é natural que este também comprometa o processo de aprendizagem. A queda no rendimento escolar, por sua vez, pode diminuir a auto-estima do jovem, o que representa um conhecido fator de risco para maior envolvimento com experimentação, consumo e abuso de substâncias psicoativas. Assim, a conseqüência do uso abusivo de álcool para o adolescente poderia levá-lo a aumentar o consumo em uma cadeia de retroalimentação, ao invés de motivá-lo a diminuir ou interromper o uso.

4) A percepção que o adolescente tem sobre os problemas decorrentes do consumo de álcool não acompanha, necessariamente, a hierarquia dos prejuízos considerados mais graves. Sabe-se, por exemplo, que 50% dos jovens que bebem regularmente apontam como a principal conseqüência negativa o fato de terem se comportado de uma forma imprópria durante ou após o consumo. Da mesma forma, 33% destes adolescentes queixam-se de prejuízo no pensamento. Apenas 20% descrevem o ato de dirigir alcoolizado como um dos problemas decorrentes, em contraste com o fato de os acidentes automobilísticos com motorista alcoolizado serem a principal causa de mortes nesta faixa etária (SAMHSA, 1998). Além disso, outros "freios sociais" presentes entre os adultos (problemas familiares, perda de emprego, prejuízo financeiro) - e que muitas vezes são vistos como alertas para a diminuição do consumo - estão ausentes entre os adolescentes. Esta seria uma possível explicação para jovens evoluírem mais rapidamente do abuso para a dependência, quando comparados com os adultos.

Os prejuízos associados ao uso de álcool estendem-se ao longo da vida. Os seus efeitos repercutem na neuroquímica cerebral, em pior ajustamento social e no retardo do desenvolvimento de suas habilidades, já que um adolescente ainda está se estruturando em termos biológicos, sociais, pessoais e emocionais. Abaixo, alguns dos efeitos do uso de álcool na adolescência ao longo da vida:

1) O uso de álcool na adolescência expõe o indivíduo a um maior risco de dependência química na idade adulta, sendo um dos principais preditores de uso de álcool nesta etapa da vida23. A manutenção do consumo em idade adulta pode ocorrer por diferentes fatores. O uso de álcool na adolescência pode ser apenas um marcador do uso de álcool na idade adulta ou, então, pode interferir na neuroquímica cerebral, ainda em desenvolvimento na adolescência.

2) O uso de álcool em adolescentes está associado a uma série de prejuízos neuropsicológicos, como na memória22. Outros danos cerebrais incluem modificações no sistema dopaminérgico, como nas vias do córtex pré-frontal e do sistema límbico. Alterações nestes sistemas acarretam efeitos significativos em termos comportamentais e emocionais em adolescentes24. É importante destacar que, durante a adolescência, o córtex pré-frontal ainda está em desenvolvimento. Como ele pode ser afetado pelo uso de álcool, uma série de habilidades que o adolescente necessita desenvolver e que são mediadas por este circuito - como o aprendizado de regras e tarefas focalizadas - ficarão prejudicadas. O hipocampo, associado à memória e ao aprendizado, é afetado pelo uso de álcool por adolescentes, apresentando-se com menor volume em usuários de álcool do que em controles e tendo sua característica funcional afetada pela idade de início do uso de álcool e pela duração do transtorno. Estes dados são importantes, pois demonstram haver um efeito cerebral conseqüente ao consumo de álcool em adolescentes; os efeitos ocorrem em áreas cerebrais ainda em desenvolvimento e associadas a habilidades cognitivo-comportamentais que deveriam iniciar ou se firmar na adolescência.

O adolescente ainda está construindo a sua identidade. Mesmo sem um diagnóstico de abuso ou dependência de álcool, pode se prejudicar com o seu consumo, à medida que se habitua a passar por uma série de situações apenas sob efeito de álcool. Vários adolescentes costumam, por exemplo, associar o lazer ao consumo de álcool, ou só conseguem tomar iniciativas em experiências afetivas e sexuais se beberem. Assim, aprendem a desenvolver habilidades apenas possíveis com o uso de álcool e, quando este não se encontra disponível, sentem-se incapazes de desempenhar estas atividades, evidenciando uma outra forma de dependência.

 

Conclusão

Como se procurou demonstrar ao longo deste artigo, o consumo de álcool por adolescentes ainda tem elementos controversos para sua compreensão. Apesar de trazer claras conseqüências orgânicas, comportamentais e na estrutura de desenvolvimento da personalidade do jovem, o uso de álcool nesta faixa etária paradoxalmente ainda é combatido e valorizado, dependendo do ângulo em que o fenômeno seja observado: para a mídia e para os pares, o consumo de álcool é favorecido. Para a lei e para os programas de saúde pública, ele é combatido. Neste embate entre forças freqüentemente desiguais, encontra-se um indivíduo com a personalidade em formação, como que navegando entre marés com correntezas opostas. Entretanto, independentemente das forças em questão, um ponto é inquestionável no que compete ao consumo de álcool por adolescentes: quanto mais precoce o início de uso, maior o risco de surgirem conseqüências graves. Os profissionais que lidam com este tema devem estar atentos a esta questão. Para tanto, devem conhecer as particularidades da adolescência e da dependência química nesta faixa etária.

 

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Endereço para correspondência
Flavio Pechansky
Centro de Pesquisa em Álcool e Drogas da UFRGS
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Artigo original:

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