Sandra Regina Kirchner Guimarães
19 de janeiro de 2015
Relações entre capacidade de segmentação lexical, consciência morfossintática e desempenho em leitura e escrita1
Sandra Regina Kirchner Guimarães2
Universidade Federal do Paraná
RESUMO
A partir do estágio alfabético de aquisição da escrita o aprendiz precisa enfrentar questões relativas à ortografia, entre elas a segmentação do escrito em palavras gráficas. Este estudo investiga relações entre a segmentação convencional de palavras, a consciência morfossintática, a ortografia e a compreensão da leitura de alunos do 4º e 5º anos do ensino fundamental em escolas públicas de Curitiba. Resultados revelam maior dificuldade na identificação oral de palavras do que na segmentação da escrita. Análises estatísticas mostraram correlações positivas e significativas entre todas as variáveis investigadas. Infere-se que as habilidades morfossintáticas favorecem o estabelecimento da noção convencional de palavra e sugere-se que os professores promovam o desenvolvimento dessas habilidades, para garantir aos alunos maior domínio na linguagem escrita.
Palavras-chave: segmentação lexical; hipossegmentação; hipersegmentação; consciência morfossintática; desempenho em leitura e escrita.
ABSTRACT
Since the alphabetic stage of reading acquisition the learner faces issues related to orthography, including the segmentation of the writing in graphic words. This study investigates the relationships between conventional segmentation of words, morphosyntactic awareness, orthography and reading comprehension of 4th and 5th year pupils from public elementary schools in Curitiba. The results reveal a greater difficulty in the oral identification of words than in the segmentation of writing. Statistical analysis show positive and statistically significant correlations between all investigated variables. The results indicate that morphosyntactic skills promote the establishment of the conventional word concept and suggest that teachers who encourage the development of these skills can warrant a greater ability of pupils in written language.
Keywords: lexical segmentation; hyposegmentation; hypersegmentation; morphosyntactic awareness; reading and writing performance.
O estudo aqui apresentado foi desenvolvido como parte de um programa de pesquisa que tem como objetivo conhecer e explicar dificuldades relativas ao processo de aquisição e (ou) aperfeiçoamento da linguagem escrita, com base, principalmente, nos aportes teóricos da Psicologia e da Psicolinguística.
De acordo com Ferreiro (1987), o desenvolvimento da linguagem escrita envolve um processo de diferenciação progressiva, tanto das características quantitativas como dos aspectos qualitativos do texto, ao longo do qual é construído o princípio alfabético.
Atingir o que Ferreiro e Teberosky (1985) denominam hipótese alfabética da escrita significa realizar uma análise fonológica da palavra bastante acurada, chegando a unidades mínimas (os fonemas). Assim, a criança passa a estabelecer uma correspondência grafema-fonema sistemática, pois entende que a similaridade de som implica uma similaridade de letras e que uma diferença no som implica letras diferentes.
Entretanto, ao descobrir a natureza alfabética do sistema de escrita, a criança não dominará ainda a ortografia; esta descoberta é apenas mais um passo na construção da escrita pela criança. A partir daí, ela precisa desenvolver uma hipótese ortográfica que, como explica Zorzi (1998), implica a capacidade de "pensar as palavras, não só do ponto de vista de sua estrutura acústica, mas também a partir de um referencial visual, considerando a forma gráfica que as palavras têm, ou seja, a convenção" (p. 87).
Para Ferreiro e Pontecorvo (1996, p. 51), "quando a criança começa a trabalhar sobre 'o ortográfico dentro do alfabético', um dos aspectos a que deve atender é a definição de palavra que a escritura impõe." Em outros termos, a partir do estágio alfabético, ela precisa, ainda, enfrentar várias questões relativas à ortografia, e talvez uma das mais importantes seja a aquisição da capacidade de segmentar o escrito em palavras gráficas. Para isso, é necessário que a criança estabeleça critérios morfológicos de segmentação da linguagem, o que, segundo Gombert (1990), se torna sistemático apenas aos 7-8 anos, quando as crianças estão em processo de alfabetização. Antes disso, pode-se afirmar que, embora as crianças sejam capazes de produzir e compreender enunciados, seu conhecimento lexical é implícito e inconsciente (Ehri, 1975).
Os estudos realizados por Ferreiro e Teberosky (1985), com relação à segmentação da escrita, já demonstraram que os critérios de segmentação da linguagem utilizados por pré-escolares são bem diferentes do critério morfológico convencional. Segundo essas autoras, inicialmente a criança parece interpretar a escrita como uma forma particular de representar os objetos (concepção que denominam "hipótese do nome"), estabelecendo uma correspondência entre a quantidade de palavras escritas e a quantidade de referentes no enunciado.
Adotando uma perspectiva psicolinguística, Ferreiro e Pontecorvo (1996) estudaram comparativamente aspectos relacionados à aquisição da escrita em três línguas diferentes: espanhol, italiano e português, indagando-se sobre qual a representação mental de "palavra" que têm as crianças pré-alfabetizadas. Essas autoras encontraram evidências de que as crianças pequenas parecem fazer uma distinção clara entre o que consideram "palavras" – aquelas que apresentam um referencial concreto – e outras coisas que são ditas para "juntar as palavras": artigos, conjunções, preposições.
Os resultados da pesquisa comparativa de Ferreiro e Pontecorvo (1996) mostram uma tendência maior das crianças de 2ª e 3ª séries a unir indevidamente as palavras do que a separá-las3. Conforme as autoras, "a tendência à hipossegmentação parece dominar sobre a tendência à hipersegmentação, qualquer que seja a língua, a tradição escolar e o tipo de script [letra]" (p.49).
A análise da hipossegmentação expõe que ela é mais frequente entre as palavras compostas por apenas uma ou duas letras e (ou) elementos átonos e sem carga referencial autônoma, como artigos, preposições, conjunções. Nos casos de hipersegmentação, menos frequentes, identificou-se que foram isolados grupos de letras que correspondem a palavras com existência gráfica autônoma na língua (artigos, preposições, conjunções), sendo observados também alguns recortes silábicos. A análise dos diferentes casos de hipersegmentação encontrados aponta que a categoria gramatical não parece desempenhar nenhum papel, mas sim a aparência gráfica do que a criança está escrevendo. As autoras concluem que: "as crianças que apenas hipersegmentam já construíram um bom repertório de tais seqüências gráficas." (p.63).
Enfim, Ferreiro e Pontecorvo (1996) sugerem que, "embora exista uma noção intuitiva e pré-alfabética de 'palavra', a noção normativa se constrói junto com a aprendizagem da escrita (...) a palavra não precede o texto, mas se constitui como uma das partições do texto escrito." (p.63)
De outra parte, Marec-Breton e Gombert (2004) salientam que a escrita combina dois princípios indispensáveis para sua existência e funcionamento. O primeiro é fonográfico e diz respeito à relação entre unidades sonoras ou fonemas e unidades gráficas ou grafemas, enquanto o segundo é semiográfico e permite que unidades gráficas (por exemplo, casa) correspondam também a um significado (casa = edifício de moradia).
Os morfemas são os menores signos linguísticos que encerram um significado: se a palavra "casa" for reduzida a "cas", o significado desaparece, pois em português /cas/ não significa nada. Os morfemas podem constituir palavras inteiras (por exemplo, o substantivo casa) ou uma parte da palavra, portadora de significado (por exemplo, o "s" na palavra casas, significando mais de um). Entretanto, as palavras podem ser morfologicamente simples ou complexas, no primeiro caso são constituídas por um único morfema e, no segundo, são compostas por dois ou mais morfemas.
Conforme Laroca (2005), tradicionalmente os linguistas reconhecem duas grandes classes de morfemas, ou seja, as raízes (núcleo mínimo de uma construção morfológica) e os afixos (morfemas sem autonomia morfossintática, que podem ser de dois tipos: prefixos, quando adicionados antes da raiz, ou sufixos, quando adicionados depois da raiz). E acrescenta que a morfologia divide-se "em dois ramos: a morfologia flexional e a lexical" (p.14).
Assim, a autora explica que a morfologia derivacional (ou lexical) estuda a estrutura das palavras, bem como os processos de formação delas, tratando das relações entre paradigmas4 diferentes. Por exemplo, no par: nadar/nadador, a palavra nadador se relaciona por derivação com a palavra nadar, pelo acréscimo do sufixo derivacional – dor. Entretanto, as formas nadar e nadador são palavras que pertencem a paradigmas distintos. Como as derivações tratam das estruturas das palavras, as novas palavras podem ter uma extensão no significado, ou seja, pode haver uma instabilidade semântica (por exemplo: correr/corredor).
De outra parte, Laroca (2005) explica que morfologia flexional (ou gramatical) aborda as relações entre as diversas formas da mesma palavra, ou seja, o seu paradigma flexional. Pode-se dizer que a flexão tem caráter morfossintático, pois cumpre uma exigência de concordância nominal ou verbal, de acordo com a necessidade imposta pela frase. Por exemplo, na frase: Nós estivemos em São Paulo no mês passado, identifica-se uma clara relação entre nós e estivemos (concordância na primeira pessoa do plural).
Assim, com base nas inter-relações entre o nível morfológico e o sintático, acredita-se ser possível designar a consciência morfossintática como a capacidade que o sujeito possui de fazer considerações, de modo consciente, sobre a derivação e a flexão das palavras (considerações morfológicas), envolvendo a reflexão sobre as palavras como categorias gramaticais e sua posição na frase (considerações sintáticas).
Dado que o sistema ortográfico representa simultaneamente os níveis fonológico e morfossintático, parece perfeitamente legítimo inferir que a aprendizagem da leitura e da escrita é influenciada tanto pela consciência fonológica como pela consciência morfossintática.
Entre os primeiros estudos que dão suporte a essa idéia estão aqueles realizados por Joanne Carlisle com crianças falantes do inglês. Em um estudo longitudinal, Carlisle (1995) investigou o desenvolvimento metalinguístico em crianças no início da escolarização formal e verificou uma relação significativa entre a consciência morfológica e a aquisição de habilidades em leitura. Em outro estudo, Carlisle (2000) investigou a capacidade de as crianças de 3ª a 5ª séries reconhecerem a estrutura e o significado das palavras derivadas, concluindo que a habilidade de realizar análises morfológicas está significativamente relacionada à compreensão da leitura. Ademais, investigando produções escritas, Carlisle (1996) realizou um estudo exploratório sobre o emprego de palavras morfologicamente complexas por crianças de segunda e terceira séries com e sem problemas de aprendizagem. Seus resultados registram que os dois grupos da terceira série (com e sem problemas de aprendizagem) foram mais precisos na utilização de flexões, derivações e palavras compostas.
Outros estudos realizados na língua inglesa também defendem a importância dos aspectos morfossintáticos para a produção de grafias. Primeiramente, destaca-se o que foi realizado por Nunes, Bryant e Bindman (1995), que investigaram crianças inglesas na faixa etária de 6 a 11 anos quanto aos processos envolvidos no aperfeiçoamento da ortografia após a primeira série. De acordo com esses autores, seus resultados indicam a possibilidade de que a tomada de consciência de aspectos morfossintáticos da língua constitua uma explicação para o desenvolvimento ortográfico. Outra investigação, realizada por Deacon e Bryant (2005), examinou os efeitos do conhecimento de sufixos sobre a escrita de crianças. Os resultados dessa investigação apontam que as crianças de cinco a oito anos demonstraram ter consciência das flexões, mas não das derivações.
Salienta-se, entretanto, que esses estudos não controlaram a influência da consciência fonológica sobre o desempenho na leitura e na escrita, o que deu margem a que alguns autores (Bowey, 2005; Fowler & Liberman, 1995, citados por Mota, 2008b) argumentassem que a consciência morfológica é um subproduto do processamento fonológico e que não contribui de forma independente para a alfabetização. Para verificar esta questão foram realizados estudos tanto em língua inglesa (Deacon & Kirby, 2004; Nagy, Berninger &Abbot, 2006) como francesa (Plaza & Cohen, 2004). Os estudos mencionados indicam que, embora o processamento morfológico não contribua com o mesmo peso do processamento fonológico para a aquisição da leitura e da escrita, aparentemente sua contribuição é independente da contribuição de outras habilidades metalinguísticas.
O Português é uma língua alfabética mais transparente do que a língua inglesa, ou seja, apresenta maior grau de correspondência entre letras e sons da fala, o que sugere uma contribuição menos significativa do processamento morfológico na aquisição da linguagem escrita. Contudo, na última década estudos em língua portuguesa têm apresentado evidências de uma relação entre a consciência morfológica e o desempenho na linguagem escrita. Com efeito, Queiroga, Lins e Pereira (2006), em uma pesquisa que envolveu 120 alunos de segunda e quarta séries de escolas públicas e particulares, investigaram a relação entre a consciência morfossintática e o desempenho ortográfico. Seus resultados mostraram um efeito preditor do conhecimento morfossintático sobre o desempenho ortográfico, bem como uma evolução entre as séries na explicitação do conhecimento morfossintático e na escrita de palavras e pseudopalavras.
Paula (2007), com o objetivo de estudar conhecimentos implícitos e explícitos sobre a dimensão morfológica, derivacional e flexional, investigou dois grupos de crianças brasileiras de ambos os sexos, sendo 50 dos primeiros anos escolares (primeira e terceira séries) e 210 de anos escolares mais avançados (quinta e sétima séries). A autora analisou também a relação do conhecimento morfológico sobre a aquisição da leitura (decodificação e compreensão) e da escrita (ortografia). Seus resultados sugerem que as crianças de primeira série possuem conhecimentos implícitos (sensibilidade) em morfologia derivacional, principalmente sufixos; e a partir da terceira série, eles demonstraram um número crescente de correlações entre conhecimento morfológico e desempenho em leitura e em escrita.
Nessa mesma perspectiva, Mota, Aníbal e Lima (2008) realizaram uma investigação com o objetivo de verificar a contribuição do processamento da morfologia derivacional para a leitura e a escrita no português, analisando também se essa contribuição é dependente da consciência fonológica, ou seja, subproduto do processamento fonológico. Seus resultados mostram que a habilidade de refletir sobre os morfemas contribui tanto para a leitura como para a escrita, sendo essa contribuição até certo ponto independente do processamento fonológico.
Por último, destaca-se o estudo de Correa e Dockrell (2007), cujo objeto investigado aproxima-se da presente pesquisa. Este trabalho foi realizado com 76 crianças brasileiras de primeira a terceira séries do ensino fundamental, com o objetivo de investigar a relação entre a segmentação não-convencional de palavras escritas e diferentes medidas cognitivas e linguísticas. Os resultados do estudo assinalam que a alta ocorrência de hipossegmentações estava associada a baixos níveis de leitura, vocabulário, habilidade verbal e consciência morfológica, enquanto as hipersegmentações, mais raras, relacionaram-se a baixos níveis de leitura e consciência morfológica, ocorrendo tipicamente apenas na 1ª série (estágio inicial da aprendizagem da escrita).
É nesse contexto que este estudo se insere, tendo como objetivo central analisar a concepção de "palavra" de alunos do segundo ciclo do ensino fundamental (quarto e quinto anos)5 e investigar como a capacidade de segmentação gráfica dessas crianças relaciona-se com a consciência morfossintática e com o desempenho em tarefas de escrita e de compreensão da leitura. A princípio, as hipóteses de trabalho propostas nesta investigação foram as seguintes: (a) os índices de desempenho dos participantes nas tarefas de identificação oral de palavras e segmentação convencional na escrita correlacionam-se positivamente com os escores apresentados nas tarefas que avaliam a consciência morfossintática; e (b) os participantes que apresentam melhor desempenho na identificação oral e na segmentação escrita convencional das palavras apresentam, também, número de acertos mais elevado nas tarefas de ditado (ortografia) e de compreensão da leitura.
Método
Participantes
O universo da pesquisa é formado por alunos do segundo ciclo (quarto e quinto ano) do ensino fundamental de escolas públicas do núcleo regional do Pinheiro.
Do referido universo (que abrange oito instituições escolares), foram escolhidas aleatoriamente três escolas. Após obter o consentimento dos responsáveis pelas instituições para a realização da investigação científica pretendida, solicitou-se aos professores regentes das turmas de quarto e quinto anos que realizassem junto aos alunos o ditado da fábula "A cigarra e as formigas", texto composto por 86 palavras. Foram coletados 536 textos e destes foram escolhidos 40, de acordo com os seguintes critérios: 10 textos que apresentaram três ou mais hipossegmentações de palavras; 10 textos que apresentaram três ou mais hipersegmentações de palavras; 10 textos que demonstraram hipossegmentações e hipersegmentações de palavras em número de três ou mais de três em cada texto; finalmente 10 textos que não apresentaram segmentações lexicais não-convencionais.
Os grupos de alunos participantes (cada um com seis alunos do quarto ano e quatro alunos do quinto ano) foram formados pelos autores dos 40 textos selecionados, conforme apresentado a seguir:
Grupo 1 - composto por 10 alunos (duas meninas e oito meninos) com idade variando de 8 anos e 3 meses a 11 anos e 1 mês (média 9 anos e 2 meses) e cujos textos apresentaram alta frequência de hipossegmentação;
Grupo 2 – composto por 10 alunos (seis meninas e quatro meninos) com idade variando de 8 anos e 4 meses a 10 anos e 11 meses (média 9 anos e 6 meses) e cujos textos apresentaram alta frequência de hipersegmentações;
Grupo 3 – constituído por 10 alunos (quatro meninas e seis meninos) com idade variando de 8 anos e 10 meses a 9 anos e 11 meses (média 9 anos e 4 meses) e cujos textos apresentaram alta frequência tanto de hipossegmentação como de hipersegmentação;
Grupo 4 (controle) - formado por 10 alunos (duas meninas e oito meninos) com idade variando de 8 anos e 4 meses a 10 anos e 1 mês (média 9 anos e 1 mês) que não apresentaram problemas de segmentação lexical, oriundos das mesmas salas de aula dos participantes do grupo 3.
De acordo com os dados fornecidos pelas equipes pedagógico-administrativas das escolas, os alunos são oriundos de famílias com renda familiar de dois a cinco salários mínimos. Além disso, a escolaridade média de seus pais é a de ensino fundamental. Com base nesses dados, considerou-se que não havia variação socioeconômica significativa entre os participantes. Destaca-se, ainda, que a inclusão dos alunos no estudo dependeu da autorização dos responsáveis por meio do Termo de Consentimento Livre e Esclarecido.
Instrumentos
O presente estudo foi baseado em três tipos de instrumentos de coleta de dados.
Identificação de palavras em ditados populares
O primeiro é a tarefa de identificação de palavras em ditados populares, planejada usando como referência o estudo de Ferreiro (2000) e teve como objetivo verificar a capacidade de os participantes identificarem oralmente e por escrito as palavras de oito ditados populares que contêm no total 58 palavras (cada ditado tem de seis a oito palavras). Entre os ditados populares utilizados quatro iniciam com artigo + substantivo, dois iniciam com pronome, um inicia com advérbio e um inicia com substantivo6. Os ditados populares eram apresentados aos participantes oralmente, e solicitava-se ao aluno: 1º) repetição da frase contando "nos dedos" o número de palavras; 2º) escrita da frase e contagem das palavras (caso contasse menos palavras do que estivesse escrito, pedia-se para sublinhar as palavras).
Tarefas de avaliação da consciência morfossintática
O segundo, para avaliar a consciência morfossintática, consistiu na aplicação de cinco tarefas, todas elas já utilizadas em estudos anteriores (Besse, Vidigal de Paula & Gombert, 2005 citados por Mota, 2008a; Guimarães, 2005; Paula, 2007; J. L. N. Sá, comunicação pessoal, Setembro de 2005). Algumas tarefas foram aplicadas na forma originalmente utilizada por outros autores e outras sofreram pequenas variações, ou seja, alterou-se algum item que a pesquisadora considerou pertinente.
Destaca-se que as três últimas tarefas descritas (uso gerativo de morfemas, decisão morfo-semântica e analogias morfológicas) foram realizadas oralmente e apresentadas individualmente às crianças.
Na primeira tarefa, categorização gramatical (J. L. N. Sá, comunicação pessoal, setembro de 2005), são apresentadas aos participantes (em pequenos cartões) 15 palavras de três categorias gramaticais diferentes: cinco substantivos, cinco adjetivos e cinco verbos. Em seguida, o examinador solicita ao aluno que forme três grupos de palavras. Se o aluno conseguir distribuir as palavras corretamente, ou seja, formar os três grupos de acordo com as classes gramaticais, a tarefa é encerrada. Uma segunda oportunidade é oferecida aos participantes que não conseguirem classificar as palavras em categorias gramáticas. Nesta segunda etapa, o examinador seleciona três palavras – um verbo, um adjetivo e um substantivo – e pede ao aluno que coloque todas as ações junto ao verbo, todos os nomes junto ao substantivo e todas as qualidades junto ao adjetivo.
A segunda, tarefa grafo-morfológica, desenvolvida por Paula e Besse (Paula, 2007), aborda a flexão de substantivos (variação de gênero) e verbos (tempos verbais), baseando-se no paradigma do intruso7. Para utilização nesta investigação, a tarefa teve seus itens adaptados; contudo, como na forma original, foram mantidos 14 itens (dois para treino e 12 experimentais): seis com flexão de gênero e seis com flexão verbal detempo – três passado/futuro e três presente/passado. Para a realização dessa tarefa (que foi aplicada de forma impressa, conforme empregada pelas autoras da tarefa), os alunos precisam encontrar qual entre duas palavras é diferente da palavra-chave apresentada. Os itens utilizados no treino são apresentados como exemplo:
Qual é a palavra que não serve só para mulher como "esposa" (palavra-chave), "carioca" ou "garota"? Neste caso o intruso é "carioca".
Qual é a palavra que não indica uma ação presente como "festejam" (palavra-chave),
A terceira, tarefa de uso gerativo de morfemas (Guimarães, 2005), requer que as crianças flexionem formas verbais apresentadas no contexto de duas ou três sentenças. Os itens foram elaborados para verificar a adequação das respostas dos alunos no que se refere às seguintes situações: pronúncia ou omissão do "r" nos infinitivos verbais; pronúncia ou omissão do "u" final em verbos no pretérito perfeito, terceira pessoa do singular; pronúncia ou omissão do "s" final em verbos no pretérito perfeito, primeira pessoa do plural; pronúncia ou omissão da nasalização do ditongo nasal átono em verbos no pretérito, terceira pessoa do plural. Nesta tarefa, foram utilizados 14 itens (2 para treino e 12 para exame). Por exemplo: Hoje pela manhã arrumei o meu quarto inteirinho. Quando minha mãe viu, me disse: - Muito bem, você arrumou tudo sem precisar que eu pedisse para você _______.
Na quarta, tarefa de decisão morfo-semântica (Besse & cols., 2005 citados por Mota, 2008a), o participante tem que decidir se uma palavra é construída da mesma forma que outra, a partir da explicação de como podemos obter palavras novas pelo acréscimo de um prefixo ou sufixo em uma palavra primitiva8. Por exemplo: a palavra "descobrir" vem de "cobrir". A mesma situação ocorre com "desfazer" e "fazer" em que se acrescenta o "des" no início de "fazer". Entretanto, para que o aluno possa discriminar uma palavra derivada de outra não derivada, apresenta-se como exemplo a palavra "deslizar" que possui a sílaba "des" na frente , mas não vem de "lizar". Após a explicação, faz-se um teste com o participante, perguntando: "qual a palavra que é feita da mesma maneira que "descobrir" é "deslizar" ou "desfazer"?" Caso o aluno responda corretamente, inicia-se a atividade, do contrário deve-se fornecer a resposta correta explicando a razão. A tarefa consiste de 12 grupos de três palavras envolvendo prefixos (p.ex.: descolorir-deslizar-destorcer; replantar-reservar-relembrar) e 12 grupos de três palavras envolvendo sufixos (p.ex.: chaveiro-pandeiro-cinzeiro; protetor-autor-inventor).
A quinta, tarefa de analogias morfológicas (Guimarães, 2005), foi montada conforme o esquema tradicionalmente utilizado em tarefas de analogias, ou seja, "A" está para "B" assim como "C" está para "D". Portanto, essa tarefa consiste em apresentar, inicialmente, os dois primeiros elementos; a seguir, apresenta-se o terceiro elemento, "C", e o aluno deve produzir o quarto elemento. As palavras do primeiro par, "A" e "B", têm a mesma raiz, mas pertencem a categorias gramaticais distintas. O primeiro elemento de cada um dos pares ("A" e "C") pertence à mesma categoria, mas têm raízes distintas. Para responder à tarefa, os participantes deveriam utilizar a raiz de "C" e gerar uma palavra da mesma categoria gramatical de "B". A variação introduzida nesta aplicação da tarefa em relação à que foi utilizada por Guimarães (2005) diz respeito aos dois últimos itens, os quais foram modificados para explorar a capacidade de os participantes identificarem a relação entre o presente e o pretérito perfeito de verbos na 3ª pessoa do singular. Foi composta por 12 itens (dois de treino e dez de exame). Ressalta-se que na elaboração dos pares ("B" e "D") foram selecionadas palavras que não rimam; este procedimento teve como objetivo evitar uma possível interferência fonológica na execução da tarefa. Os itens utilizados no treino são apresentados como exemplo:
a) |
A - bondade |
B - bom D - ______. |
b) | A - sobe C - desce |
B - subiu D - ______. |
Tarefas de escrita (ditado) e de compreensão da leitura
A tarefa de escrita (ortografia) foi realizada a partir do ditado do texto da escala Avaliação na Aprendizagem da Escrita (Adape) – instrumento construído e validado por Sisto (2001). O texto da escala é constituído por 114 palavras (60 apresentando dificuldades que envolvem encontros consonantais, dígrafos, sílabas compostas e sílabas complexas).
Para a avaliação da compreensão na leitura, foram utilizados quatro textos: a) dois textos – "O pulo do gato" e "Um piquenique bem divertido" (Morais, 1997) – em que se utilizou a técnica do Cloze9; b) dois textos – "O grande jogo" e "O dia em que Caco sumiu" (Archanjo, 1998) – em que foram realizadas perguntas literais e inferenciais.
Procedimento
Os alunos foram avaliados individualmente em três sessões de 20 a 30 minutos, com exceção dos dois textos em Cloze que foram aplicados em grupos de cinco alunos, imediatamente antes da terceira sessão. Na primeira foram realizadas as tarefas de identificação oral e escrita das palavras dos ditados populares e o ditado da escala de Avaliação na Aprendizagem da Escrita (Adape). Na segunda sessão foram aplicadas as tarefas de consciência morfossintática e na última sessão, dividida em duas partes, foi avaliada a compreensão da leitura. Primeiro com a aplicação coletiva de dois textos em Cloze e depois por meio das respostas orais apresentadas às perguntas realizadas a partir da leitura dos outros dois textos.
Resultados
Como o número de acertos podia variar de acordo com as diferentes tarefas utilizadas neste estudo, todos os resultados serão apresentados em porcentagem.Destaca-se que os dados obtidos foram submetidos a provas estatísticas, porém, como os grupos eram pequenos e a maioria dos instrumentos utilizados não era testes padronizados para a população em geral, optou-se pelo uso de testes estatísticos não-paramétricos (Siegel, 1975).
A Tabela 1 mostra a média da idade dos 40 participantes da pesquisa, bem como a média com o respectivo desvio padrão dos percentuais de acertos nas tarefas de identificação oral e segmentação escrita das palavras apresentadas nos ditados populares.
Como se pode observar na Tabela 1, na identificação de palavras em ditados populares, tanto oralmente como na escrita, os participantes dos três primeiros grupos tiveram pior desempenho do que os participantes do grupo 4. A comparação das médias utilizando o teste de Kruskal-Wallis mostrou que a diferença entre os grupos é significativa, tanto na contagem oral (χ2 = 17,38, gl = 3; p = 0,001) como na escrita (χ2 = 17,54, gl = 23; p = 0,001).
Analisando o conjunto de palavras identificadas pelos participantes dos quatro grupos, verifica-se que o percentual de acertos na identificação oral das palavras é menor (75,38%) do que o percentual de acertos na identificação escrita (86,97%), ou seja, foi mais fácil para os participantes escrever as palavras na forma convencional do que contar estas mesmas palavras oralmente.
Quando os participantes foram questionados sobre a disparidade entre o número de palavras na contagem oral e na escrita, as respostas apresentadas circunscrevem-se majoritariamente em duas posições. Na primeira posição, agrupam-se as respostas que envolvem a aceitação de que o termo "palavra" não tem o mesmo referente oralmente e na escrita. Na segunda posição estão os participantes que refizeram a contagem oral na tentativa de igualar as quantidades (normalmente sem sucesso), pois declaravam que o número correto é o identificado na escrita. Salienta-se que apenas um participante do grupo 1 tentou adaptar a escrita à contagem oral.
Considerando os critérios apontados pelas crianças para determinar o que é palavra, verificou-se que as explicações dos participantes podem ser agrupadas em três categorias principais, sendo que principalmente as duas primeiras corroboram resultados obtidos por outros pesquisadores: 1) a palavra requer sentido pleno (Ferreiro, 2003; Gombert, 1990); 2) na palavra deve haver uma sequência de letras e não apenas uma ou duas (Ferreiro, 1985); 3) a frequência de utilização do vocábulo o define como "palavra".
Consciência morfossintática
A Tabela 2 sumariza os resultados obtidos nas cinco tarefas de consciência morfossintática. Tais resultados indicam que em todas as tarefas o desempenho dos três primeiros grupos foi menor do que o desempenho do grupo 4, ou seja, discriminam o grupo 4 dos outros três grupos. Assim, definiu-se um escore único de consciência morfossintática a partir da média dos escores percentuais obtidos nas cinco tarefas (categorização gramatical, grafo-morfológica flexional, uso gerativo de morfemas, decisão morfo-semântica e analogias morfológicas). Observando este escore, verifica-se que os participantes com menor capacidade de segmentação convencional das palavras (três primeiros grupos) obtiveram um escore de consciência morfossintática inferior ao escore dos outros participantes (grupo 4).
A comparação das médias dos quatro grupos nos escores de consciência morfossintática por meio o teste de Kruskal-Wallis mostrou que a diferença entre os grupos é significativa (χ2 = 13,50, gl = 3; p = 0,004).
Igualmente, vale salientar que, independentemente do grupo, as duas tarefas em que os participantes tiveram menor desempenho foram: categorização gramatical (pior desempenho dos grupos, com exceção do grupo 1) e grafo-morfológica flexional (segundo pior desempenho dos grupos, com exceção do grupo 1, que teve seu pior desempenho nesta tarefa). Considerando esses resultados, pode-se dizer que essas foram as tarefas de maior complexidade para os alunos. Provavelmente eles ainda não são orientados a refletir sobre este tipo de categorização, ou seja, análise morfológica. Ademais, o fato de os participantes apresentarem o segundo pior desempenho na tarefa grafo-morfológica foi um resultado não esperado, pois se acreditava que o desempenho nesta tarefa seria maior do que na tarefa de decisão morfo-semântica. A explicação para esse resultado pode ter duas origens diferentes. A primeira estaria ligada ao fato de que esta tarefa foi apresentada na forma impressa (o próprio aluno deveria ler e escolher o intruso). A segunda estaria relacionada à análise dos itens (verificou-se que o tipo de item que causou maior dificuldade aos participantes foi aquele que envolvia os substantivos, ou seja, eles não conseguiram discriminar adequadamente os substantivos uniformes). A maior facilidade dos participantes para tratar da flexão verbal foi atestada também no resultado da tarefa de uso gerativo de morfema (tarefa em que todos os grupos tiveram melhor desempenho). Outrossim, destaca-se que, como nesta tarefa os participantes deveriam flexionar formas verbais apresentadas no contexto de duas ou três sentenças, isto pode ter facilitado a execução da tarefa.
No que se refere à tarefa de analogias morfológicas, verifica-se um desempenho médio em todos os grupos, o que revela uma relativa capacidade dos participantes de refletir sobre "família lexical"10 e gerar palavras que pertencem à mesma "família".
Na sequência, foram analisadas as relações entre os escores de consciência morfossintática e a capacidade de segmentação lexical dos participantes por meio da prova de correlação de Spearman. Esta prova mostrou que os escores de consciência morfossintática correlacionam-se positiva e significativamente tanto com o desempenho na contagem oral das palavras que constam nos ditados populares apresentados (rs = 0,530; p < 0,001) como com o percentual de acertos na segmentação escrita (rs = 0,719; p < 0,001).
Tarefas de escrita (ditado) e de compreensão da leitura
A Tabela 3 mostra a média e o desvio padrão dos percentuais de acertos dos quatro grupos de participantes na tarefa de escrita (ditado) e nas tarefas de compreensão da leitura (resultado médio das duas tarefas de Cloze e resultado médio das duas tarefas de perguntas e respostas). Apresenta também um escore único de compreensão da leitura definido a partir da média dos escores percentuais obtidos nas tarefas de compreensão da leitura (este escore foi definido a partir da verificação de uma correlação positiva entre as tarefas).
Como se pode observar na Tabela 3, tanto na tarefa de escrita (ditado) como nas tarefas de compreensão da leitura, os participantes dos três primeiros grupos tiveram menor desempenho do que os participantes do grupo 4. A comparação das médias utilizando o teste de Kruskal-Wallis mostrou que a diferença entre os grupos é significativa. Ou seja, para a tarefa de escrita verificou-se (χ2 = 23,02, gl = 3; p < 0,001) e para as tarefas de compreensão da leitura (χ2 = 11,10, gl = 3; p = 0,011).
Ao analisar o desempenho dos participantes na tarefa de escrita, evidenciaram-se (principalmente entre os alunos dos três primeiros grupos) erros ortográficos que envolvem tanto palavras que apresentam uma relação biunívoca entre letras e sons (regulares) como palavras que não apresentam tal relação (regra e irregulares). Tendo em vista esses resultados, conclui-se que os erros cometidos têm sua origem em problemas relacionados à análise fonológica das palavras, com a análise do contexto ortográfico, bem como com a análise morfossintática.
No que se refere às tarefas de compreensão da leitura, verificou-se que os participantes dos três primeiros grupos obtiveram uma média de 51,78%. Portanto, infere-se que esses alunos, apesar de razoáveis decodificadores, afinal são alunos do quarto e quinto anos, não conseguem apreender o sentido do texto. Acredita-se que o nível (ou baixo nível) das habilidades morfossintáticas desses alunos é um dos fatores explicativos para este desempenho.
A partir desses dados, foi utilizada a prova de correlação de Sperman para verificar as relações entre os escores de consciência morfossintática e o desempenho dos participantes nas tarefas de ditado (ortografia) e compreensão da leitura. Como produto desta análise verificou-se que os escores de consciência morfossintática correlacionam-se positiva e significativamente tanto com o desempenho ortográfico na tarefa de ditado (rs = 0,679; p < 0,001) quanto com o escore de compreensão da leitura (rs = 0,639; p < 0,001).
Por último, a prova de correlação de Sperman foi utilizada para verificar possíveis relações entre o desempenho dos participantes na contagem oral das palavras e segmentação escrita dos ditados populares com os seus desempenhos nas tarefas de ditado (ortografia) e de compreensão da leitura. Os resultados destas análises mostraram que os índices de desempenho na identificação oral das palavras correlacionam-se positiva e significativamente com o desempenho nas tarefas de ditado (rs = 0,568; p < 0,001) e de compreensão da leitura (rs = 0,492; p < 0,001). Além disso, a mesma prova revelou que os índices de desempenho na segmentação convencional das palavras escritas correlacionam-se positiva e significativamente com os desempenhos nas tarefas de ditado (rs = 0,716; p < 0,001) e de compreensão da leitura (rs = 0,619; p < 0,001).
Discussão
Existe expressivo suporte empírico e teórico para a afirmação de que nas línguas alfabéticas tanto a consciência fonológica como a consciência morfossintática exercem papel fundamental na aprendizagem da leitura e da escrita. Destaca-se que a partir do estágio alfabético o aprendiz precisa enfrentar várias questões relativas à ortografia, e talvez uma das mais importantes seja a aquisição da capacidade de segmentar o escrito em palavras gráficas, o que exige que ele estabeleça critérios morfológicos de segmentação da linguagem.
Assim, formulou-se a hipótese de que o índice de desempenho dos participantes na tarefa de identificação oral de palavras e segmentação convencional na escrita correlaciona-se positivamente com o escore apresentado nas tarefas que avaliam a consciência morfossintática.
Analisando-se os resultados obtidos neste estudo, pode-se dizer que essa hipótese foi confirmada. A prova de correlação de Spearman mostrou que os escores de consciência morfossintática correlacionam-se positiva e significativamente com o desempenho na contagem oral das palavras que constam nos ditados populares apresentados e também com o desempenho na segmentação escrita convencional dessas palavras.
Além disso, é interessante recordar que, no total, os participantes apresentaram um percentual de acertos na identificação oral das palavras menor do que o percentual de acertos na segmentação escrita. Estes resultados colocam em relevo o argumento de Ferreiro (2003), para quem a noção de palavra ou "unidade palavra" não preexiste à escrita, explicando que, ao contar quantas palavras tem em um refrão, o adulto produz "uma imagem escrita do refrão, para contar oralmente as palavras como se definem no escrito." (p.152). Isso posto, os dados aqui analisados sugerem que os aprendizes primeiro constroem uma representação escrita das palavras gráficas e só depois de bem estabelecerem esta representação, com o aumento das experiências com a língua escrita, utilizam-na como referência para identificar as palavras escutadas. Acredita-se que é justamente o desenvolvimento de habilidades morfossintáticas possibilitadas pelo aumento das experiências com a língua escrita que favorece o estabelecimento da noção convencional de palavra.
Esse argumento encontra respaldo nos resultados de vários estudos com crianças falantes do inglês, os quais mostraram que a habilidade de refletir sobre os morfemas das palavras estava associada ao desempenho na escrita (Carlisle, 1996; Deacon & Bryant, 2005; Nunes & cols., 1995), e também ao desempenho na leitura de palavras isoladas e compreensão de leitura (Carlisle, 1995, 2000). Nesse mesmo sentido, estudos com crianças falantes do português têm demonstrado correlações significativas entre o conhecimento morfossintático e o desempenho em ortografia (Guimarães, 2005; Mota & cols., 2008; Paula, 2007; Queiroga & cols., 2006), bem como entre o conhecimento morfossintático e o desempenho em leitura (Guimarães, 2005; Mota & cols., 2008; Paula, 2007; Queiroga & cols., 2006). Os resultados da presente investigação corroboram os dos autores citados, visto que a prova de correlação de Spearman mostra que os escores de consciência morfossintática correlacionam-se positiva e significativamente tanto com o desempenho ortográfico na tarefa de ditado quanto com o escore de compreensão da leitura.
Além disso, tinha-se como hipótese que os participantes que apresentam melhor desempenho na identificação oral e na segmentação escrita convencional das palavras apresentam, também, número de acertos mais elevado nas tarefas de ditado (ortografia) e de compreensão da leitura. Esta hipótese foi igualmente confirmada, pois a prova de correlação de Spearman mostrou que os índices de desempenho na identificação oral das palavras correlacionam-se positiva e significativamente com o desempenho nas tarefas de ditado e de compreensão da leitura. Ademais, a mesma prova apontou que os índices de desempenho na segmentação convencional das palavras escritas correlacionam-se positiva e significativamente com os desempenhos nas mesmas tarefas de ditado e de compreensão da leitura.
Conforme sumariado em Gombert (2003), a relação entre a consciência fonológica e o desenvolvimento da linguagem escrita está bem documentada. Entretanto, a publicação de estudos, tanto estrangeiros como nacionais, que investigam a relação entre a consciência morfossintática e a linguagem escrita é ainda pouco numerosa. É neste contexto que se insere a principal contribuição desta pesquisa ao trazer novas evidências empíricas da relação entre a consciência morfossintática, a capacidade de segmentação convencional de palavras escritas e a compreensão da leitura. Destaca-se que os resultados deste estudo corroboram aqueles encontrados no estudo de Correa e Dockrell (2007), no qual as pesquisadoras constatam que tanto a alta ocorrência de hipossegmentações como as hipersegmentações relacionaram-se a baixos níveis de leitura e consciência morfológica.
No entanto, no que tange às conclusões deste estudo duas ressalvas precisam ser feitas. Primeiro, apontar o limitado poder de generalização dos seus resultados, devido ao pequeno número de participantes em cada um dos quatro grupos. Segundo, destacar que a avaliação da relação entre a consciência morfossintática e a aprendizagem da escrita é um tema complexo, que carece de novos estudos, sobretudo estudos longitudinais que possam estabelecer uma possível conexão causal entre essa habilidade metalinguística e o desenvolvimento da capacidade de leitura e de escrita. Esse tipo de estudo é necessário para explorar melhor como e quando é desenvolvida a consciência morfossintática, ou seja, os níveis de progressão do processamento das informações morfossintática. E, mais do que isto, enfatiza-se a necessidade de estudos de intervenção que possibilitem verificar como o ensino dessa habilidade pode auxiliar os alunos a utilizarem de forma intencional e deliberada o conhecimento dos aspectos morfossintáticos como estratégia de leitura e de escrita
Entretanto, mesmo com alguma ressalva, os resultados deste estudo sugerem que, no processo de ensino-aprendizagem da linguagem escrita, o professor deve buscar o desenvolvimento da consciência morfossintática dos alunos, pois os dados empíricos aqui apresentados indicam que esta habilidade possibilita um maior domínio ortográfico - o que inclui a capacidade de segmentação convencional das palavras - e proporciona maior capacidade na compreensão leitora.
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1 Agradeço as pedagogas Ma. Viviane do Rocio Barbosa e Annelyse Dunke de Lima pela participação na coleta de dados desta pesquisa.
2 Endereço para correspondência: Rua Clóvis Bevilaqua, 280, 6º andar. CEP: 80035-080. Curitiba, PR. Fone: (41) 3254-1436. E-mail: srkguimaraes@uol.com.br
3 As segmentações não-convencionais na escrita assumem duas formas: hipossegmentação ou junturas vocabulares quando duas ou mais palavras escritas apresentam-se aglutinadas (p.ex.: "porisso");hipersegmentação, quando ocorrem separações vocabulares além daquelas convencionadas ortograficamente, ou seja, quando uma única palavra é escrita em dois ou mais segmentos (p.ex.: "a gora").
4 Laroca (2005, p.14) define que "um paradigma constitui-se de um grupo de formas relacionadas flexionalmente com uma raiz comum" e exemplifica: longo – longa, longos, longas.
5Destaca-se que com a ampliação do Ensino Fundamental de oito para nove anos, o atual 4º ano corresponde à antiga 3ª série e o 5º ano à antiga 4ª série.
6 Foram selecionados ditados populares iniciando com palavras de diferentes categorias gramaticais, porque se queria verificar o papel da categoria gramatical na incidência de segmentações não-convencionas (não discutido neste artigo).
7 De acordo com Paula (2007, p. 52): "este paradigma foi criado em Oxford, pela equipe de Peter Bryant no início dos anos 80 [...] consiste em apresentar oralmente uma primeira palavra e depois outras duas, entre as quais o participante deverá escolher a que tem menos a ver com a primeira palavra."
8 Os termos "palavra primitiva" e "palavra derivada" foram utilizados por Rocha (2008, p. 98) para explicar que um falante nativo do português não deve apresentar dificuldade para identificar que palavras como "leitoso", "cabeludo" e "reinventar" vêm de "leite", "cabelo" e "inventar".
9 Conforme explica Santos (2004, p. 218), o procedimento de Cloze foi proposto por Taylor em 1953 e tem sido utilizado tanto para o diagnóstico como para o desenvolvimento da compreensão em leitura. A autora acrescenta que "o Cloze consiste na organização de um texto, do qual se suprimem alguns vocábulos e se pede ao leitor que preencha os espaços com as palavras que melhor completarem o sentido do texto."
10 Uma "família lexical" é constituída por palavras que provêm do mesmo radical - também chamadas palavras cognatas ou famílias etimológicas.
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