Célia Cristina Nunes; Nancy Capretz Batista da Silva; Ana Lúcia Rossito Aiello
4 de março de 2015
As contribuições do papel do pai e do irmão do indivíduo com necessidades especiais na visão sistêmica da família1
The contributions of father's role and siblings' role to disabled people in the family systems perspective
Célia Cristina Nunes; Nancy Capretz Batista da Silva2; Ana Lúcia Rossito Aiello
Universidade Federal de São Carlos
RESUMO
O presente artigo revê a literatura sobre as principais contribuições do pai e do irmão do indivíduo com necessidades especiais tendo como base a visão sistêmica da família. O objetivo é aprofundar o tema famílias de indivíduos deficientes, focalizando aqueles elementos que têm sido deixados em segundo plano nos estudos da área, pai e irmão, mostrando sua importância no desenvolvimento desses indivíduos. Assim, são discutidos aspectos da relação pai–indivíduo com necessidades especiais e irmão–indivíduo com necessidades especiais existentes na literatura, elucidando os desafios práticos e metodológicos de estudos investigando tais relações. Espera-se contribuir, nesta análise, para o aumento de interesse na referida área.
Palavras-chave: relacionamento pai–filhos; relacionamento entre irmãos; indivíduos com necessidades especiais; teoria sistêmica.
ABSTRACT
The present article reviews the literature about the main contributions of fathers and siblings to the disabled individual development based on the family systems perspective. The purpose is to deepen the subject families of disabled people, focusing those elements that have been left in a second plan in studies of this area, father and siblings, showing their importance in the development of these individuals. Thus, aspects of the relation father–individual with special needs and siblings–individual with special needs in literature are argued, elucidating the practical and methodological challenges of these studies that investigate such relations. One expects to contribute, in this analysis, for the interest increase in the related area.
Key words: father-child relationship; siblings' relationship; disabled people; systems approach.
De acordo com Pell e Cohen (1995), a família é o primeiro contexto no qual a criança é inserida, e é nela que aprenderá as primeiras noções de relações sociais, sendo tal ambiente capaz de contribuir para o crescimento e desenvolvimento infantil, sobretudo no que se refere às crianças com necessidades especiais, já que estas requerem determinados cuidados. Além disso, os autores ressaltam que a família é também o primeiro sistema de apoio no universo de serviços e suportes para crianças deficientes.
Sabe-se atualmente que o universo familiar das crianças vai muito além da interação mãe–criança, dado que envolve os pais, irmãos, avós e outros agentes sociais (Nunes & Aiello, 2004). Analisando a família dessa perspectiva, conclui-se que se trata de um sistema constituído de vários níveis de relações, configurando-a, portanto, como um sistema interacional (Turnbull & Turnbull, 2001), complexo e composto por subsistemas (como marido–esposa, genitores–filhos, irmãos–irmãos, avós–netos) integrados e interdependentes que estabelecem uma relação bidirecional e de mútua influência com o contexto sócio-histórico no qual estão inseridos, caracterizando uma rede cíclica de interações (Minuchin, Colapinto & Minuchin, 1999; Minuchin & Fishman, 1990). Destacam-se, nessa abordagem, os elementos dos quais depende a qualidade das interações familiares, ou seja, a coesão e a adaptabilidade. A primeira refere-se à ligação emocional que os membros da família têm uns com os outros, assim como o nível de independência que eles sentem no sistema familiar. A adaptabilidade diz respeito à habilidade da família em mudar em resposta a um estresse situacional e desenvolvimental (Turnbull & Turnbull, 2001). Dessa forma, a teoria sistêmica constitui um dos principais arcabouços teóricos para a compreensão da família como um sistema complexo (Dessen & Braz, 2005).
Assim, adotando uma visão sistêmica da família, com a complexidade, a instabilidade e a intersubjetividade que essa visão envolve (Vasconcellos, 2003), este artigo pretende aprofundar o tema de famílias de indivíduos deficientes. Inicialmente apresenta-se uma breve discussão sobre as interações que ocorrem nos subsistemas conjugal e da família estendida. Posteriormente, focaliza-se mais detalhadamente aqueles elementos que têm sido deixados em segundo plano nos estudos da área de interações familiares, o pai e o irmão, mostrando-se a importância deles. Assim, são discutidos aspectos da relação pai–indivíduo com necessidades especiais (subsistema parental) e irmão–indivíduo com necessidades especiais (subsistema fraterno).
Os Subsistemas Familiares
Nos últimos anos, vem ocorrendo uma mudança visível nos padrões de família. Utiliza-se aqui a definição ecopsicológica de Petzold (1996), segundo a qual "uma família é um grupo social especial, caracterizado por relações íntimas e intergeracionais entre seus membros" (Dessen & Braz, 2005, p. 117). O autor ainda acrescenta que "continuidade ao longo da vida", "relacionamento heterossexual" e "dividir a mesma casa" não fazem parte de sua definição de família.
Analisando a família tradicional nuclear, é possível identificar quatro subsistemas básicos de interações: conjugal, parental, fraterno e da família estendida:
– Conjugal: consiste de interações entre os parceiros conjugais (marido e esposa) ou outras pessoas significativas que funcionam como parceiros conjugais. A presença de um filho com necessidades especiais pode influenciar o relacionamento conjugal e suas interações. Nesse âmbito, Turnbull e Turnbull (2001) relataram que há divergências entre os estudos, pois alguns afirmam que há um alto índice de divórcio e desarmonia entre o casal após o nascimento de uma criança com necessidades especiais, enquanto outros apresentam impactos positivos, como altos níveis de ajustamento relatados por casais, justificados por compartilharem os compromissos e responsabilidades pelo filho deficiente. E há, ainda, aqueles que constatam que os casais com filhos deficientes não têm necessariamente mais disfunções em suas vidas que aquelas famílias com desenvolvimento típico ou que podem ocorrer impactos positivos e negativos simultaneamente (Pereira-Silva & Dessen, 2004; Turnbull & Turnbull, 2001). Contudo, há que se destacar que a maioria dos estudiosos do assunto (Frank, 2000; Turnbull & Turnbull, 2001) parecem concordar com a questão do estresse sentido pelos pais de crianças com necessidades especiais. Segundo eles, isso ocorre pelas demandas e sobrecargas que uma criança deficiente exige de seus familiares, sobretudo as mães.
– Família estendida: a cultura tende a definir a composição da família estendida e a freqüência de contato entre ela e a família nuclear. Os membros mais freqüentemente citados como componentes da família estendida são os avós (Turnbull & Turnbull, 2001), tanto como cuidadores ou responsáveis por assistência financeira quanto por apoio emocional.
Em um estudo descritivo com pais de crianças com deficiência mental, oito entre 13 pais destacaram a ajuda dos avós nos cuidados das crianças (da Silva, 2003). No estudo de da Silva (2007), a respeito da interação e do envolvimento do pai e da mãe com seu filho com Síndrome de Down, sete entre 10 famílias citaram os avós como membros da rede de apoio no cuidado da criança. Na época do nascimento da criança, todos os avós deram algum tipo de apoio aos pais. Ainda assim, apenas três famílias acreditavam que havia intervenção dos avós nas relações familiares, na educação da criança e dos outros filhos.
Vale destacar, ainda, a necessidade que os membros da família estendida, sobretudo os avós, apresentam por programas de apoio e informações sobre a deficiência do neto ou neta.
Interações Parentais e Fraternas
Contribuições a respeito do pai
"As interações desenvolvidas no microssistema família são, provavelmente, as que trazem implicações mais significativas para o desenvolvimento da criança" (Pereira-Silva, 2003, p. 503). No âmbito da família nuclear, uma das características singulares é a presença afetiva dos membros e a atribuição de papéis sociais que visam garantir a transmissão de comportamentos e a conseqüente inserção no mundo adulto. Para Baruffi (2000), o pai e a mãe possuem tarefas específicas (as primeiras) no processo de desenvolvimento do indivíduo em direção à independência.
Diante de uma nova forma de organização da família, em decorrência de mudanças na sociedade ocidental contemporânea, como aumento no número de mulheres entrando na força de trabalho, proporção de nascimentos fora de casamento, proporção de casamentos terminando em divórcio, casamento adiado pelo nascimento da criança, menor tamanho da família, aumento de famílias de pai ou mãe solteiros, famílias não-consangüíneas e famílias com casal provedor (Demo, 1992; Kassotaki, 2002), surge a necessidade de estudos com um novo olhar sobre as diversas participações dos homens na família. Isso também é decorrência da teoria sistêmica, segundo a qual existe uma interdependência afetiva entre os diferentes subsistemas familiares, tornando necessário estudar alguns subsistemas, como mãe–criança, em combinação com outros, como pai–criança ou mãe–pai–criança (Pereira-Silva, 2003). Pereira-Silva (2003) ainda comenta a importância dos estudos sobre o subsistema pai–criança para a compreensão do funcionamento da família e das interações desenvolvidas nesse microssistema e a escassez desse tipo de estudo, especialmente na literatura sobre deficiência mental.
De acordo com Baruffi (2000), o pai é figura importante para o desenvolvimento psico-afetivo dos filhos, indo além do papel de provedor e mantenedor da família para, por meio de seu afeto e de sua atitude, ser referência na construção da personalidade dos filhos e ser o primeiro transmissor da autoridade social: "o pai personifica autoridade e segurança, ideais e valores" (Baruffi, 2000, p. 4). Além disso, Le Menestral (1999) afirma que "a freqüência de contato deve ser menos importante para o bem-estar da criança que a qualidade da relação pai–criança" (Le Menestral, 1999, p. 03).
Dessen e Braz (2000), estudando transições familiares decorrentes do nascimento de filhos, colocaram o pai como fator importante para o funcionamento da família, já que a adaptação a essa nova situação (o nascimento de filhos) depende da complementaridade de papéis entre os genitores, não só em nível das interações como das relações familiares mais amplas, incluindo a divisão de tarefas domésticas; o pai deve exercer seu papel adequadamente, suprindo as deficiências naturais ocorridas no relacionamento da mãe com o filho.
"Nos Estados Unidos e na Europa, estudos mostraram que pais [homens] que estavam envolvidos com seus filhos contribuíam positivamente para o desenvolvimento intelectual, social e emocional dos mesmos" (Engle & Breaux, 1998, p. 7). Lamb, em 1997, já dizia que "crianças com pais altamente envolvidos são caracterizadas por maior competência cognitiva, maior empatia, menor crença sexualmente estereotipada e um maior foco de controle interno" (Lamb, 1997, p. 12). Ainda, Flouri e Buchanan (2003) encontraram que o envolvimento paterno precoce tem um papel importante de proteção contra desajustes psicológicos e estresse futuro na vida de seus filhos. Porém, Pleck (1997) afirma que os ganhos para o filho são mais em função do envolvimento paterno positivo (alto engajamento3, acessibilidade e responsabilidade com comportamentos de engajamento e características de estilo positivo) do que do envolvimento paterno por si, já que não basta se envolver, é necessário ocorrer um envolvimento positivo, sendo o envolvimento apenas uma das maneiras do pai influenciar o desenvolvimento da criança.
De acordo com Engle e Breaux (1998), três das contribuições que os homens podem fazer aos filhos são: 1) construir uma relação de cuidado com os filhos, envolvendo-se por meio de interação, disponibilidade e responsabilidade com o filho; passando parte do seu tempo com o bebê ou a criança; bem como estar presente, já que há evidências de que o contato com o pai acarreta menos problemas de comportamento, mais senso de habilidade para fazer coisas e maior auto-estima na criança; 2) tomar a responsabilidade econômica pela criança (destinar parte de sua renda à criança está associado com melhor status desta, assim como um pai que contribui com uma porcentagem maior de sua renda para as despesas de comida da casa deve ter um maior compromisso com seu filho); e 3) reduzir as chances de criar um filho fora de uma parceria com a mãe da criança (o que pode reduzir seu vínculo com a criança).
Em seu estudo sobre envolvimento paterno e apego pai–bebê, Caldera (2004) relatou que o pai mais envolvido no cuidado de seu bebê acaba descrevendo este como mais propenso a se engajar socialmente com outras crianças, a brincar independentemente, ser obediente ao próprio pai, e participar de uma relação harmoniosa com ele.
Diversos fatores, como renda (não percebida como baixa), características do trabalho (muitas recompensas e pouco estresse), características individuais (habilidades positivas de enfrentamento, possuir mais crenças centradas na criança, querer ser como seu próprio pai) e da família (casamento harmonioso, esposa menos ocupada com o trabalho e mais engajada quando brincando com a criança, a criança ser do sexo masculino e com temperamento fácil) interferem no tipo de envolvimento que os pais têm com seus filhos (Goldberg, Clarke-Stewart, Rice & Delis, 2002). Além disso, a presença da mãe pode diminuir a freqüência de interações do pai com seu filho e a participação do pai nas atividades domésticas e de cuidados com a criança (da Silva, 2003; da Silva & Aiello, 2004; Goldberg & cols., 2002).
Apesar das demonstrações de pesquisas que vêm se apresentando na literatura internacional sobre o papel do pai, com relação ao Brasil, ainda é preciso investigar melhor esse papel. A esse respeito, Lewis e Dessen (1999), apontam a necessidade de conhecer as características demográficas das famílias, o tempo e o envolvimento dos pais com suas crianças. O que já se sabe é que o papel do pai no contexto atual é muito complexo. Por exemplo, Dessen e Lewis (1998) descrevem quatro tipos de papéis do pai: o pai biológico; alguém que provê a subsistência da criança (pai econômico); um homem (ou homens) que a criança identifica como uma figura de pai (pai social); e alguém que é legalmente identificado como um pai. Um homem pode desempenhar todos esses papéis, embora cada um possa ser desempenhado por diferentes homens. Esses autores também colocam que os papéis que os pais têm adotado podem ser vistos, em uma perspectiva cultural e histórica, como: 1) tradicional, no qual atividades primárias centram-se ao redor do mundo do trabalho, tendo pouco a fazer em relação às atividades de cuidar de suas crianças; 2) moderno, vêem o desenvolvimento bem sucedido da criança como um objetivo importante, especialmente nas áreas de desenvolvimento da identidade do papel sexual, desempenho acadêmico e desenvolvimento moral; ou 3) emergente, no qual o pai participa mais igualmente com sua esposa das atividades de cuidados da criança.
O pai de indivíduos com necessidades especiais e algumas questões metodológico-científicas
Considerando as famílias de pessoas com necessidades especiais, pesquisas têm apontado a falta de estudos sobre as variáveis relacionadas ao pai que afetam o desenvolvimento de seu filho e a negligência de estudos sobre famílias de indivíduos deficientes em relação ao pai (Glat, 1996; Omote, 1998). Pereira-Silva (2003) afirma que:
a inclusão dos diversos membros familiares na pesquisa torna-se uma necessidade metodológica, sobretudo quando se trata de investigar os relacionamentos da família, particularmente daqueles de crianças com Síndrome de Down. Embora não se tenha dúvida a respeito da importância do papel desempenhado pela família no desenvolvimento da criança com deficiência, pouco se conhece sobre a sua dinâmica e funcionamento enquanto grupo (p. 1).
Lamb e Billings (1997) comentam que, nos últimos anos, muita atenção foi dada ao impacto de uma criança deficiente no ajustamento e satisfação marital de seus pais, mas apenas na perspectiva da mãe. Como resultado, ainda não sabemos quanto tempo o pai gasta com suas crianças, como ele gasta esse tempo ou como seus pensamentos e relações são afetadas pelas inabilidades de seu filho. Bailey, Blasco e Simeonsson (1992) relatam que pesquisas têm focado duas questões. Uma se referindo à extensão com a qual o nascimento de uma criança com deficiência causa impacto no pai e a correspondência entre as respostas paternas a esse impacto comparadas às relatadas pelas mães. A outra é com que extensão os pais (homens) são envolvidos com suas crianças ou com serviços oferecidos à criança. Nessa área, as descobertas têm sido variadas: às vezes, as mães são mais envolvidas; em outras, os pais gastam um tempo significativo com seus filhos com necessidades especiais.
Da Silva (2003) e da Silva e Aiello (2004) apontam que é necessário especificar de forma mais clara quanto do tempo da interação pai–criança é dedicado a atenção, brincadeiras, cuidados, carinho e estimulação de seus filhos e com que "qualidade". Sugerem, ainda, que uma melhor caracterização seria obtida com medidas de observação das interações pai–criança, ao invés de apenas relato verbal e uso de escalas. Nesse estudo exploratório (Da Silva, 2003) com 13 pais de crianças com deficiência mental, a maioria deles apresentou baixo nível sócio-econômico e de escolaridade, papel tradicional de pai, níveis indicativos de estresse relacionado à deficiência da criança e ambiente domiciliar pobre em estimulação à criança. Por outro lado, apresentaram boa auto-estima, porcentagens elevadas de empoderamento e classificaram-se como bom pai e figura importante na vida da criança.
O estudo de Pereira-Silva e Dessen (2003) sobre crianças com síndrome de Down e suas interações familiares utilizou medidas de observação de interações pai–criança em atividades livres e encontrou que os pais iniciavam as interações mais freqüentemente que seus filhos e mostravam liderança em detrimento da liderança da criança durante os episódios interacionais. Esses resultados, somados à alta freqüência de comportamentos de solicitar/sugerir dos pais, indicaram participação ativa do pai quando em contato com seu filho. Além disso, evidenciaram que a maior parte dos comportamentos do pai e da mãe foram adequados – com sincronia, supervisão e amistosidade –, mas a emissão de comportamentos afetivos durante os episódios amistosos foram pouco freqüentes e, quando ocorriam, eram iniciados pela criança. Sugerimos especular informações adicionais sobre aspectos que influenciam essa interação sobre a qual as autoras fizeram importantes revelações, como estresse dos genitores, seu nível de empoderamento e auto-estima, a oferta de ambiente estimulante e que ofereça apoio à criança, entre outros.
Estudos com pais de crianças deficientes (Souza, 2003; Yano, 2003) apontam ainda que o papel do pai é essencialmente de provedor. O cuidado da criança compete à mãe e está em segundo plano para o pai, assim como as tarefas domésticas. Uma possível explicação desses resultados é a apresentada por Pleck (1997): o papel do pai na família é menor quando este percebe grande envolvimento da esposa e maior quando as mães têm um emprego, maior nível educacional ou são mais velhas.
Schoppe-Sullivan, McBride e Ringo Ho (2004) avaliaram o envolvimento paterno como multidimensional e encontraram diferentes fatores a serem considerados, tais como: responsabilidade, expressão de amor e afeto físico, falar com a criança, participação em atividades domésticas, participação em atividades de cuidados da criança e monitoração cognitiva. Os autores sugerem que diferentes instrumentos sejam usados para medir diferentes aspectos do envolvimento do pai e concluem que o entendimento desse papel seria beneficiado com a inclusão de informações sobre o papel de provedor, informações específicas baseadas no tempo sobre interação e outros aspectos relevantes sobre o envolvimento paterno (por exemplo, suporte à mãe da criança).
Dessen (1985) afirma que a maneira mais direta de se estudar os efeitos da interação mãe–pai–criança é por observação e que seria fundamental que a pesquisa se voltasse para o estudo da criança com seus companheiros, com o pai e com irmãos e outros familiares, para que a rede social da criança fosse melhor compreendida.
Assim, conhecer o pai pode promover um melhor diálogo entre ele e os serviços oferecidos às suas crianças e profissionais que trabalham em prol de seus(suas) filhos(as) e informar aspectos educacionais e de dinâmica familiar de indivíduos com deficiência mental, assim como propiciar contribuições atuais do homem à família e sua visão sobre essa contribuição e sua condição de paternidade.
Contribuições a respeito do irmão
Cerca de 80% a 90% das pessoas crescem com um irmão (Branje, vam Lieshout, van Aken & Haselager, 2004) e, quando os pais são indagados sobre por que decidiram ter um segundo filho, a maioria responde que foi porque não queria que o primeiro fosse uma criança sozinha (Lobato, 1990). O fato de tornar-se irmão é uma tarefa que exige reorganizações, presentes e futuras (Silveira, 2002), na medida em que a chegada de um irmão afeta drasticamente o relacionamento da criança com os pais (Dunn, 1983). Nesse âmbito, sabe-se que a relação entre irmãos e irmãs é o mais rico e duradouro dos relacionamentos familiares, tanto na infância como na idade adulta (Frank, 2000; Lobato, 1990; Silveira, 2002).
Lobato (1990), ao discorrer sobre as funções dos irmãos, afirma que eles modelam ativamente as vidas uns dos outros e preparam uns aos outros para as experiências que terão com pares e adultos. Além disso, nas interações entre irmãos há predomínio de similaridade de papéis, o que pode conduzir a conflitos, assim como à resolução deles, ao contrário do que ocorre nas interações adulto–criança (como no subsistema parental), nas quais o adulto tem uma vantagem de poder. Portanto, o relacionamento entre irmãos inclui elementos de reciprocidade direta, chave para os relacionamentos de pares, ao passo que no relacionamento com adultos ou pares estão envolvidos elementos de complementaridade. A imitação é um importante aspecto da reciprocidade fraterna, sendo um comportamento recorrente nas interações entre irmãos. A maior freqüência é a de irmãos mais jovens imitarem os mais velhos; portanto, os mais velhos servem de modelos para os mais jovens (Dunn, 1983), o que contribui também para o processo de identificação de irmãos (Branje & cols., 2004).
Adicionalmente, os irmãos diferem em termos de personalidade, desenvolvimento intelectual e psicopatologia, embora eles possuam não somente material genético semelhante, mas também os mesmos aspectos do ambiente familiar. No entanto, tais diferenças são explicadas posto que eventuais tratamentos diferenciais dados pelos pais, como também particulares aspectos do ambiente familiar podem afetar diferentemente cada um dos irmãos (Dessen & Braz, 2005; Dunn, 1983).
Experiências dos irmãos de indivíduos com necessidades especiais
Cuskelly (1999), ao discorrer sobre o tema de irmãos de indivíduos com necessidades especiais, apresenta a seguinte concepção: a impressão geral sobre a literatura de irmãos é de contradição e confusão. Os primeiros relatos sobre ajustamento psicológico de irmãos de indivíduos deficientes apareceram na literatura psiquiátrica. Os psiquiatras notavam que muitos de seus pacientes eram irmãos de pessoas com algum tipo de deficiência e então concluíam que tal experiência era prejudicial ao desenvolvimento das outras crianças da família. Daí se estabeleceu que irmãos de indivíduos deficientes constituíam uma população de risco para problemas de desenvolvimento. E, embora tais relatos não se fundamentassem numa base empírica, eles eram aceitos sem uma avaliação crítica, sendo que até hoje ainda há alguma aceitação dos mesmos.
Sabe-se, atualmente, que os irmãos de pessoas com necessidades especiais freqüentemente passam pelas mesmas experiências que os pais, como medo, raiva, culpa, etc. (Gargiulo, 2003). Aliás, resgatando a concepção de teoria sistêmica na família, isso se justifica, já que as reações dos pais influenciam aquelas dos filhos.
Além disso, são muitas as preocupações dos irmãos de indivíduos com necessidades especiais, conforme enfatizado por Gargiulo (2003): acerca do irmão deficiente (O que causou a deficiência? Por que meu irmão se comporta tão estranhamente?), acerca dos pais (Por que eles devem gastar todo o tempo com minha irmã? Por que eles sempre pedem que eu cuide de minha irmã?), acerca deles próprios (Por que eu tenho sentimentos ambíguos por minha irmã? Será que eu ficarei deficiente também? Nós teremos um relacionamento normal entre irmãos?), acerca dos amigos (Como eu contarei a meus amigos sobre o meu irmão? Os meus amigos contarão a todos na escola?), acerca da escola e da comunidade (O que acontece nas classes de educação especial? Eu serei comparado com minha irmã?) e acerca da idade adulta (Eu serei responsável por meu irmão quando meus pais morrerem? Eu devo entrar para grupos de pais ou irmãos?).
Efeitos da presença de um irmão deficiente
Cuskelly (1999) e Lobato (1990) descrevem como potenciais efeitos positivos sobre os irmãos com desenvolvimento típico a maturidade, responsabilidade, altruísmo, tolerância, interesses em carreiras humanitárias, senso de proximidade na família, autoconfiança e independência. Em relação aos possíveis efeitos negativos, os autores citam sentimentos de negligência parental e de ressentimento, embaraço, culpa sobre a própria saúde, responsabilidade extra em casa, restrições em atividades sociais e senso de distância da família. Meyer e Vadasy (1994) destacam também o sentimento de responsabilidade pela deficiência do irmão, como se fosse punição por algo errado que ele tenha cometido.
Baumannn, Dyches e Braddick (2005) declaram que crianças que têm irmãos com necessidades especiais parecem ter tempo mais limitado para brincadeiras e oportunidades de estar com seus amigos. Por outro lado, alguns estudos não encontram diferenças quando comparam irmãos de indivíduos com desenvolvimento típico aos irmãos de pessoas com necessidades especiais. Isso foi demonstrado, por exemplo, em dois estudos comparativos (Gamble & McHale, 1989; Roeyers & Mycke, 1995), examinando o estresse e enfrentamento de irmãos de crianças com necessidades especiais e irmãos de crianças com desenvolvimento típico. Em tais estudos, não houve diferenças entre os dois grupos de irmãos quanto à freqüência de estressores.
Por sua vez, Van Riper (2000) examinou a relação entre alguns componentes do modelo de resiliência e o bem-estar de irmãos de crianças com síndrome de Down. Questionários foram respondidos pelas mães e pelos irmãos. Os resultados indicaram que os irmãos apresentaram auto-conceito favorável, e os relatos das mães descreveram os irmãos como socialmente competentes, com baixa incidência de problemas de comportamento.
Adicionalmente, existem estudos que apresentam resultados positivos e negativos relacionados à presença de um irmão deficiente. Foi o caso do trabalho de Verté, Roeyers e Buysse (2003) que, ao investigar os problemas de comportamento, competência social e auto-conceito em irmãos de crianças com autismo, em comparação a um grupo controle, descobriu que os irmãos de autistas apresentavam maiores problemas de comportamento, mas ao mesmo tempo descreviam-se como mais competentes socialmente e com maior auto-conceito.
Nunes e Aiello (2004) também encontraram diferenças ao investigarem o estresse e as características do relacionamento de duas díades de irmãs, sendo uma composta por uma criança com Síndrome de Down e outra composta por duas irmãs com desenvolvimento típico. Os resultados mostraram que o relacionamento entre as irmãs, no qual havia uma irmã deficiente, era menos íntimo, diferente em padrões de cuidado, caracterizado por assimetrias de papéis, ao passo que o relacionamento entre as irmãs sem deficiência apresentava maior companheirismo e troca. Por outro lado, não houve diferenças significativas entre as díades quanto à freqüência de estressores.
Em vista do exposto, faz-se necessário a indagação de por que efeitos díspares são observados. A resposta refere-se a alguns fatores que influenciam o ajustamento de irmãos e o relacionamento entre eles. Entre esses fatores estão a natureza, a gravidade e a demanda da deficiência, isto é, maior gravidade gera maiores demandas na família e maiores exigências do irmão, com conseqüente diminuição da atenção dos pais e maior ocorrência de comportamentos internalizantes (ansiedade, depressão, por exemplo), em relação aos comportamentos externalizantes, como agressividade (Sharpe & Rossiter, 2002).
Alguns aspectos da família também são determinantes, como o tamanho e a forma da mesma, sendo que famílias com muitos irmãos criam grandes redes sociais de apoio (Frank, 2000); a cultura, a situação sócio-econômica, a localização geográfica, a saúde mental e física dos membros e eventuais necessidades especiais da família (Tunrbull & Turnbull, 2001); o nível educacional dos pais e satisfação conjugal (Lobato, 1990); os recursos financeiros, já que isso pode afetar fortemente o nível de estresse vivenciado pelos pais e o grau de envolvimento requerido pelos outros filhos. Por exemplo, em famílias com recursos financeiros limitados, pode ser exigido maior cuidado dos irmãos com desenvolvimento típico mais velhos; isso pode tornar difícil prover os irmãos com muitas oportunidades, já que quando os recursos existem são revertidos quase que exclusivamente para a criança deficiente (Powell & Gallagher, 1993).
Contudo, os elementos familiares não são os únicos decisivos; algumas características dos próprios irmãos estão envolvidas na maneira como os membros deficientes podem exercer algum efeito sobre os outros. O gênero e a idade dos irmãos são influentes, na medida em que os meninos parecem ter mais problemas na escola, ao passo que as meninas obtêm escores mais altos em medidas de problemas de comportamento internalizante, como depressão e ansiedade, e meninos em externalizantes, como agressividade (Rossiter & Sharpe, 2001). No que se refere aos irmãos em idade adulta, Rossiter e Sharpe (2001) sugerem que irmãos adultos de indivíduos com deficiência mental apresentariam ajustamento psicológico mais positivo, e a justificativa para tal dado seria que o impacto poderia diminuir, conforme o indivíduo fica mais velho, e também porque o desenvolvimento social e cognitivo mais avançado dos adultos poderia auxiliar nas estratégias de enfrentamento de estresse familiar e estresse ligado ao irmão.
Muitos estudos se interessaram por investigar as variáveis que afetam o ajustamento ou o relacionamento entre os irmãos. Hastings (2003), por exemplo, examinou o papel do apoio social disponível às famílias de crianças autistas e como este apoio poderia afetar os irmãos, considerando-se também a gravidade da deficiência da criança. Os resultados revelaram que o apoio social funcionou como moderador do impacto da gravidade do autismo sobre o irmão, representando um fator de proteção.
Rivers e Stoneman (2003) examinaram a influência do estresse conjugal e enfrentamento dos pais sobre o relacionamento de irmãos quando uma criança é autista. Alguns de seus resultados demonstraram que, quando o estresse conjugal foi alto, os irmãos com desenvolvimento típico relataram menor satisfação com o relacionamento de irmãos, como também mais comportamentos negativos e poucos comportamentos positivos dirigidos ao irmão autista; as estratégias de enfrentamento de apoio formal foram positivamente associadas com aspectos positivos do relacionamento de irmãos e negativamente associadas com comportamentos negativos do irmão.
No estudo de Nunes (2006), também foram investigadas as relações entre relacionamento fraterno, idade dos irmãos e nível de apoio social e de recursos da família. Participaram díades de irmãos constituídas por um membro com deficiência mental, divididos em dois grupos: um com o irmão deficiente pré-adolescente e outro com este membro adulto, sendo mais jovens os irmãos com desenvolvimento típico (diferença de até cinco anos). Os resultados sugeriram que os irmãos do grupo de pré-adolescentes assumiam mais o papel de cuidador do irmão nas situações de interação com ele e este grupo pareceu receber maior nível de apoio à maternidade/paternidade. A autora especula que por haver menor apoio desse nível no grupo de pré-adolescentes, há maior demanda de ajuda requerida pelo filho deficiente, que pode ser suprida pelos irmãos menores com desenvolvimento típico, que desempenham o papel de ajudante em maior escala que os adultos.
Questões Metodológico-Científicas e Considerações acerca da Cultura
Ao apresentar as características dos relacionamentos entre irmãos de famílias de crianças e jovens com necessidades especiais, com suas variáveis de influência, é importante que sejam destacadas algumas questões metodológico-científicas que surgem da análise de estudos sobre o referido assunto. A discussão de tais questões pode auxiliar no aperfeiçoamento de futuras pesquisas, conduzindo a avanços na área de investigação de relacionamentos fraternos.
Com base no levantamento realizado pelas autoras do presente artigo, foi possível constatar que: a maioria dos estudos concentra-se em díades de irmãos e, portanto, interações entre mais de dois irmãos não têm sido estudadas; há escassez de estudos com irmãos em idade adulta; é restrito o número de estudos que abordam a natureza da interação entre os irmãos, já que a maioria trata de aspectos do ajustamento dos irmãos; os dados, geralmente, são obtidos por relato de pais ou outros informantes, e em menor número, por auto-relato ou observações diretas (Cuskelly, 1999; Nunes, 2006; Orsmond & Seltzer, 2000).
Ademais, os relatos dos pais são mais negativos que o auto-relato, pois as crianças podem não perceber efeitos negativos sobre o ajustamento ou relacionamento, podem negar tais efeitos até a idade adulta ou os pais podem ser superprotetores ou supersensíveis às conseqüências negativas (Sharpe & Rossiter, 2002). Sharpe e Rossiter (2002) ainda destacam que estudos com dados normativos para comparação das amostras dos irmãos apresentam efeitos negativos de maior magnitude que os encontrados por estudos que empregaram grupos-controle emparelhados. No entanto, há uma séria dificuldade em encontrar-se, sobretudo no Brasil, participantes para compor grupo-controle.
Faz-se necessário uma breve reflexão referente à intervenção com irmãos. Sessões de informação e grupos de apoio têm se mostrado úteis em assegurar melhorias no estado psicológico das crianças, seus conhecimentos acerca da deficiência, e seu entendimento da situação da família (Burke & Montgomery, 2000). Cuskelly (1999) ressalta que parece não haver pesquisas publicadas que avaliem adequadamente a efetividade de programas de grupos de irmãos. A maioria dos programas, de acordo com essa autora, inclui apenas uma avaliação ao final, perguntando aos participantes se eles gostaram do trabalho, sem se investigar os resultados a curto prazo. Ela aponta para a necessidade de se saber, por exemplo, se participar de um grupo de irmãos muda algo, ou quais aspectos da experiência de grupo são efetivos.
Por fim, é importante sinalizar as diferenças culturais entre as famílias, o que deve ser levado em consideração também ao analisarmos os resultados de pesquisas destacadas ao longo do presente artigo, que focaram essencialmente famílias nucleares tradicionais (mãe–pai–filhos). Minuchin (1999) destaca que alguns padrões de interação familiar têm origem étnica. Entre os pais, por exemplo, de diferentes culturas, a expressão de afeição, discordâncias e acariciar seus filhos não acontece sempre da mesma forma.
Turnbull e Turnbull (2001) ressaltam, na abordagem do sistema familiar, a base cultural. De acordo com os autores, a diversidade cultural deve ser considerada, pois os fatores culturais – como localização geográfica, religião, status sócio-econômico, orientação sexual e tipo de deficiência – influenciam as características familiares, que, por sua vez, modelam a interação familiar. Conseqüentemente a cultura está por detrás dos papéis que pais e irmãos podem desempenhar em suas famílias.
No modelo bioecológico do desenvolvimento humano de Bronfenbrenner (1996), a cultura, assim como a classe social, a etnia e a subcultura da pessoa em desenvolvimento (macrossistema) também é considerada, "predominando a inter-relação e a influência bidirecional entre e intra-ambientes" (Polonia, Dessen & Pereira-Silva, 2005, p. 79). Por isso, diversos modelos de intervenção com famílias (Cabrera, Tamis-LeMonda, Bradley, Hofferth & Lamb, 2000; Doherty, Erickson & LaRossa, 2006; Kumpfer & Alvarado, 2003; McAllister, Wilson & Burton, 2004) têm considerado a adequação aos aspectos culturais da família como um fator na busca de um resultado positivo.
Em suma, os desafios práticos e metodológicos de estudos investigando a temática de famílias de indivíduos com necessidades especiais, sobretudo as relações pai–filhos e irmão–irmão, além de considerações sobre as diferenças culturais, foram sucintamente descritos anteriormente. Espera-se que tenha sido possível contribuir, nesta análise, para o aumento de interesse na referida área, com crescimento de pesquisas rigorosamente delineadas e socialmente relevantes.
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1 Texto elaborado para o mini-curso "A família como foco de estudo: Contribuições a respeito do pai e do irmão do indivíduo com necessidades especiais", ministrado durante o II Congresso Brasileiro de Educação Especial e II Encontro da Associação Brasileira de Pesquisadores em Educação Especial, São Carlos, novembro de 2005. Agradecimento especial ao apoio do CAPES e CNPq.
2 Endereço: Rua Professor José Ferraz Camargo, 350, ap. 424, Vila Marina, São Carlos, SP, Brasil 13566-440. E-mail: nancycbs@gmail.com
3 Interação direta com a criança, na forma de cuidados, brincadeiras ou lazer.
Artigo original: