Luís G. Streb
21 de junho de 2007
Existe também uma psiquiatria
pós-moderna?
Elemento característico
central da Era Moderna, o Iluminismo lançou idéias, propostas e correntes de
pensamento que transformaram a mentalidade ocidental. A filosofia do Iluminismo
orientou a organização da ciência moderna, especialmente das ciências naturais,
como física, química, biologia, e a Medicina.
“Iluminismo é a saída do homem de sua auto-culposa
imaturidade. Imaturidade é a incapacidade de servir sua compreensão sem a
orientação de outrem. Auto-culposa é esta imaturidade, quando as suas causas
repousam não em falta de entendimento, mas na decisão e na vontade de servir
a outrem”.1
O leitmotiv kantiano era “Tenha coragem de saber, e seja responsável
pela sua dignidade!”.
Esta época se foi. Beleza,
ordem e limpeza não mais importam.2 Somos pós-modernos (Latour disse
que nunca fomos modernos!)3, vivemos na antítese do Iluminismo,
conforme Habermas; nossa atmosfera psico-social é des-subjetivante, material e midiática-comercial.
Fragmentação, multiplicação, superficialidade,“simulacros”,desregulamentação,
alta mobilidade social e do capital, “compressão de espaço e tempo”,
ornamentação, parcialização e, segundo alguns, cinismo, são características
importantes deste ethos.4
Outros nos orientam, nosso entendimento (under-stand e ver-stehen exprimem, no inglês e no
alemão, a noção de permanecer de pé) é poroso e gelatinoso. A percepção diária
de que o entendimento responsável diminui, pode também ser sentida em nosso
campo de trabalho, como tentarei demonstrar. Vejamos algumas situações que
ilustram a questão, coisas que acontecem entre nós, aqui e acolá:
1. confusões, distorções e imprecisões
histórico-conceituais: Griesinger e Freud são freqüentemente citados
como precursores visionários de uma verdade científica considerada o clímax
possível da nossa área: doenças mentais seriam doenças cerebrais. Os dois
apresentaram elaboradas teorias da mente (neste caso, o clínico inspirou o
analista), ainda válidas em muitos aspectos. O substrato é naturalmente o
cérebro, mas a doença mental é um distúrbio da mente, produto fisiológico do
cérebro. As afirmações destes gênios, que se referiam tão-somente à etiologia,
uma vez que defendiam uma psico-dinâmica, devem hoje ser entendidas sob a
perspectiva fornecida pela mecânica quântica: a interação cérebro-mente seria
análoga a um campo probabilístico, sem massa nem energia, causando, no entanto,
ação efetiva em “micro-lugares”. Fisicamente falando, pode ser possível uma
vesícula pré-sináptica “exocitar-se” por um ato mental intencional, analogamente
a um campo probabilístico quântico. Atributo da matéria biológica funcional, a
mente, não é matéria, é um fenômeno que “emerge” de processos
físico-biológicos.5 É uma dimensão existencial do processo
neuro-biológico, assim como a gravidade, ou o magnetismo, é uma dimensão
energética de corpos materiais.
Este é um exemplo apenas de
uma diretriz heurística que (des)norteia a pesquisa básica na área: a confusão
entre cérebro e mente. A filosofia da mente (Armstrong, Putnam, Davidson, Nagel,
Searle e outros) nos fornece teorias que poderiam auxiliar a pesquisa básica, e
mais dezenas de questões ainda desconsideradas pela
psiquiatria.6
2. a
validade da pesquisa científica: é possível que muitos resultados de
grande parte da pesquisa possam ser falsos, considerando apenas problemas de
método: grupos e tamanhos de efeito pequenos, flexibilidade de designs,
definições e desfechos, insuficiente delimitação diagnóstica, estatística
inferencial inadequada, e grandes interesses comerciais envolvidos, parecem
diminuir a probabilidade de resultados verdadeiros, como demonstra Ioannidis em polêmico e complicado
trabalho do ano passado.7 Ao examinar o Cochrane Database pode-se verificar que
a revisão sistemática e metanálise de milhares de trabalhos (a grande maioria
sequer pode ser usada!) ainda não permite conclusões firmes em praticamente
nenhum segmento diagnóstico-terapêutico. A maioria dos estudos de eficácia
terapêutica envolve apenas diagnóstico de eixo I, com alguns critérios de
exclusão imprescindíveis. Sua validade é questionável, pois contrariam toda a
tradição clínica de avaliação completa da nossa disciplina, sugerida pelos
sistemas multi-axiais de diagnóstico, e iniciada por Kretschmer em
1918.8 Modelos inovadores de pesquisa (practical clinical trials) têm sido
apresentados e prometem aproximar mais o ensaio experimental da realidade
clínica.9
Lembro de Goethe: “Tudo que há no sujeito, há no objeto e
ainda algo mais; tudo que há no objeto, há no sujeito e ainda algo mais”.
3. literatura
científica versus propaganda farmacêutica e a pressão da indústria
(a situação me faz lembrar dos
filmes de Leni Riefenstahl sobre o nazismo): imprecisão e confusão são fatos
conhecidos na propaganda farmacêutica, para não citar o viés embutido na
publicação apenas de resultados positivos de eficácia, mesmo em periódicos de
prestígio. O assunto é tema de interessante artigo recente10: ainda
não provou-se que a melhora de pacientes deprimidos que usam ISRS se deva a um
“aumento da transmissão serotonérgica”, ou que seu quadro clínico se deva à
“hipofunção de 5-HT”. “Pouca evidência
embasa esta idéia”, escrevem Joanna Moncrief e David Cohen. Continuam: “Nenhuma evidência mostra que
antidepressivos ou alguma outra droga produzam elevação do humor por longo tempo
ou outros efeitos que sejam particularmente úteis no tratamento da
depressão”.11 A informação/propaganda no entanto é outra:
parcial, superficial e ornamental.
Aqui, também, só um
exemplo. Há vários mais (a história do Viagra, p. ex.)... Mesmo assim, segmentos
significativos da profissão, ligados ou não às universidades, promovem um
misticismo obscurantista a serviço de outrem, como diria Kant. Congressos
passaram a exigir “self-disclosure”
de seus participantes, como se isto fosse suficiente para eliminar o viés
contido na informação apresentada sob patrocínio, e resolvesse o problema ético
em questão. “Self-disclosure is not
enough” escrevem editoriais e artigos de jornais como New
England12 e JAMA13.
Neste contexto, hoje são
comuns situações como esta que encontrei recentemente no trabalho: amitriptilina
+ fluoxetina + clonazepam + ácido valpróico + haloperidol + biperideno. Que tal?
Esta pessoa, um trabalhador humilde, tomava tudo isto, tendo um quadro clínico,
segundo a minha avaliação diagnóstica estruturada, de... reação
depressiva/transtorno de ajustamento.
Polimedicação pesada
acontece em todos os níveis de atendimento, do privado ao público, extensamente.
O coquetel anti-depressivos tricíclico + ISRS, mais um benzodiazepínico, um
estabilizador de humor, ou dois, e um anti-psicótico, com biperideno, é o
feijão-com-arroz que as pessoas simples da nossa população têm recebido como
tratamento. Existem combinações mais sofisticadas, também sem qualquer evidência
empírica a embasar a prescrição. Vamos estudar psicofarmacologia
clínica?
4. formação
médica e psiquiátrica: não somos
mais COLEGAS (co + legare); participamos de uma fragmentação sem legado. Em
parte, pela perda da noção da função docente na academia, que acarretou a
proliferação infinita de profissionais (com as conseqüências sociais e pessoais
disto), o empobrecimento intelectual, e o abuso do mercado com aviltamento de
honorários. Associações, federações, sociedades etc. são formadas às dúzias
todos os anos para albergar espíritos fragilmente grandiosos e seus interesses.
A fragmentação atinge também o treinamento e a prática, com a proliferação de
“serviços”, “programas” e ambulatórios especializados para contemplar um número
infinito de “linhas de pesquisa”. Um dia teremos o AmPacA e o AmPasA
(ambulatório de pânico com agorafobia, e o de pânico sem agorafobia), ou o SEP
(serviço de ejaculação precoce). Situação bizarra já vemos em journals e revistas
ultra-especializadas, bem como em academias e sociedades. Assim, esperemos para
ver a American Cerebellum Association, ou o Left Thalamus Review. Que tal ser membro
da Brazilian Basal Ganglia Society? (you
have to speak english!).
Brincadeiras à parte, e
para finalizar, me parece que no campo propedêutico, as coisas podem melhorar
com a próxima CID. Juan Mezzich, presidente da WPA, já fez propostas importantes
para a qualidade da avaliação diagnóstica, apresentadas no último CBP em BH, que
deverão ser incluídas na 11ª edição (as Diretrizes Internacionais de Avaliação
Diagnóstica, IGDA, já são uma introdução a isto). Espera-se que sejam usadas! No
campo terapêutico, parece haver ainda muito a fazer. Que tal começar,
considerando o paciente como tendo uma mente, e não apenas um
cérebro?
Quanto ao resto, lembro de
Goethe novamente: “É difícil lidar com os
erros do nosso tempo: se resistimos a eles, ficamos sozinhos; se nos deixamos
aprisionar por eles, não obtemos nem honra nem
alegria”.14
NOTAS
1. I. Kant (1784), Was ist Aufklärung? Reclam, Stuttgart,
1974.
2. Z. Baumann, O mal-estar da pós-modernidade. J. Zahar,
1997.
3. B. Latour, We
have never been modern. Harvard Univ. Press,
1993.
4. Postmodernity, in
http://www.wikipedia.com
5. uma discussão completa se encontra em J. Eccles,
Evolution of the Brain: Creation of the Self. Routledge,
1989.
6. uma coletânea admirável está em Martinich & Sosa,
Analytic Philosophy: An Anthology. Blackwell,
2001.
7. PLoS Medicine, agosto 2005: Why most published
research findings are false, in http://www.plosmedicine.org
8. ”diagnóstico multi-dimensional”, base da obra de 1954
de Leme Lopes.
9. Am J
Psychiatry, May 2005.
10. Lacasse e Leo,
PLoS Medicine, dezembro 2005.
11. Moncrief e Cohen, Do antidepressants cure or
create abnormal brain states? PLoS
Medicine, julho 2006.
12. N Engl J Med, 18 May
2000.
13. JAMA, 21 Febr 2001.
14. Maximen und Reflexionen, Hamburger Ausgabe, v. 12,
1960.
Luís G. Streb
lgstreb@terra.com.br